Íngrid Olderöck, a torturadora que inspirou curta chileno indicado ao Oscar
Cecilia Barría
Conhecida como “a mulher dos cachorros”, Íngrid Felicitas Olderöck Bernhard foi uma ex-agente da Direção de Inteligência Nacional (DINA), o serviço de segurança criado no Chile pelo general e ditador Augusto Pinochet após a derrubada de Salvador Allende em 1973.
Mas ela não era apenas mais uma agente do órgão encarregado de torturar e eliminar os opositores políticos do regime militar.
Olderöck, ex-oficial dos carabineros (polícia no Chile), tornou-se a mulher mais importante dentro da DINA. Uma de suas funções era o treinamento de dezenas de jovens agentes para enfrentar inimigos políticos.
Ela morreu aos 58 anos, de hemorragia digestiva aguda, sem ter sido condenada por nenhum crime.
Vítimas a acusaram de ter treinado cães para estuprar presos políticos nos centros de detenção onde muitos desapareceram — especialmente em um dos locais clandestinos de tortura mais brutais, “La Venda Sexy”, uma casa de dois andares em uma região de classe média na comuna de Macul, na cidade de Santiago, onde Íngrid Olderöck costumava agir.
Os agentes deram esse nome ao centro clandestino porque o método de tortura preferido era o abuso sexual, segundo revelou o primeiro Relatório da Comissão Nacional de Prisão Política e Tortura, mais conhecido como relatório Valech.
Cachorros adestrados para abusos sexuais
Sobreviventes que passaram pela Venda Sexy, como Beatriz Bataszew, denunciaram o uso de cães como método de tortura, além do enforcamento, afogamento, simulações de fuzilamentos, gestações e abortos forçados e choques elétricos nos genitais.
“Na Venda Sexy havia um cachorro chamado Volodia, adestrado para violar sexualmente as mulheres”, disse ela em declarações à imprensa local.
Alejandra Holzapfel, detida com apenas 19 anos naquela casa, contou uma história semelhante.
Fui “abusada sexualmente por um pastor alemão que os agentes da ditadura chamavam de Volodia”, disse Holzapfel ao jornal The Clinic.
“Íngrid comandava o animal, enquanto os outros torturadores obrigavam os detentos a ficar em posições que facilitavam o abuso. Homens e mulheres que passaram pela Venda Sexy foram vítimas dessa atrocidade.”
Olderöck negou todas as acusações e nunca foi submetida a um processo judicial.
Sua figura voltou ao debate público depois que ela se tornou a protagonista da animação Fera (no original, Bestia), curta indicado ao Oscar esta semana, dirigido pelo chileno Hugo Covarrubias.
“É um thriller psicológico sobre uma mente sinistra”, disse Covarrubias à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).
Na casa de Olderöck
Uma das poucas pessoas que teve a oportunidade de conversar longamente com a ex-agente foi a jornalista chilena Nancy Guzmán, que publicou o livro Íngrid Olderöck, la mujer de los perros (“Íngrid Olderöck, a mulher dos cachorros”, em tradução livre), no qual ela descreve Olderöck como a “a mulher mais poderosa e brutal da DINA”.
Em conversa com a BBC News Mundo, Guzmán conta que, em um dia de 1996, ela bateu na porta da casa de Olderöck na comuna de Ñuñoa.
“Apareceu uma mulher de corpo gordo, mãos grandes e voz rouca, com um cigarro na mão.”
Era a ex-agente.
“Ela estava usando uma saia florida, um suéter feito à mão vagamente rosa e botas curtas.”
“Ela vivia completamente sozinha”, diz Guzmán. “Ela não tinha filhos, não tinha marido.”
NA DINA, a agente era um comando por si só, diz a jornalista.
“Ela era especialista em tiro, paraquedismo, artes marciais, equitação e treinamento de cães.”
“Foi ela quem treinou um cachorro chamado Volodia, direcionado a estuprar mulheres e homens durante as sessões de tortura”, diz Guzmán.
“Há ex-detentos que sofreram esse tipo de tortura ou que viram isso acontecendo com outros. Todos lembram que uma das jovens, Marta Neira, chegou chorando desesperada e arrasada porque foi vítima do estupro do cachorro. Dias depois, Marta desapareceu. “
‘Sou nazista’
O pai de Íngrid Olderöck emigrou da Alemanha em 1925, aos 29 anos.
Ela e as irmãs, Hannelore e Karin, cresceram sob um sistema familiar muito rígido. As garotas não podiam falar em espanhol ou ter amigos chilenos.
Assim, elas cresceram praticamente isoladas.
“Sou nazista desde pequena, desde que aprendi que o melhor período que a Alemanha viveu foi quando os nazistas estavam no poder, quando havia trabalho e tranquilidade e não havia ladrões sem vergonha”, diz Olderöck no livro de Guzmán.
Quando os carabineros autorizaram admissão de mulheres em sua Escola de Oficiais, em 1967, Olderöck entrou no primeiro concurso.
Ela foi a primeira mulher paraquedista no Chile e na América Latina. Também dizia ser especialista em tiro, equitação e adestramento de cães, além de ser faixa azul em judô, praticar tênis, esqui e montanhismo.
Com essas credenciais, Olderöck rapidamente passou a fazer parte do serviço secreto dirigido pelo coronel Manuel Contreras, a DINA, e consolidou seu poder.
Uma bala na cabeça e outra na barriga
Mas em 1981 sua vida deu uma guinada.
Ao sair de casa, ela foi atacada por dois desconhecidos que atiraram contra ela à queima-roupa na cabeça e no estômago, mas não a mataram.
Na verdade, ele sobreviveu até o fim de seus dias com uma bala alojada na cabeça, diz Guzmán.
Membros do Movimento de Esquerda Revolucionária foram acusados do ataque.
No entanto, Olderöck sempre insistiu que o ataque havia sido planejado contra ela pelos próprios serviços de inteligência que estavam tentando puni-la por sua suposta tentativa de deserção.
Depois, ela se aposentou e, quando a Justiça a convocou para testemunhar nos casos de detentos desaparecidos de La Venda Sexy, ela fingiu estar com amnésia, diz Guzmán.
‘Não tinha piedade’
“Ela era uma mulher violenta e agressiva que não tinha piedade”, descreve a jornalista.
Em uma das entrevistas, a ex-agente disse a Guzmán que sempre tinha consigo três armas: uma pistola na bolsa, outra no criado-mudo e uma no forno da cozinha.
“Então ela se levanta, vai até a cozinha, volta e coloca a arma na mesa. Eu não sabia o que fazer.”
“Até eu dizer a ela: ‘Tira essa arma daqui, eu não gosto de armas’. Nesse momento, ela fica furiosa e diz que odeia pessoas como eu. Ela ficava repetindo para mim: ‘Eu te odeio, eu odeio pacifistas'”.
Em outra ocasião, Olderöck disse à jornalista para ter cuidado porque havia uma organização ativa de ex-agentes chamada DINITA e que “qualquer coisa poderia acontecer com ela (Guzmán)”.
“Ela era uma personagem terrível em um mundo de horror”, reflete a escritora. “As sociedades têm esses monstros. E esses monstros não acabam junto com ditaduras. Os monstros estão permanentemente nas sociedades.”