Alvos durante e a pós o Reich: A saga dos gays perseguidos pelos nazistas
Homossexuais foram ‘caçados’, presos e enviados aos campos de concentração pelo regime nazista; pós-Guerra, muitos ainda continuaram sendo discriminados
Fábio Previdelli
Durante a Segunda Guerra Mundial, o regime nazista perseguiu e aniquilou cerca de 6 milhões de judeus. Entretanto, o grupo não foi o único a ser caçado incessantemente: negros, ciganos, Tersemunhas de Jeová, deficientes e homossexuais também se tornaram alvos do Terceiro Reich.
A perseguição contra o último grupo citado, aliás, começou a ocorrer bem antes do início do conflito — em 1º de setembro de 1939. Desde quando o Partido Nazistas ascendeu ao poder, em 1933, os homossexuais passaram a ser repreendidos.
Sob as leis do parágrafo 175 do estatuto do código penal alemão, os nazistas prenderam cerca de 100.000 homossexuais, sendo que pouco mais da metade desse número acabou sendo condenado. Em casos mais extremos, muitos foram levados aos campos de concentração.
Embora, segundo artigo publicado pelo Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum), nem todos os presos que foram enquadrados no parágrafo 175 fossem identificados como gays, qualquer homem que tivesse relações com outro homem poderia ser preso na Alemanha nazista — independentemente de como ele entendesse sua própria sexualidade.
O parágrafo 175
De acordo com o parágrafo 175 do estatuto do código penal alemão, era proibido que qualquer ato sexual fosse praticado entre homens, o mesmo não se aplicava às mulheres, conforme aponta o USHMM.
O estatuto fazia parte da Seção Treze do Código Penal Alemão, que regulamentava os chamados “Crimes e Ofensas contra a Moralidade”. Bigamia, incesto, agressão sexual e bestialidade também se enquadravam no artigo.
Embora o parágrafo 175 fizesse parte do código penal alemão desde o período imperial alemão (1871-1918), e também se fez presente durante a República de Weimar (1918-1933), ele se tornou ainda mais rígido quando o Terceiro Reich assumiu o poder. Importante ressaltar que o artigo foi aplicado de forma diferente de acordo com os governos e regimes citados.
Para se ter ideia disso, apesar do parágrafo 175 criminalizar os atos sexuais entre homens, se identificar como gay nunca foi considerado um crime na Alemanha. Entretanto, com o nazismo, a perseguição ao grupo se tornou mais brutal e constante.
A consolidação de comunidades gays pré-Guerra
Na parte final do século 19, as comunidades gays floresciam pela Alemanha. Com o crescimento, também se tornava mais frequente o debate sobre a natureza da sexualidade humana, não só na Europa como também nos Estados Unidos.
A Alemanha encabeçava essa discussão, principalmente por conta do parágrafo 175, que foi promulgado em 1871. As condições políticas e sociais da época permitiu com que grupos fizessem campanhas públicas em prol da descriminalização das relações homossexuais entre homens e pela revogação do parágrafo 175. Assim, iniciou-se a organização de grupos com esses ideais.
Além do mais, os adeptos ao movimento passaram a se socializar mais abertamente em bares e outros locais de encontro. A relação os ajudou a criarem grupos e formarem redes comunitárias.
Foi justamente por conta dessa relação que também surgiu um novo vocabulário, como “warer Bruder” (‘irmão caloroso’, em tradução livre); “gleichgeschlechtlich” (‘orientado pelo mesmo sexo’) e “homosexual” (‘homossexual’), explica o USHMM.
Um panfleto, datado de 1869, usado para defender a descriminalização da relações sexuais entre homens usava alguns termos que se tornaram ‘comuns’ com o passar dos anos, como “dritten Geschlecht” (‘terceiro sexo); “schwul” (que, em inglês, muitas vezes é traduzido como ‘gay’); e “Homossexualität” (‘homossexualismo’) — embora, hoje, essa nomenclatura seja considerada pejorativa.
Logo, as palavras alemãs passaram a ser adotadas também em inglês e francês. Com o passar do tempo, os termos começaram a fazer parte do léxico internacional sobre sexualidade. Apesar de atualmente não serem amplamente aceitas, elas foram as primeiras tentativas de descrever a orientação sexual.
Os gays na República de Weimar
Apesar da Alemanha viver um período de instabilidade política e econômica durante a República de Weimar, as comunidades gays seguiram em pleno crescimento, evidenciando um período de maior liberdade cultural e artística que a sociedade da época vivia.
