Tão humilhado! Fãs de Waldick Soriano querem trazer restos mortais para a Bahia
Amigo, hoje que a noite está calma, por favor, leva essa carta e entregue àqueles ingratos e diga como está o túmulo de Waldick Soriano, o cantor de chapéu preto, óculos escuros e um vozeirão capaz de atingir as fímbrias das almas românticas, o âmago dos amores desprezados e também (oh, corações sortudos!) o altar das paixões correspondidas. Com a lápide fendida, as inscrições apagadas e o caixão quase exposto no Cemitério São Francisco Xavier, o Cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. O túmulo só foi reconhecido pelo número 53817 e pelo QR Code.
Naquele campo santo, Waldick foi sepultado, em 4 de setembro de 2008, um dia depois de morrer de câncer de próstata, aos 75 anos, deixando cerca 800 músicas compostas e 80 discos gravados, como gostava de se gabar o artista nascido em 1933 no distrito de Brejinho das Ametistas, município de Caetité, no sudoeste da Bahia, a 645 km de Salvador, a mesma terra natal do educador Anísio Teixeira, e do médico, político e escritor César Zama.
Amigo, se essa cartinha falasse iria dizer àqueles ingratos como está, no outro mundo, o coração do ícone da música brega, como Waldick Soriano foi classificado pela crítica musical: com os olhos rasos d’água e o coração cheio de mágoas por tanta falta de consideração. É, no mínimo, uma perfídia (nome de um célebre bolero do compositor mexicano Alberto Dominguez) com a memória de Waldick. Pois, não merece tal abandono nem uma pessoa que levou uma vida de cachorro, o que, de longe, não foi o caso da existência profícua de quem muito compôs, muito cantou, amou e farreou em libações pelo Brasil afora, como fez o boêmio Waldick Soriano.
A história do abandono do túmulo do autor de “Eu não sou cachorro não” veio à tona há poucos dias através de um vídeo publicado no canal do youtube “Carlos, me explica isso”. No final da denúncia que comoveu e indignou os fãs do artista baiano pelo país, o apresentador convida: “Se você é do Rio de Janeiro e fã de Waldick Soriano, venha visitar o túmulo dele!”.
Waldir viveu numa ribalta entre o brega e o romântico. Brega para os ouvidos delicados daqueles que, quando caíam numa dor de corno de lascar o coração, não deixavam de afogar suas mágoas nas músicas do cantor de Caetité. Romântico para todos os que padeceram (e ainda sofrem) desse mal universal que são a sístole e diástole das irregulares pulsações do amor.
Aliás, tachar Waldick Soriano de brega é, para muitos fãs e admiradores do cantor, um reducionismo para diminuir a importância do artista para a Música Popular Brasileira e um preconceito deslavado e elitista contra a música romântica emulada dos boleros caribenhos e mexicanos (como o de Augustin Lara, gravado por Waldick), uma das marcas do cantor baiano. Advogado criminalista e ex-conselheiro federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Maurício Vasconcelos é um desses admiradores que rejeitam o rótulo com a força de uma sentença judicial inapelável.
Foto: Divulgação |
Nascido em Brumado, município vizinho a Caetité, filho de músico e seresteiro bissexto, Vasconcelos atribui a pecha de brega pespegada a Waldick Soriano “ao primeiro verso de Eu não sou cachorro não”. De resto, diz que a música é linda. E destaca a beleza dos versos (um aviso para os corações ingratos): “Quem despreza um grande amor, não merece ser feliz, nem tampouco ser amado”. Fica o alerta. Depois, amante negligente, não vá perder um grande amor e buscar consolo nas canções de Waldick.
“Chamar Waldick Soriano de brega é uma vulgarização. Ele é um grande cantor, um grande compositor e um grande intérprete. Sua música Tortura de Amor, um clássico da MPB, celebrado pela crítica e por todos, adentrou nas classes sociais mais altas por conta própria. Gravou compositores mexicanos como um disco inteiro de Augustin Lara”, pontuou Vasconcelos.
De fato, Tortura de Amor transcende a quaisquer rótulos brega, e beira à poesia romântica. Vejamos se não é mesmo a celebração de uma ansiedade amorosa, de uma saudade que devassa a alma e estilhaça o espírito, ao mesmo tempo em que alimenta a esperança de reconciliação.
“Hoje que a noite está calma / E que minh’alma esperava por ti / Apareceste afinal / Torturando este ser que te adora / Volta fica comigo / Só mais uma noite. / Quero viver junto a ti / Volta meu amor / Fica comigo não me desprezes / A noite é nossa / E o meu amor pertence a ti. / Hoje eu quero paz / Quero ternura em nossas vidas / Quero viver por toda vida / Pensando em ti”. Ora, rotular esta canção de brega é pregar a mesma marca depreciativa na dolorosa e abissal Ne Me Quitte Pas (Não me deixes), do francês Jacques Brel, a mais tremenda dor-de-cotovelo da canção universal.
Difícil ainda acreditar que esta canção de 1962 tenha sido censurada 12 anos depois pela ditadura militar. Por causa da palavra “tortura”. Embora nascido em Caetité, Waldick celebrou Salvador com um belo samba em que se orgulha: “Eu sou da Bahia / de São Salvador / Eu sou mensageiro de muita paz e de muito amor”. O que demonstra um ecletismo difícil para um cantor apenas “brega”.
Novo túmulo
Tão logo tomou conhecimento do vídeo sobre o abandono do túmulo de Waldick Soriano, Maurício Vasconcelos abraçou uma nova causa: entrou em contato com a administração do cemitério do Caju, no Rio, e solicitou um orçamento para fechar a lápide fendida, pintá-la e colocar uma placa com o nome do cantor, a data de nascimento e de morte. “Foi o que eu podia fazer, por enquanto”, observou.
