Semana de Arte Moderna: o guarda-roupa modernista de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade
Julia Braun
A importância de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade para a história cultural brasileira é indiscutível. O casal que permaneceu junto por grande parte da década de 1920 influenciou de forma contundente o mundo da literatura e das artes plásticas por meio de suas obras e da defesa do modernismo.
Mas, para além de sua produção artística, o poeta e a pintora paulista reverberam há cem anos no imaginário nacional também pelo próprio ato de vestir.
Tarsila e Oswald conheciam muito bem o valor da moda e das aparências em seu processo de afirmação como artistas no Brasil e na Europa. E ao mesmo tempo em que usaram as roupas para deixar sua marca, também colaboraram para a definição estética do movimento modernista.
A conclusão faz parte de uma extensa e inédita pesquisa desenvolvida pela professora de história do vestuário e da moda Carolina Casarin.
Em seu livro O Guarda-Roupa Modernista, lançado pela Companhia das Letras no bojo das comemorações do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, a autora revela como os ideais modernistas e as contradições do movimento podem ser compreendidos a partir da escolha das roupas de dois notáveis intérpretes do Brasil.
“As roupas contribuíram para o projeto artístico de elaboração de uma estética moderna e nacional, e a ideia de ‘brasilidade modernista’ se inscreveu na aparência e nos trajes do casal”, afirma Casarin.
Dinâmico e exuberante
A pesquisa foi levantada a partir de diferentes registros da época – vestimentas, fotografias, pinturas, obras literárias, correspondências, depoimentos e recibos — e conseguiu, de certa forma, reconstruir o guarda-roupa de Tarsila e Oswald na década de 20.
O período foi o auge da fama do casal, que ficou junto entre 1923 e 1929, e ganhou o apelido de Tarsiwald do amigo e também poeta modernista Mário de Andrade.
Segundo Carolina Casarin, os dois artistas merecem destaque pela forma vanguardista com que se vestiam, mas de formas distintas.
“O guarda-roupa modernista de Oswald é dinâmico e se adapta muito bem às diferentes situações sociais, enquanto o da Tarsila é luxuoso e exuberante”, disse a pesquisadora em entrevista à BBC News Brasil.
Mas apesar das diferenças, o casal construiu junto sua marca visual. Foi Oswald, aliás, quem incentivou Tarsila a conhecer ateliês e costureiros arrojados na Europa para compor seu visual e criar um estilo próprio.
“A imagem do casal é uma criação compartilhada e é perceptível o quanto eles traçaram um percurso no mundo da moda desde que começaram a se relacionar”, diz.
“Os dois sempre tiveram um gosto pela estética, mas a partir do momento em que se conhecem e se aproximam definitivamente da arte moderna, sua a aparência se torna mais arrojada e ousada”.
Homem de negócios e excêntrico vanguardista
E apesar da beleza e das roupas de Tarsila terem sempre sido elogiadas e alardeadas ao longo da história, a figurinista acredita que pertence a Oswald o título de mais arrojado do casal.
“Oswald tinha uma aparência geral mais moderna que Tarsila. Ele adotou já na década de 1920 um estilo com referências muito joviais que só estourou de fato no Brasil nos anos 1960”, diz.
No guarda-roupa do poeta havia muitos trajes coloridos e estampados, que ele utilizava com sobreposições pouco comuns na época. Oswald também era adepto dos colarinhos moles, diferentes dos engomados usados pela maior parte dos homens na época davam mais conforto e deixavam o peito masculino à mostra.
Há registros ainda do escritor utilizando um chapéu palheta — que aparece em várias fotografias dos modernistas e remonta ao uniforme dos remadores — e paletó sem colete, algo pouco comum na década de 1920.
Em seu livro, Carolina Casarin também ressalta a ótima capacidade que Oswald possuía de transitar muito bem entre visuais descontraídos e mais formais.
“Na alfaiataria dinâmica de Oswald de Andrade, cabem roupas que transitam do homem de negócios burguês ao excêntrico vanguardista”, diz. “A verdade é que ele sempre foi muito contraditório e estava em constante mudança.”
Artista exuberante
Já no closet de Tarsila o que não faltavam eram peças luxuosas da alta-costura europeia. Durante os anos 1920, a pintora foi diversas vezes a Paris e, em todas as suas viagens, aproveitava para visitar ateliês conceituados.