Desta forma, a discussão entre sexo e sexualidade passou a fazer parte cada vez mais recorrente da sociedade, apesar de existirem pontos de discórdia na política e cultura — especialmente em grandes centros como Berlim, Hamburgo, Frankfurt e Colônia.
Agora, a luta pela descriminalização da homossexualidade se tornou ainda maior, principalmente com o fortalecimento do Comitê Científico Humanitário (em 1897) e criação da Liga dos Direitos Humanos (na década de 1920).
Essas instituições, junto com outros grupos reformistas, lutavam por novas abordagens legais, como a legalização da prostituição, o controle de natalidade e o aborto, temas polêmicos até a atualidade.
Mesmo com a abertura, nem todos os alemães viam com bons olhos as discussões públicas sobre o tema, visto que parte da população enxergava essa agenda reformista como parte das tendências decadentes que, de maneira excessiva, permissiva e imoral, caracterizavam a cultura de Weimar.
Outro fato que incomodou parte da população foi o aumento da visibilidade do sexo em peças publicitárias, no cinema e em diversos pontos da vida cotidiana. Desta forma, grupos de direita, centristas e instituições religiosas conservadoras passaram a promover suas própria ‘versão’ da cultura alemã, enraizando essa visão nas áreas da música e literatura.
Por conta disso, muitos grupos mais tradicionais começaram a culpar judeus e comunistas por “corromper” a cultura alemã, segundo aponta o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum).
Um exemplo disso aconteceu com o médico judeu Magnus Hirschfeld, fundador do Instituto para o Estudo da Sexualidade, em Berlim, em 1919. Pacifista e esquerdista, passou a ser atacado por conta de sua origem judaica e sua opinião política.
Em contrapartida, apesar de todas as situações contrárias já citadas, as comunidades gays passaram a se desenvolver como nunca se havia visto. Desta forma, diversos estabelecimentos destinados ao grupo surgiram, sendo a boate Eldorado, em Berlim, um dos mais famosos entre eles.
Jornais e cartilhas gays também surgiram, como o Die Freundschaft (‘Amizade’) e o Der Eigene (‘seu próprio homem’), que buscavam educar os leitores sobre a sexualidade, além de divulgar poemas e contos.
Esses veículos ainda dispunham de uma área específica para anúncios pessoais e informações sobre locais de encontro para gays. A comunidade, em geral, passou a ser mais aceita nas principais cidades alemãs, embora encontrasse uma receptividade menor em cidades menores e áreas rurais.
O nazismo e o caso Ernst Röhm
Pouco antes de chegar ao poder, Adolf Hitler e outros líderes nazistas já repudiavam a cultura gay fomentada na República de Weimar. Para eles, a questão era vista como decadente e degenerada. Isso alia-se ao fato de importantes nazistas, como Alfred Rosenberg (futuro conselheiro de Hitler) e Heinrich Himmler (que viria ser Reichsführer da SS) eram abertamente homofóbicos.
Apesar da oposição a homossexualidade não fazer parte da plataforma do Partido Nazistas no início da década de 1920, o grupo se opôs aos esforços para a descriminalização das relações sexuais entre homens e a revogação do parágrafo 175. De acordo com o USHMM, os nazis viam as relações sexuais como um vício que levaria à ruína do povo alemão.
Entretanto, membros importantes do partido tinham visões mais variadas e ambivalentes sobre o assunto. Dentro do partido, aliás, é importante ressaltar a figura de Ernst Röhm — líderes da SA, grupo paramilitar nazista —, que usava o termo ‘gleichgeschlechtlich’ (‘orientado pelo mesmo sexo’) para de descrever.
Apesar disso, Röhm entendia que sua orientação sexual não era conflitante com a doutrina nazista e tampouco comprometia seu papel de liderança na SA. Ernst via que a legalização das relações sexuais tinha muito mais ligação com uma derrubada da moralidade dominantes do que com o encorajamento dos direitos democráticos liberais. Certa vez, o líder da SA escreveu que a “prudência” de alguns de seus companheiros nazistas “não me parece revolucionária”.
Embora a sexualidade de Ernst Röhm fosse um “segredo aberto” dentro do Partido Nazista, sua orientação sexual se tornou alvo de polêmicas em 1931, quando um jornal esquerdista transformou o fato em uma notícia pública.