Foto: Divulgação |
No entanto, ensaia fazer mais. Deflagrar, ao lado do também advogado Osvaldo Laranjeiras Bastos Júnior, nascido em Caetité e ex-presidente da OAB de Brumado, uma campanha para transladar os restos mortais do cantor para a terra natal e construir um jazigo perpétuo condizente com a memória do artista.
Com direito a um busto de Waldick Soriano com os indefectíveis chapéu preto e os óculos escuros. A dupla de advogados e fãs do cantor já começou a mobilizar políticos da região e pretende discutir o assunto com o governador Rui Costa. “Em Entre Rios, os integrantes do primeiro Trio Nordestino, Coroné, Lindú e Cobrinha foram homenageados com uma estátua dos três. Por que não pode ocorrer o mesmo com Waldick em Caetité?”, pergunta Vasconcelos.
“Terá o apoio de praticamente toda a população de Caetité”, garante o procurador-geral do município, João Paulo Silveira de Oliveira. Em Caetité, onde vivem primos do cantor, Waldick Soriano é nome de uma das principais avenidas da cidade. O procurador vê apenas um empecilho legal, uma eventual recusa da família. Casado três vezes, Waldick teve sete filhos. Depois da morte do cantor, a família travou uma luta judicial pelos direitos autorais do cantor e compositor.
Em entrevista a um programa da Record TV, Waldemar da Silva Soriano Sobrinho, um dos filhos, revelou que o pai morreu pobre, tendo deixado apenas os direitos autorais das músicas. A reportagem entrou em contato com a administração do cemitério do Caju, que confirmou o péssimo estado da lápide de Waldick Soriano e informou que a manutenção é uma responsabilidade da família e que nenhum membro dela apareceu para autorizar quaisquer reparos, mas apenas Maurício Vasconcelos.
O advogado Osvaldo Laranjeiras Bastos Júnior é filho de um músico que foi colega de escola, de infância e adolescência de Waldick, em Caetité. Ele também é fã de carteirinha do cantor, principalmente da música Tortura de Amor, segundo ele, cantada por Maria Bethânia, Cauby Peixoto, Agnaldo Timóteo e até pelo conjunto de rock Capital Inicial.
“Aqui temos um nome famoso na educação e outro na música, Anísio Teixeira e Waldick Soriano”, orgulha-se. Ocorre que a memória do educador e fundador da Escola Parque, o embrião da escola pública e popular em tempo integral criada em Salvador nos final dos anos 40, está bem preservada na Casa Anísio Teixeira, na Praça da Catedral. Enquanto isso, do outro mundo, Waldick parece entoar uma de suas melodias: “Eu também sou gente!”
Última homenagem
Em 2009, a atriz Patrícia Pillar lançou em Caetité o filme Waldick, Sempre no Meu Coração. Foi o resultado de dois anos acompanhando Waldick em shows e entrevistas. O documentário conta como o jovem, que só estudou até o quarto ano primário, saiu de Caetité (num caminhão carregado de rapaduras, conforme Maurício Vasconcelos), foi garimpeiro, ajudante de feirante, lavrador e engraxate até chegar à fama em São Paulo, onde gravou o primeiro disco.
O próprio Waldick revela que seu nome era Eurípedes Waldick Soriano, mas que o dono da gravadora, “Seu Palmeiras”, mandou cortar o Eurípedes, alegando que Waldick Soriano só existia um no mundo. Foi uma decisão acertada. Afinal, Eurípedes só pode mesmo dar certo como autor de Tragédia Grega e não na tragicomédia da vida como ela é.
Sempre no meu coração é uma espécie de Buena Vista Social Club, não com a velha guarda da música cubana, mas com um homem só que, como o personagem Toto, o menino e depois cineasta de Cinema Paradiso, o clássico de Guiseppe Tornatore, retorna à terra natal muitas décadas depois.
No filme de Patrícia, dentre outras confidências, Waldick conta que passou a usar o chapéu e os óculos escuros como indumentária identitária, depois que assistiu a um filme do cowboy Durango Kid. “Invoquei com aquela imagem. Comprei o chapéu, os óculos escuros e um cavalo e fui para a praça central de Caetité. Foi uma vaia”.
Waldick com a atriz e diretora Patrícia Pillar, que gravou documentário sobre ele (Foto: Divulgação) |
Waldick já protagonizou outras cenas engraçadas, como em 1990 no Programa Sílvio Santos, do SBT, quando o apresentador o abraçou e os dois caíram juntos no chão, simulando uma cena de carinho.
Ainda no documentário, Waldick tenta justificar sua compulsão pela música romântica: “É difícil de explicar. Sempre amor, saudade e a falta de alguém. Quando se gosta de uma pessoa, se gosta pra valer. Às vezes é ruim”.
Musa fiel, Patrícia Pillar acompanhou Waldick até a véspera da internação do cantor no Instituto do Câncer, no Rio, onde ele se tratou até a morte.
Em entrevista ao Jornal da Globo à época da estreia do filme, a diretora contou que “Waldick era muito na dele, acho que muito escaldado pela vida, então, ele era muito resistente”. “Acho que foi através da suavidade, da delicadeza e do respeito que a gente foi construindo uma relação de confiança”. E que, aos poucos, o cantor reservado e com jeito de turrão foi abrindo o seu coração, todo o seu coração. “As pessoas falam: ‘que bem que você fez a ele, que bom ter dado isso em vida’. Eu fico muito contente dele realmente ter aproveitado uma parte disso vivo, mas, com certeza, ele me deu muito mais, ele me ensinou muita coisa”, observou Patrícia.
Amigo, por favor leva essa carta…