Com certeza em algum momento da sua vida você se deparou com alguém escrevendo a frase “Vem meteoro” e, abaixo de tal frase, a publicação de alguma matéria com uma declaração absurda de Bolsonaro, por exemplo, quando o presidente afirmou que as pessoas poderiam virar jacaré ao se vacinarem contra a Covid.
Pois bem, essa frase tão comum nas redes é a base do roteiro de “Não olhe para cima”, nova produção da Netflix, que estreou na última sexta-feira (24).
A trama inicia com a personagem Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence), uma pós-graduanda em astronomia da Universidade de Michigan que, ao fazer os seus estudos cotidianos no telescópio da instituição, descobre um novo cometa. Diante disso, ela convoca o seu futuro orientador no doutorado, o Dr. Randall (Leonardo DiCaprio) e, quando o grupo de pesquisadores resolve calcular a rota do cometa descobrem que ele está preste a colidir com a Terra e, por conta de seu tamanho, levará o planeta a uma nova extinção.
Após a descoberta nada agradável, eles entram em contato com a NASA e travam conversa com o Dr. Teddy Oglethorpe (Rob Morgan). Diante da destruição iminente, a dupla de pesquisadores é convocada para uma reunião com a presidenta Orlean (Meryl Streep) que aqui simboliza um mix de Jair Bolsonaro e Donald Trump em mais uma atuação afiada de Streep.
Eleições, negacionismo e redes sociais
Após muito chá de cadeira os pesquisadores são recebidos pela presidenta que de antemão lhes dá 20 minutos para explicarem do que se trata a descoberta. A cena é um completo absurdo, mas o que a torna ainda mais absurda é que sabemos que ela se dá fora das telas…
Ao receber a notícia, a presidenta Orlean declara aos dois pesquisadores que não poderá divulgar tal notícia agora, pois estão às vésperas da eleição do Congresso, também conhecida como eleição de meio de mandato. Após a reunião, os pesquisadores decidem que irão à imprensa divulgar a descoberta que pode colocar fim à vida no planeta Terra.
A partir deste momento entra em cena a direção engenhosa de Adam MacKay, que venceu o Oscar com o filme “A grande aposta” (2019) e um Emmy de melhor direção com a série “Succession” (2020).
Levados a um programa de grande audiência da televisão estadunidense, os pesquisadores se tornam alvo do espetáculo da cultura de massas, mas que agora também conta com as redes sociais e as personalidades extrema-direita que também contam com programas de televisão e perfis de grande alcance nas redes sociais.
A sensação ao longo de desenvolvimento do filme com a sua edição e fotografia afinadas é que estamos dentro de uma história que vivenciamos cotidianamente: no caso, sob o governo de políticos de que negam a potencialidade do vírus, que afirmam que ele é uma estratégia comunista para subverter a ordem e acabar com a família.
No caso de “Não olhe para cima”, o cometa assume o lugar do vírus, mas os subterfúgios utilizados para que as pessoas esqueçam que há um meteoro vindo em direção à Terra são os mesmos: “sigam as suas vidas”, “a economia não pode parar” etc etc.
Não olhe para cima e a crítica aos gurus da tecnologia
Além de toda a crítica feita em torno do poder tomado por políticos negacionistas e suas famílias – o filho da presidenta Orlean é o seu Chefe de gabinete -, o roteiro de “Não olhe para cima” também faz um severo julgamento aos gurus da tecnologia que agora vendem soluções extraplanetárias.
O personagem Peter Isherwell (Mark Rylance), que é o criador do celular BASH, do qual ele se orgulha ser capaz de prever como as pessoas vão morrer, é um mix de Jeff Bezos e Elon Musk.
Em determinada cena do filme, a qual não daremos detalhes por motivos de spoiler, é impossível não se lembrar da viagem de Bezos ao espaço: no auge da pandemia, com milhares de pessoas passando fome e um vírus correndo o planeta, ele foi às redes agradecer aos trabalhadores da Amazon por terem tornado possível o seu passeio de 11 minutos pelo espaço, o qual custou, em média US$ 28 milhões (R$ 146 milhões), mas este valor é o da passagem…
Hoje, Bezos e Musk trabalham para a consolidação do “turismo espacial” e de acordo com entrevistas de ambos os empresários a empreitada está sendo um sucesso… vamos ao espaço para esquecer a miséria da Terra.
O roteiro do longa, que também é assinado por Adam MacKay, não alivia para tais personagens e para o modo de produção capitalista como um todo: seja um cometa, seja o coronavírus, o lucro sempre virá antes das pessoas.
Mas, junto com os gurus da tecnologia, com políticos medíocres que chegam ao poder, há as redes sociais que também servem de sustentação para tais narrativas.
Ao fim e ao cabo, é a sociedade do espetáculo prevista por Guy Debord, mas, em um nível mais nocivo do que desenhado pelo filósofo, que, diante do desenvolvimento da publicidade como orientadora espiritual da vida, cometeu suicídio.
Diante da narrativa de “Não olhe para cima”, Guy Debord previu apenas o começo da derrocada da sociedade moderna.
Não olhe para cima é a crônica do nosso tempo
Muita gente pode, ao terminar de assistir “Não olhe para cima”, pensar: ‘poxa, mas isso perto do Brasil é nada’, mas provavelmente a missão principal do longa é nos lembrar da barbárie que estamos vivendo.
Trump deixou o poder, mas ainda é uma figura influente na discussão política estadunidense, o “trumpismo” pode exercer um poder de decisão nas eleições de meio de mandato que vão ocorrer nos EUA no ano que vem.
No Brasil ainda temos um ano de governo Bolsonaro pela frente… na verdade, o que o filme quer informar, a partir de sua narrativa e estética tragicômica, é que: já pode ser tarde demais.
Para muitos o tom pode ser um tanto amargo, visto que em várias regiões do mundo, principalmente no Ocidente, governantes da extrema-direita começam a perder a disputa pelo poder.
Mas, para além do poder central, há a comunicação de massas que continua a lucrar com “políticos idiotas e negacionistas”, pois rendem muita audiência, cliques e views. Basta lembrar da mais recente “polêmica”, quando um ator brasileiro criticou o reality Big Brother Brasil e se tornou alvo do ódio nas redes… nem críticas contundentes são mais permitidas.
“Não olhe para cima” é um filme que vai além do que está posto na tela, é uma advertência corrosiva sobre o nosso tempo e o que estamos fazendo com ele.