Como os chutes a gol de Messi deram ímpeto a aulas de matemática no sertão de Alagoas
Paula Adamo Idoeta
Em abril de 2019, para analisar o desempenho do jogador Lionel Messi em seu então clube, o Barcelona, o site de análise de dados FiveThirtyEight reuniu em um gráfico os mais de 120 chutes a gol feitos pelo craque argentino de fora da área, nas temporadas entre 2017 e 2019 da Liga Espanhola e da Liga dos Campeões.
A conclusão dos analistas do FiveThirtyEight era de que Messi (hoje no PSG) era o “motor” dos gols e tentativas de gols de seu antigo clube, até mais do que quando o argentino estava no auge de sua carreira.
Agora, mais de dois anos depois, os erros e acertos de Messi no Barcelona estão servindo para reforçar as aulas de Matemática de alunos muito distantes do estádio do Camp Nou – em Santana de Ipanema, cidade de 48 mil habitantes no sertão de Alagoas.
Ao ver o gráfico do desempenho de Messi (abaixo), a professora Claricy Alves Silva enxergou uma oportunidade para engajar seus estudantes do 2° ano do ensino médio na Matemática da vida real, indo além de fórmulas e conceitos – e estimulando o raciocínio.
“Quando mostrei o gráfico, os alunos queriam uma resposta pronta sobre como interpretar aquilo; até começaram a pesquisar na internet. Quando viram que não era essa a finalidade, mergulharam na atividade”, explica Claricy Silva à BBC News Brasil.
“A primeira conclusão é que se Messi erra tanto (foram cerca de 20 gols marcados entre os 120 chutes de fora da área), e mesmo assim é o melhor do mundo (o argentino recebeu o prêmio Bola de Ouro em novembro, pela sétima vez em sua carreira), é porque ele é muito persistente”, conta a professora.
Mas a discussão na sala de aula foi além.
“A ideia central era trabalhar a importância dos dados – de ler e interpretá-los”, prossegue Silva, que inicialmente descreveu sua experiência no site de educação Porvir.
“A Matemática está em todo lugar no dia-a-dia. E sentimos na pele, durante a pandemia, a dificuldade das pessoas em interpretar dados e como isso favoreceu (a disseminação de) notícias falsas.”
O desempenho de Messi serviu, então, para discussões sobre probabilidade de erros e acertos nos chutes; sobre estatística – cujo ensino estava defasado em decorrência da pandemia, diz Silva -; e sobre quais ângulos ou posições o jogador foi mais ou menos eficiente em sua missão de marcar gols.
“Discutimos, por exemplo, para quem essas informações (sobre os chutes de Messi) eram importantes? Para seu técnico? Para o técnico do time adversário, ao armar sua defesa?”
Mas, para muitas das perguntas levantadas em sala, não havia uma resposta única. E respostas erradas também passaram a ser celebradas, como uma oportunidade para discutir hipóteses e permitir o aprendizado.
“O que prejudica o ensino da Matemática é a negatividade – é acreditar que não se é capaz, e isso vai se mantendo (perpetuando)”, pondera a professora. “Me emociono quando um aluno me conta que errou e me explica por quê. Sei que se ele tivesse se sentindo reprimido em sala, não falaria.”
Ensino colaborativo da matemática
A atividade de Messi usada por Silva é parte do catálogo de exercícios da plataforma Youcubed, que preconiza o ensino colaborativo da matemática e é desenvolvida pela Universidade de Stanford, nos EUA (o material em português é disponibilizado pelos institutos Itaú Cultural e Sidarta, este como responsável pelo projeto Mentalidades Matemáticas).
A pesquisadora Jo Boaler, criadora do Youcubed, explicou à BBC News Brasil em 2019 que o objetivo principal é desmistificar a ideia de que a matemática é uma disciplina em que apenas poucas pessoas “especiais” conseguem se sair bem.
O “cérebro matemático”, argumentou Boaler, é estimulado ou atrofiado por nossas próprias crenças em torno de nossas habilidades, e também pela forma como a matemática nos é ensinada.
“Há algumas razões pelas quais acreditamos que somos ruins em Matemática, e a primeira é a ideia equivocada de que ou você nasce com um ‘cérebro matemático’ ou não terá aptidão”, disse ela na ocasião.
