Por que a guerra da Síria continua após 11 anos?
Uma revolta pacífica contra o presidente da Síria, há 11 anos, se transformou em uma violenta guerra civil. O conflito deixou mais de 380 mil mortos, devastou cidades e atraiu outros países para a disputa.
Entenda por que a guerra dura tempo tempo — e suas terríveis consequências.
Como a guerra da Síria começou?
Mesmo antes do início do conflito, o país sofria com alto desemprego, corrupção e falta de liberdade política sob o presidente Bashar al-Assad, que sucedeu o pai, Hafez, após sua morte em 2000.
Em março de 2011, manifestações pró-democracia começaram na cidade de Deraa, no sul do país, inspiradas por levantes em países árabes contra governos opressivos, na chamada Primavera Árabe.
Quando o governo sírio reprimiu violentamente as manifestações, protestos exigindo a renúncia do presidente tomaram as ruas em todo o país.
A agitação se espalhou e a repressão se intensificou. Os partidários da oposição começaram a se armar — primeiro para se defender e depois para livrar suas áreas das forças de segurança do governo. Assad prometeu esmagar o que chamou de “terrorismo apoiado por estrangeiros”.
A violência aumentou rapidamente e o país entrou em guerra civil.
Centenas de grupos rebeldes surgiram e não demorou muito para que o conflito se transformasse em mais do que uma batalha entre sírios a favor ou contra Assad. Potências estrangeiras começaram a tomar partido, enviando dinheiro, armamento e combatentes.
À medida que o caos piorava, organizações jihadistas extremistas com seus próprios objetivos, como o grupo autoproclamado Estado Islâmico (EI) e a Al-Qaeda, se envolveram. Essa situação aumentou a preocupação da comunidade internacional.
Os curdos da Síria, que desejam o direito de autonomia mas não lutaram contra as forças de Assad, acrescentaram outra dimensão ao conflito.
Quantas pessoas morreram?
O Observatório Sírio para os Direitos Humanos, um grupo de monitoramento com base no Reino Unido e uma rede de fontes na Síria, registrou a morte de 499.657 pessoas mortas ao longo de mais de uma década.
Segundo a ONG, 160.681 vítimas eram civis, entre elas 25 mil crianças ou adolescentes. E se forem consideradas os óbitos não identificados, ou seja, não possíveis de confirmar de maneira independente, o número sobe para 610 mil.
O grupo estima que 47 mil civis morreram de tortura em prisões administradas pelo governo e que quase 53 mil mortes relatadas não foram documentadas devido à falta de informações.
Outro grupo de monitoramento, o Centro de Documentação de Violações, que conta com informações de ativistas de todo o país, registrou 238.716 mortes relacionadas à guerra, incluindo 144.956 civis, só fevereiro de 2022. A organização atribui 165.490 dessas mortes às forças do governo sírio e 35.610 às facções da oposição.
Quase 900 crianças foram mortas ou feridas apenas em 2021, de acordo com a Unicef, a agência da ONU para a infância.
Quais são os lados envolvidos na guerra?
Os principais apoiadores do governo têm sido a Rússia e o Irã. A Turquia, as potências ocidentais e vários países do Golfo apoiaram a oposição em vários graus na última década.
A Rússia – que já tinha bases militares na Síria antes da guerra – lançou uma campanha aérea em apoio a Assad em 2015, o que foi crucial para virar a guerra a favor do governo. Os militares russos dizem que seus ataques visam apenas “terroristas”, mas ativistas dizem que matam rebeldes e civis regularmente.
Acredita-se que o Irã mobilizou centenas de soldados e gastou bilhões de dólares para ajudar Assad. Milhares de milicianos xiitas armados, treinados e financiados pelo Irã — principalmente do movimento Hezbollah do Líbano, mas também do Iraque, Afeganistão e Iêmen — também lutaram ao lado do exército sírio.
Os EUA, Reino Unido e França inicialmente forneceram apoio para os grupos rebeldes que eles consideraram “moderados”. Mas eles priorizaram a assistência não bélica quando os jihadistas se tornaram a força dominante na oposição armada contra o governo.
Uma coalizão global liderada pelos EUA também realizou ataques aéreos e mandou forças especiais para a Síria a partir de 2014 para ajudar uma aliança de milícias curdas, árabes, assírias e turcas chamada de Forças Democráticas Sírias, em um território no noroeste do país que antes era dominando pelo Estado Islâmico. As Forças Democráticas Sírias (FDS) defendem um governo secular, democrático e federalista em território sírio.
A Turquia é um grande apoiador da oposição, mas seu foco tem sido apoiar facções rebeldes para conter a milícia curda YPG, acusando-a de ser uma extensão de um grupo rebelde curdo banido na Turquia.
Tropas turcas e rebeldes apoiados por elas tomaram trechos de território ao longo da fronteira norte da Síria e intervieram para impedir um ataque total das forças do governo ao último reduto da oposição, Idlib.
A Arábia Saudita, que deseja conter a influência iraniana, armou e financiou os rebeldes no início da guerra.
Enquanto isso,Israel tem estado tão preocupado com o que chama de “entrincheiramento militar” do Irã na Síria e com os embarques de armas iranianas para o Hezbollah e outras milícias xiitas que tem realizado ataques aéreos com frequência cada vez maior na tentativa de impedi-los.
Como o país foi afetado?
Onze anos de guerra impuseram muito sofrimento ao povo sírio.
Mais da metade dos 22 milhões de habitantes da Síria registrados antes da guerra fugiram de suas casas. Cerca de 6,9 milhões estão deslocados internamente, com mais de 2 milhões vivendo em acampamentos com acesso limitado a serviços básicos.