Assim, o Partido Social Democrata, de esquerda moderada, usou a questão como propaganda eleitoral. Apesar da controversa, Hitler o defendeu. Röhm ficou na liderança da SA até 1934, quando o próprio Führer o assassinou (algo que será explicado mais abaixo).
1933-1934: Os gays e o regime nazi no poder
Em 30 de janeiro de 1933, Hitler assumiu o poder como Chanceler. Um de seus primeiros atos foi desmantelar os grupos e a cultura que os gays desenvolveram durante a República de Weimar. Com isso, bares e pontos de encontro foram fechados entre fevereiro e março daquele ano.
Mesmo assim, alguns bares continuaram funcionando, em áreas subterrâneas, até perto do fim da década. Entretanto, a rigidez das leis nazistas e o aumento da vigilância policial tornou a relação entre homens gays muito mais difícil.
Outra ação protagonizada pelo Terceiro Reich foi o fechamento de jornais e revistas destinados ao público gay, além da dissolução de associações ligadas ao público homossexual.
Em maio de 1933, o Instituto de Ciências Sexuais, de Magnus Hirschfeld, teve suas atividades encerradas à força. Os escritos de Hirschfeld, inclusive, foram destruídos durante a Queima de Livros na Alemanha Nazista.
À época, novas leis também foram implementadas no parágrafo 175, o que permitiu que homens gays fossem presos e detidos sem julgamento entre o final de 1933 e o início de 1934.
A polícia alemã, através de instruções do regime nazista, passou a prender pessoas com condenações anteriores por crimes sexuais, como exibicionismo público, relações sexuais com menores e incesto. Os presos incluíam vários homens gays, alguns dos quais foram enviados aos primeiros campos de concentração do regime.
Em 1934, a Gestapo orientou que as polícias locais passassem a enviar listas de todos os homens que eram suspeitos de se envolverem com outros homens. Popularmente, esse documento passou a ser conhecido como “listas rosas”.
1934-1936: a perseguição aumenta
Dali em diante, a perseguição contra os homens gays passaram a ser mais recorrentes. Além disso, três eventos evidenciaram essa radicalização da opressão: o primeiro deles é o já citado assassinato de Ernst Röhm.
A morte de Röhm e outros líderes da SA, entre junho e julho de 1934, mudou a forma como a propaganda nazista passou a encarar a homossexualidade.
Segundo o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum), a ordem dos crimes partiu de Hitler, que serviu como uma demonstração de força na luta pelo poder nos níveis mais altos do governo alemão e do Partido Nazista.
Conforme recorda matéria publicada pela equipe do site Aventuras na História, Röhm pressionou seus aliados para fazer uma Segunda Revolução Nazista, que instauraria o socialismo no país. Após a morte de Ernst Röhm, a propaganda nazista usou a sexualidade do ex-líder da SA para justificar o ato.
O segundo evento diz respeito ao período de junho de 1935, quando o parágrafo 175 foi revisado. Além da proibição as relações sexuais entre homens, a nova versão nazi transformou os comportamentos íntimos e sexuais dos gays como um ato criminoso.
A revisão também permitiu que atos não consensuais e coercitivos poderiam fazer com que os infratores pegassem pena de até dez anos de trabalhos forçados em prisões. De acordo com o USHMM, a perseguição contra homossexuais se tornou muito maior do que antes.
O último ponto remete ao ano de 1936, quando Heinrich Himmler estabeleceu o Escritório Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto. O Reichsführer da SS enxergava tanto a homossexualidade quanto o aborto como ameaças à taxa de natalidade alemã, o que, em sua visão, poderia comprometer o destino do povo alemão.
A perseguição contra os gays chega ao limite
Em 1935 e 1936, as medidas contra a homossexualidade se tornam mais intensas. Neste ponto, o partido nazista deixa de se concentrar no fechamento de bares e pontos de locais gays e passa a focar em uma nova estratégia: a prisão individual.
Na visão do partido, esses grupos eram “infratores homossexuais” e, portanto, deveriam ser considerados inimigos do Estado. Desta forma, a Kripo (polícia criminal) e a Gestapo (polícia política), passaram a realizar campanhas contra a homossexualidade, o que incluía severos métodos de interrogatório e tortura.
Com as informações obtidas através de denúncias anônimas, homens eram interrogados sobre suas possíveis violações ao parágrafo 175. Se nenhuma prova fosse obtida, eles eram soltos, mas, em caso contrário, poderiam ser enviados diretamente aos primeiros campos de concentração nazistas.
