Programa nuclear do Irã: como EUA ajudaram o país a iniciar polêmico plano atômico
Ángel Bermúdez
O programa nuclear iraniano é uma das principais preocupações da agenda geopolítica global há duas décadas.
Trata-se de um dos temas que mais exigiu esforços diplomáticos desde que, em 2003, a Organização Internacional de Energia Atômica (IAEA, na sigla em inglês) descobriu que o Irã havia desenvolvido, ao longo de 18 anos, um programa secreto que incluiu a construção de diversas instalações atômicas importantes e sofisticadas.
Esta revelação, em claro descumprimento das obrigações iranianas como signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, imediatamente acionou as engrenagens diplomáticas globais, que rapidamente emitiram condenações, sanções e outras medidas de pressão, com a participação não apenas das potências ocidentais, mas também de parceiros tradicionais do Irã, como a Rússia e a China.
O governo do então presidente Mohamed Jatami afirmou que as atividades nucleares tinham fins pacíficos, mas os EUA interpretaram essas descobertas como a confirmação de suas suspeitas de que Teerã estava tentando fabricar armas nucleares.
O programa nuclear iraniano foi considerado uma questão bastante relevante durante os mandatos dos presidentes americanos George W. Bush, Barack Obama e Donald Trump. Embora com enfoques muito diferentes, os três presidentes tentaram deter o programa, receando que o Irã desenvolvesse armas nucleares — o que alteraria o equilíbrio de poder no Oriente Médio e, segundo muitos especialistas, poderia incentivar a proliferação de armas nucleares na região.
Esses esforços prosseguem atualmente, no mandato do presidente Joe Biden.
Em 29 de novembro de 2021, representantes dos EUA, Reino Unido, França, Rússia e China (que formam o grupo conhecido como P5, ou as cinco potências com poder de veto no Conselho de Segurança da ONU), além da Alemanha, retomaram em Viena o diálogo com o Irã para tentar restabelecer o Plano de Ação Integral Conjunto assinado em 2015 sobre o programa nuclear iraniano (JCPOA, na sigla em inglês).
Mas a delegação americana não participou diretamente da mesa de negociações, permanecendo em um hotel próximo ao local onde as reuniões eram realizadas, sendo informada regularmente sobre os progressos atingidos.
O JCPOA, que o governo Obama levou 20 meses para negociar, foi desfeito quando o governo Donald Trump decidiu abandoná-lo em 2018. Agora, para permitir que os Estados Unidos participem novamente das negociações, o Irã exige a suspensão das sanções impostas contra o país asiático.
Paradoxalmente, todo esse quebra-cabeças teve origem exatamente nos EUA, pois o programa nuclear iraniano foi iniciado graças a uma iniciativa americana na década de 1950.
‘Átomos para a Paz’
Tudo começou com um discurso do então presidente americano Dwight Eisenhower.
No dia 8 de dezembro de 1953, perante a Assembleia Geral da ONU, Eisenhower abordou a ameaça representada pelo uso da tecnologia nuclear com fins bélicos — que, já há vários anos, não era mais monopólio dos Estados Unidos — e dos riscos de proliferação, à medida que cada vez mais países aprendessem a produzir bombas atômicas.
O então presidente americano afirmou que era necessário ir além de procurar a redução dessa ameaça e sugeriu que essa tecnologia fosse colocada a serviço da humanidade.
“Não é suficiente retirar as armas [nucleares] dos soldados. É preciso colocá-las nas mãos de pessoas que saibam como eliminar seu aspecto militar e adaptá-las à arte da paz”, segundo ele.
Ele então propôs a criação de uma agência de energia atômica, subordinada às Nações Unidas e encarregada de projetar formas para que o material nuclear “sirva aos propósitos pacíficos da humanidade”, aplicando a energia atômica para atender a diversas necessidades, em áreas como a medicina ou a agricultura.
“Um objetivo especial seria fornecer eletricidade em abundância às regiões do mundo com escassez de energia”, indicou Eisenhower.
A ideia era que as potências capazes de produzir material nuclear o fornecessem para a agência da ONU, que o manteria em segurança e o entregaria para pesquisadores, a fim de verificar os usos pacíficos dessa energia.
O discurso de Eisenhower foi a semente da criação da IAEA, mas também daria início a uma iniciativa conhecida como Átomos para a Paz, segundo a qual os EUA ofereceriam educação e tecnologia a países em desenvolvimento, para ajudá-los no uso pacífico da energia atômica.
Tirando o gênio nuclear da lâmpada
Menos de um ano depois desse discurso perante a ONU, os EUA alteraram sua Lei de Energia Atômica para permitir a exportação de tecnologia e material nuclear para outros países, desde que eles se comprometessem a não fazer uso dessa assistência para desenvolver armas nucleares.