A partir de 1923 e até o final da década, os costureiros franceses Jean Patou e, mais intensamente Paul Poiret, foram os grandes responsáveis pela aparência de Tarsila.
E a partir do momento que passa a vestir a alta-costura francesa, a artista sofre uma mudança em sua aparência, que se torna menos discreta. “As saias dos vestidos se encurtam, os braços aparecem, as roupas ganham camadas e ornamentos”, diz Casarin em sua pesquisa.
“A figura de mulher elegante e rica se converte na imagem da artista exuberante — e a escolha da grife [Poiret] participou dessa transformação”
Em uma das fotos mais famosas da artista, em que ela aparece em sua primeira exposição individual, na Galeria Percier em Paris, Tarsila está usando o vestido Écossais, da maison Paul Poiret.
Na imagem tirada em frente ao quadro Morro da Favela, é possível ver alguns detalhes da roupa de Tarsila: “As linhas do xadrez e a gola dupla, com sobreposição delicada de cassa de poá e bainha bordada em festão redondo”, segundo descreve Casarin.
Para a pesquisadora, o traje e a própria foto trazem elementos típicos do modernismo. Enquanto a maneira como o xadrez foi aproveitado na criação do vestido acaba por desenhar um grande losango centralizado na parte superior do corpo, a roupa também tem um caráter tradicional que lembra os vestidos xadrez utilizados no interior do Brasil.
“O losango é uma forma geométrica muito presente no modernismo e na arte moderna em geral. E quando está inserido no contexto da foto, o Écossais transmite também uma mensagem modernista”, explica Casarin.
“E ao mesmo tempo que é arrojado, o vestido tem um caráter tradicional, de roupa caipira, que ressoa com o modernismo brasileiro.”
Outro traje utilizado pela artista e que pode ser relacionado diretamente com o conteúdo de suas obras é seu vestido de casamento.
A celebração da união com Oswald de Andrade aconteceu em outubro de 1926 e reuniu nomes como Júlio Prestes, o governador recém-eleito de São Paulo, e Washington Luís, o então presidente do Brasil e padrinho pelo lado do noivo.
O traje de noiva de Tarsila, também assinado por Paul Poiret, foi criado a partir da cauda do vestido de casamento da mãe de Oswald. Era de cor creme e tinha uma capa branca forrada de veludo creme, com gola em pé.
E apesar de o casamento ter sido bastante explorado por aqueles que escreveram sobre o modernismo brasileiro, não há imagens do dia da cerimônia. O próprio vestido de noiva é hoje apenas um conjunto de fragmentos, guardado na Pinacoteca de São Paulo.
“O vestido de Tarsila pode ser interpretado como uma roupa antropofágica por si só, pois ao mesmo tempo em que busca a ideia de tradição e origem brasileira ao utilizar parte da roupa da mãe de Oswald, também procura aquilo há de mais moderno no mundo por meio da atualização feita por Poiret”, diz Carolina Casarin.
O movimento antropofágico fez parte da primeira fase do modernismo no Brasil e surgiu a partir de observações feitas por Oswald Andrade. A ideia criada pelo escritor sugeria “devorar” a cultura enriquecida por técnicas importadas e promover uma renovação estética na arte brasileira.
Do luxo à pobreza
O relacionamento entre Tarsila e Oswald durou até 1929, quando a pintora descobriu que o marido tinha um caso e pediu imediatamente o divórcio.
No mesmo ano, com a crise de 1929, as famílias do casal perderam boa parte dos bens que tinham. Passado o auge do modernismo no Brasil, os artistas também deixaram de frequentar a alta sociedade com tanta frequência e desapareceram aos poucos dos olhos do público.
Sem dinheiro e deixados de lado, Oswald e Tarsila abandonaram a busca constante pela moda e por refinar sua aparência, de modo que o grande auge de seu guarda-roupa ficou restrito principalmente à década de 20.
“Eles eram muito ricos nos anos 20 e tinham muito dinheiro para gastar em roupas, mas faliram e a dinâmica se tornou inviável”, diz Casarin.
Ainda assim, o casal deixou uma marca profunda não só na história das artes plásticas e da literatura, mas também na moda brasileira.