De acordo com o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum), os denunciantes se referiam aos acusados como “afeminados”, não-masculinos” e até mesmo como “perversos”.
As estratégias dos agentes nazistas se mostraram muito eficazes, visto que os interrogatórios repletos de abuso psicológico e as sessões brutais de tortura fizeram com que cada vez mais homens gays fossem descobertos e incriminados — o efeito dominó fazia com que um acabasse incriminando o outro e assim por diante.
No fim de 1933, a Justiça alemã havia introduzido a castração química como uma prática legal, embora, na prática, ela só fosse aplicada caso um condenado consentisse com o ato — visto que as penas poderiam reduzidas em caso de aceitação.
Durante a Segunda Guerra, porém, os presos enquadrados no parágrafo 175 acabou diminuindo, visto a necessidade de reforçar o Exército nazista se fez maior. Assim, homossexuais foram recrutados, inclusive alguns condenados, mas participavam do conflito em batalhões com importância secundária.
Os gays em campos de concentração
Isso não significa que as prisões não continuaram, segundo o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum), cerca de 100.000 homens foram enquadrados no parágrafo 175. Deste montante, pouco mais da metade (53.400) foi condenado, e entre 5.000 e 15 mil foram presos em campos de concentração como “infratores homossexuais”.
Por lá, eles eram obrigados a usar um triângulo rosa em seus uniformes, uma forma de identificá-los dentro do sistema carcerário.
O símbolo os colocava como um grupo distinto dentro dos campos, o que os tornavam um dos mais explorados e abusados.
Além de serem constantemente alvos de abusos físicos, o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum) aponta que o grupo também sofria abuso sexual de guardas de campo e de companheiros de prisão.
Em Buchenwald, por exemplo, os triângulos rosas foram vítimas de experimentos médicos desumanos.
A partir de 1942, os comandantes dos campos obtiveram, oficialmente, a autorização para que o grupo fosse submetido a castração forçada.
Apesar de todo o preconceito contra os gays, o fato de muitos deles serem falantes de alemão fez boa parte dos triângulos rosa ocuparem cargos menos onerosos nos campos, como atuando em funções administrativas.
Um fato que torna o número de gays prisioneiros e mortos durante o Holocausto incerto é que, na grande parte das vezes, a sexualidade não era o principal fator por terem sido presos.
Assim, existiam muitos homens que foram enviados aos campos e classificados, antes de mais nada, como adversários políticos ou judeus — a sexualidade era, geralmente, um motivo secundário à prisão.
Diferente ‘tipos’ de gays
O fato de terem sido presos por razões diferentes também influenciou a forma como os gays eram tratados e respondiam aos horrores dos campos de concentração. O que ajuda a elucidar isso é que um gay ariano tinha muito mais opções e escolhas do que um homossexual cigano, por exemplo — visto que, junto aos judeus, este último grupo sofria perseguição por motivos raciais.
Além do mais, alguns deles, em especial os com mais recursos financeiros, podiam tentar esconder sua verdadeira orientação sexual, não só rompendo seus círculos de amizade como também se mudando de cidades ou até mesmo arrumando casamentos por conveniência.
Libertados dos campos, mas não do cárcere
Depois que os Aliados começaram a libertar os prisioneiros dos campos de concentração, na primavera de 1945, os triângulos rosa também foram soltos, mas não por muito tempo.
Afinal segundo o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (United States Holocaust Memorial Museum), eles permaneceram marginalizados pela sociedade, ainda mais pelo fato das relações homossexuais continuarem sendo algo ilegal na Alemanha por boa parte do século 20.
Isso, aliás, implicou com que muitos voltassem a ser presos por violarem o parágrafo 175 — o que resultou no encarceramento de milhares de gays pós-Guerra. Com medo de compartilharem suas histórias, muitas de suas memórias foram apagadas com o tempo.
Os direitos dos homossexuais só passaram a ser reconhecidos na década de 1990, quando o governo alemão reconheceu os “homossexuais perseguidos” como vítimas do regime nazista.
Em 2002, todos os sobreviventes tiveram suas condenações do parágrafo 175 anuladas, o que os tornaram elegíveis para receberem uma compensação monetária do governo alemão pela injustiça que viveram.
Já no século 21, o governo da Alemanha inaugurou, em Berlim, quatro memoriais para as vítimas do nazismo. Um deles, o Memorial aos Homossexuais Perseguidos pelo Nazismo, começou a funcionar em maio de 2008.