Outros 6,8 milhões são refugiados ou solicitantes de refúgio no exterior. Os vizinhos Líbano, Jordânia e Turquia, que abrigam 84% deles, têm sofrido para lidar com um dos maiores êxodos da história recente.
Em fevereiro de 2022, 14,6 milhões de pessoas vivendo na Síria precisavam de alguma forma de assistência humanitária, segundo a ONU, incluindo cerca de 5 milhões classificadas como em estado de necessidade extrema ou catastrófica.
Mais de 12 milhões de pessoas estão lutando para encontrar comida suficiente todos os dias – um aumento de 51% desde 2019 – e meio milhão de crianças estão cronicamente desnutridas.
Nos últimos dois anos, a crise humanitária foi agravada por uma desaceleração econômica sem precedentes, desencadeada pelas sanções dos EUA, a crise econômica libanesa e a pandemia de Covid-19.
A moeda síria perdeu cerca de 80% de seu valor em 2021 e a hiperinflação, que estava perto de 140% no início de 2022, fez com que os preços dos bens básicos disparassem. A taxa de pobreza atingiu 90% – algo sem precedentes.
A Síria também foi um dos países do Oriente Médio mais afetados pelo Covid-19, embora a verdadeira extensão da crise sanitária não seja conhecida devido à capacidade limitada sistema de saúde devastado e o péssimo acesso a testes. Mais de 3.100 mortes foram confirmadas até março de 2022, enquanto apenas 7,4% da população havia sido totalmente vacinada.
Bairros inteiros e infraestruturas vitais em todo o país também permanecem em ruínas. A análise de imagens de satélite realizada pela ONU sugere que mais de 35.000 estruturas foram danificadas ou destruídas apenas na cidade de Aleppo, antes de ela ser recapturada pelo governo no final de 2016.
E, apesar de seu status protegido, 599 ataques a pelo menos 350 instalações médicas foram documentados pela organização Médicos pelos Direitos Humanos até março de 2021, resultando na morte de 930 profissionais médicos. Tais ataques – a grande maioria dos quais foram atribuídos ao governo sírio e à Rússia – deixaram apenas metade dos hospitais do país totalmente funcionais.
Grande parte da rica herança cultural da Síria também foi destruída. Todos os seis locais considerados Patrimônios Mundiais da Unesco foram significativamente danificados. Extremistas do Estado Islâmico explodiram deliberadamente partes da antiga cidade de Palmira.
Os investigadores de crimes de guerra da ONU acusaram todas as partes de perpetrar “as violações mais hediondas”. “Os sírios”, diz seu último relatório, “sofreram grandes bombardeios aéreos em áreas densamente povoadas; sofreram ataques de armas químicas e cercos modernos nos quais os perpetradores deliberadamente deixaram a população faminta por meio de métodos medievais e restrições indefensáveis e vergonhosas à ajuda humanitária”.
Quem está no controle do país agora?
O governo de Assad recuperou o controle das maiores cidades da Síria, mas grande parte do país ainda está sob controle de rebeldes, jihadistas e das Forças Democráticas da Síria, sob a liderança dos curdos.
Não houve grandes mudanças nas frentes de batalha por dois anos. O último reduto da oposição remanescente está na província de Idlib, no Noroeste, e em partes adjacentes de Hama, no norte, e Aleppo, oeste do país.
A região é dominada por uma aliança jihadista ligada à al-Qaeda chamada Hayat Tahrir al-Sham, mas também é o lar de facções rebeldes convencionais. Estima-se que na região vivam 2,7 milhões de pessoas desabrigadas, incluindo um milhão de crianças, muitas delas em condições precárias.
Em março de 2020, a Rússia e a Turquia intermediaram um cessar-fogo para interromper uma ofensiva do governo na tentativa de retomar Idlib. Desde então, o conflito tem tido um período de relativa baixa atividade militar — mas isso pode mudar a qualquer momento.
No nordeste do país, as forças turcas e rebeldes apoiados por elas lançaram uma ofensiva contra as Forças Democráticas Sírias em outubro de 2019 para criar uma “zona segura” livre da milícia curda YPG ao longo do lado sírio da fronteira, e ocuparam 120 km de território desde então.
Para deter o ataque, as FDS fecharam um acordo com o governo sírio para o exército sírio retornar à região administrada pelos curdos pela primeira vez em sete anos. Apesar da presença de tropas sírias, ainda há confrontos regulares entre as FDS e as forças lideradas pela Turquia nas linhas de frente.
As células adormecidas do EI também continuam a realizar ataques frequentes e mortais.
Quando a guerra vai acabar?
Não há como prever o fim da guerra tão cedo, mas os negociadores concordam que é preciso encontrar uma solução política e não bélica. Mas as nove rodadas de negociações de paz mediadas pela ONU não avançaram, com o presidente Assad aparentemente sem vontade de negociar com grupos de oposição que insistem que ele deve renunciar como parte de qualquer acordo.
A Rússia, o Irã e a Turquia estabeleceram diálogos paralelos em 2017. Um acordo foi alcançado no ano seguinte para formar um comitê de 150 membros para a criação de uma nova constituição, levando a eleições livres e justas supervisionadas pela ONU.
A última rodada de negociações foi realizada em outubro de 2021. Depois da reunião, o enviado especial da ONU Geir Pedersen disse que era uma “grande decepção” que os membros do comitê tivessem conseguido encontrar um caminho comum.
Com o início do 12º ano de conflito, Pedersen afirmou que “uma solução militar é uma ilusão” e que uma solução política “é perfeitamente factível se houver vontade”.