“Muita gente acredita nisso e, na primeira vez em que enfrenta alguma dificuldade, passa a pensar: ‘bem, então não tenho um cérebro matemático’ e consolida uma visão negativa (de si) a partir daí.”
Para completar, opinou Boaler, a Matemática muitas vezes é ensinada “de um modo incrivelmente chato, como se fosse uma matéria sem sentido, o que afasta as pessoas. A combinação disso (percepções pessoais e modelo de ensino) trouxe muitos danos.”
A ideia do Youcubed é que a Matemática deixe de ficar na memória dos estudantes como algo assustador e traumático passe a ser vista como uma “habilidade essencial à vida”, que ajude na observação de padrões da natureza e na compreensão de dados do dia a dia.
Nesse contexto, os erros não são criticados ou inibidos, mas sim exaltados como uma oportunidade de aprendizado e discussão.
“Para mim, o principal é mudar a forma como as pessoas veem e se sentem em relação à matemática, de gestores a alunos. A mensagem principal é que todos podem aprender Matemática”, explica Elisa Sena, professora e pesquisadora da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) que coordena a célula do projeto Mentalidades Matemáticas no Estado alagoano.
Há diversas células em outros Estados do país, que se reúnem virtualmente em encontros periódicos para discutir exercícios e atividades que podem ser aplicados em sala de aula.
Tradicionalmente, diz Sena, professores de matemática muitas vezes “fazem perguntas curtas (de certo ou errado) aos alunos, que não permitem que estes expliquem o caminho que usaram para chegar à resposta. Mas, mais importante do que o certo ou errado, é o raciocínio que o aluno fez. Até para a pessoa se sentir capaz – e, ao se sentir capaz em Matemática, a pessoa sente que é capaz de muito mais coisas e escolhas na vida.”
Sena acha que esse incentivo é especialmente importante para meninas, historicamente desestimuladas a seguir carreiras nas áreas de exatas, “como se a mulher não tivesse um ‘cérebro matemático'”.
Alunos participativos
Na sala de aula de Claricy Silva em Santana de Ipanema, o que chamou sua atenção foi o fato de a atividade sobre Lionel Messi ter atraído o interesse de estudantes até então pouco participativos.
“Um aluno cuja voz eu mal ouvia, ainda mais de máscara, começou a falar muito – e esse é o tipo de coisa que anima um professor”, conta ela.
“Os demais alunos também participaram quando souberam que não tinha uma resposta pronta para a atividade. Ficaram curiosos com o Messi e com a ideia de que ‘ele é tão famoso e mesmo assim erra tanto (em chutes a gol).”
A estratégia de engajar os alunos com atividades diferentes se tornou mais importante para Silva desde agosto, na volta às aulas presenciais, depois de mais de um ano de ensino remoto na rede estadual.
“Minha turma é muito dedicada, mas a gente viu uma divisão na pandemia, entre quem teve recursos ou não. Os alunos que tiveram acesso à internet quase não sentiram (a disrupção das aulas), mas quem não teve e precisou depender do material impresso se atrasou. (…) A nossa luta agora é para recuperar a confiança dos alunos, porque muitos não queriam voltar (para a escola). Sem acolhimento e sem achar que são capazes, nosso medo era de que eles não voltassem.”
Os índices da escola ainda são baixos – em linha com os indicadores gerais brasileiros no ensino da matemática. Segundo o Ideb (Índice de desenvolvimento da educação básica, que mede o ensino nas redes públicas) de 2019, só 7% dos alunos da escola de Silva concluem o 3° ano do ensino médio com aprendizado adequado em Matemática e Resolução de Problemas, mesmo índice observado na média do Brasil.
Para Claricy Silva, a adoção de atividades baseadas na matemática do dia a dia marcaram um ponto de virada em seu próprio cotidiano como professora, enquanto lamenta o fato de docentes de Matemática carregam a fama de “carrascos”.
“É uma luta constante a de desmistificar a Matemática, e de ir contra a tendência de reproduzir a forma como a matemática nos foi ensinada”, conta ela – que vinha se afastando do dia a dia em sala de aula em favor de outras atividades profissionais, mas vê agora uma nova chama se acender.
“Minha realização é essa turma (do 2° ano do ensino médio). Eu estava desacreditada – é triste, porque às vezes você ensina, ensina, e parece que ninguém aprende. Mas agora (com a adoção dessas novas atividades) tive a certeza de que a minha paixão é a sala de aula.”