Em março de 1955, o governo Eisenhower deu um passo adiante e autorizou a Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos a fornecer, para países do chamado “mundo livre”, quantidades limitadas de material fissionável, além de assistência para a construção de reatores nucleares.
“O objetivo dessas exportações era manter a liderança global dos EUA, reduzir a influência soviética e garantir o acesso ao fornecimento de urânio e tório estrangeiro”, segundo Peter R. Lavoy, que foi diretor de Políticas de Combate à Proliferação Nuclear do Pentágono, em um artigo publicado pela organização americana Arms Control Association.
A Índia foi o primeiro país a receber assistência nuclear dos EUA. Outros beneficiários foram África do Sul, Israel, Turquia, Paquistão, Portugal, Grécia, Espanha, Argentina, Brasil e Irã.
Reator para Teerã
Em 5 de março de 1957, os EUA e o Irã, então governado pelo xá Mohamed Reza Pahlevi, assinaram um acordo de cooperação para uso civil da energia atômica que, com o apoio da iniciativa Átomos para a Paz, definiu as bases da criação do programa nuclear iraniano.
Para Washington, Teerã traria mais um benefício no contexto da Guerra Fria. “Segundo documentos [da época] em arquivo, o Irã não alinhado era considerado a base de uma estratégia de dissuasão contra a União Soviética e a iniciativa Átomos para a Paz serviria para solidificar a lealdade do Irã ao Ocidente”, segundo o pesquisador Jonah Glick-Unterman, em uma análise publicada em 2018 pelo centro de estudos Wilson Center, com sede em Washington.
Em 1967, os EUA forneceram ao Irã um reator nuclear de pesquisa de 5 megawatts, além de uma certa quantidade de urânio altamente enriquecido para sua operação.
Três anos mais tarde, o Irã ratificou o Tratado de Não Proliferação Nuclear, comprometendo-se a não tentar obter nem desenvolver armas nucleares. Mas esse objetivo não havia sido totalmente descartado pelo xá.
“A ideia do xá na época era que, se o Irã fosse suficientemente forte e ele pudesse defender os interesses do país na região, ele não tentaria obter armas atômicas. Mas ele me disse que, se isso mudasse, precisaríamos ‘tornar-nos nucleares’. Ele tinha isso em mente”, declarou Akbar Etemad, considerado o pai do programa nuclear iraniano, em entrevista à BBC em 2013.
Etemad foi presidente da Organização Iraniana de Energia Atômica, fundada em 1974, e esteve à frente do desenvolvimento inicial do programa nuclear do seu país.
Naquele ano, Reza Pahlevi anunciou planos de construção de 23 instalações de energia atômica, com capacidade para gerar cerca de 23 mil megawatts, em duas décadas. Ele também queria desenvolver o ciclo completo de produção de combustível nuclear.
Mas havia um obstáculo importante: o Irã não tinha especialistas qualificados, necessários para fazer esse projeto avançar.
“Como o Irã não contava com grandes quantidades de indivíduos formados em física e engenharia nuclear, o reator de Teerã permaneceu improdutivo por quase uma década, por não contar com mão de obra adequada para sua operação”, segundo a pesquisadora Ariana Rowberry, em artigo publicado pelo centro de estudos Brookings Institution, com sede em Washington.
A ajuda americana também seria fundamental para superar esse obstáculo.
Em julho de 1974, as autoridades iranianas propuseram ao renomado Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês) a criação de um programa de mestrado para estudantes selecionados pela Organização Iraniana de Energia Atômica, que permitiu a formação das primeiras gerações de engenheiros nucleares iranianos.
Esse programa educacional, que custou ao Irã cerca de US$ 1,3 milhões (US$ 7,3 milhões, ou cerca de R$ 41 milhões, em valores de hoje) nos seus dois primeiros anos, foi motivo de protestos por parte de professores e estudantes do MIT, que acusavam o xá de violar os direitos humanos e temiam que o programa contribuísse com a proliferação de armas nucleares.
De qualquer forma, esse acordo educacional e a colaboração nuclear entre Washington e Teerã terminaram pouco tempo depois, com a vitória da Revolução Iraniana em 1979. Mas suas consequências persistiriam.
“Ninguém no MIT imaginava que os programas projetados para o xá cairiam rapidamente nas mãos dos revolucionários islâmicos. Ninguém acreditava que tantos estudantes e professores iranianos em formação apoiariam a revolução”, segundo relatado pelos especialistas em história da tecnologia Stuart W. Leslie e Robert Kargon, em um artigo publicado sobre o tema.
A Universidade de Tecnologia Aryamehr (AMUT, na sigla em inglês), que foi formada à imagem do MIT, acabou por ser um grande centro de atividade de estudantes revolucionários.
Inicialmente, o novo regime, liderado pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, rechaçou os projetos nucleares do xá e, com isso, muitos dos professores formados neste campo fugiram do país.
Após a revolução de 1979, os iranianos tinham uma posição extremamente antinuclear, segundo explica Mohammad Homayounvash, professor de relações internacionais da Universidade Internacional da Flórida (FIU, na sigla em inglês).
“Eles achavam que esse projeto era um ‘elefante branco’ do xá. E, de fato, os iranianos suspenderam o programa nuclear e o desmantelaram quase por completo”, afirmou Homayounvash à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC).
“Houve um intervalo de cerca de cinco ou seis anos em que os iranianos desprezaram totalmente a energia nuclear. Eles acreditavam que era um desperdício de recursos, já que ela servia apenas para gerar eletricidade e o Irã detinha enormes recursos petrolíferos”, acrescenta ele.
Mas a revolução iraniana logo perceberia a importância da tecnologia nuclear e começaria não apenas a tentar trazer de volta para o país muitos especialistas que haviam partido, mas também iniciar o seu próprio programa atômico secreto.
Consequências inesperadas
Mas qual a real importância da Átomos para a Paz no desenvolvimento de armas nucleares em outros países e no programa nuclear iraniano?
Segundo Homayounvash, havia por trás dessa iniciativa a preocupação de Eisenhower com as consequências do uso da tecnologia nuclear no campo armamentista.
“Para evitar que outros países seguissem esse caminho, imaginou-se nesse momento que, fornecendo-lhes acesso a um certo nível de tecnologia nuclear com fins civis, seria possível, até certo ponto, mantê-los sob controle, estabelecendo as proteções apropriadas”, destaca.
Ele salienta, por exemplo, que os EUA não vendiam, mas sim alugavam o urânio entregue a países estrangeiros como combustível para os reatores — e apenas em quantidades de laboratório.
E foi assim que os EUA colaboraram com o estudo e a pesquisa da energia nuclear em mais de 30 países em todo o mundo. Mas, analisando retrospectivamente, não existe consenso entre os especialistas sobre o quanto essa iniciativa teria contribuído para a proliferação das armas nucleares.
Homayounvash acredita que é possível argumentar que a iniciativa Átomos para a Paz criou um ambiente que possibilitou a transferência de tecnologia nuclear com fins pacíficos e os países que aprenderam a usar essa tecnologia puderam então iniciar seus avanços com outros propósitos.
Mas ele argumenta que não existem tantas razões para crer que, se não houvesse a iniciativa Átomos para a Paz, alguns países não teriam atingido o ponto a que chegaram em termos de desenvolvimento nuclear. “A cadeia lógica [para chegar a essa conclusão] é um pouco mais complicada que simplesmente traçar uma linha reta — e é algo que eu não faria”, destaca Homayounvash.
Mas outros especialistas acreditam ser evidente que a iniciativa do presidente Eisenhower acabou favorecendo a proliferação nuclear. “Existe muita literatura atualmente que destaca como isso foi perigoso e como a iniciativa Átomos para a Paz estimulou e possibilitou definitivamente o desenvolvimento de programas de armas nucleares”, segundo John Krige, professor do Instituto de Tecnologia da Geórgia, nos EUA, declarou à BBC News Mundo. “Pensar que seria possível traçar uma fronteira clara entre Átomos para a Paz e Átomos para a Guerra não só foi ingênuo, mas também demonstrou que é uma inverdade do ponto de vista histórico.”
“Compartilhar tecnologia nuclear para uso civil tem consequências importantes do ponto de vista das armas nucleares. Não há dúvida a respeito”, acrescenta Krige, que é especialista no estudo das relações entre a ciência e a tecnologia e a política externa dos EUA.
Os que compartilham essa opinião costumam apontar casos como a Índia e o Paquistão, que desenvolveram a bomba atômica e cujos primeiros cientistas nucleares foram formados pela Iniciativa Átomos para a Paz.
Mas seria também necessário incluir na balança todos aqueles que, de alguma forma, estavam dispostos a desenvolver armas nucleares, mas que, graças aos sistemas de proteção estabelecidos, não tiveram sucesso.
“Existem muitos outros casos em que o desvio de materiais nucleares científicos ou industriais para uso militar foi detectado e impedido pelos instrumentos e conceitos que formaram a iniciativa Átomos para a Paz. A Argentina, o Brasil, Taiwan e a Coreia do Sul são exemplos desses casos”, segundo Peter R. Lavoy.
Na eventualidade de que o programa nuclear iraniano realmente tenha fins bélicos, como acreditam os EUA, a pergunta que permanece sem resposta é a qual desses dois grupos de países o Irã pertencerá no futuro.