A história do brasileiro negro e nordestino que impressionou Ho Chi Mihn
Ho Chi Mihn, figura-chave da independência do Vietnã em relação à França e da guerra em que os EUA foram vencidos, teve uma estadia forçada no Brasil durante alguns meses. Foi aqui que o líder comunista se impressionou com a história de um homem negro e nordestino, pouco lembrado na historiografia nacional.
José Leandro da Silva era um líder sindical ativo durante a Greve dos Marítimos, ocorrida no Rio de Janeiro no início dos anos 1920.
Conhecido como Pernambuco, ele foi baleado por policiais – e também jogou agentes no mar – durante a tentativa de incitar uma greve em um porto na cidade. O marinheiro sobreviveu e acabou condenado a 30 anos de prisão.
A história da vitória de Pernambuco na Justiça foi narrada por Ho Chi Minh em um texto chamado Solidariedade de Classes, no qual o líder vietnamita destaca a fraternidade entre as pessoas e discorre sobre o racismo.
Ele narra que, após uma série de protestos no país, foi realizado um novo julgamento no qual Pernambuco foi absolvido.
“O veredicto foi recebido com uma torrente de aplausos. E José, o grevista negro, deixou-se cair nos braços de seus companheiros e defensores, os delegados de trabalhadores brancos. Pois, apesar da multiplicidade de cores, existem apenas duas raças no universo: a dos exploradores e a dos explorados. E há apenas uma verdadeira fraternidade: a fraternidade proletária”, escreveu Ho sobre José Leandro da Silva.
Greve dentro de um navio
O início do século 20 no Brasil foi um período marcado por grandes conflitos nas relações sociais. A chegada de estrangeiros para substituir a mão de obra escrava nas fazendas e, posteriormente, nas cidades também trouxe ao país novas ideias políticas que acabaram por mudar as relações trabalhistas na época.
“Esses estrangeiros vêm ao Brasil com uma experiência de movimento socialista e encontram aqui espaço para desenvolver esse trabalho. Tanto que as forças de repressão do Estado brasileiro vão dizer que o movimento não é brasileiro”, disse Silvio Gallo, professor-doutor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Nesse contexto, trabalhadores de um dos navios da Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, estacionado no Rio de Janeiro, decidiram entrar em greve em 1921 por melhorias das condições de vida a bordo. Estavam fartos de tolerar “um regime de escravos” dentro dos navios, afirma Hamilton Santos, doutorando em história pela UFRJ.
Em fevereiro, a paralisação dos trabalhadores do navio ganhou força e se alastrou. “Numerosos operários da Companhia Cantareira abandonaram o trabalho e declararam-se solidários ao movimento”, noticiou a Folha da Noite.
O governo brasileiro recomendou à polícia força máxima para conter os grevistas. Enviou o navio de guerra Piauí para intimidar o movimento.
José Leandro da Silva era taifeiro – responsável pela limpeza de camarotes e de áreas comuns dos navios.
Comoção nos movimentos sociais
No dia 4 de março de 1921, ele tentou convencer outros marítimos a paralisar as atividades. Pernambuco acabou entrando em confronto com policiais que tentavam o impedir, jogando um deles ao mar. Ao se defender, também feriu outros com uma faca.
O grevista foi espancado por demais agentes e acabou gravemente ferido com cerca de 17 projéteis no corpo, segundo o texto escrito por Ho Chi Minh.
Apesar dos ferimentos, Pernambuco conseguiu sobreviver e foi preso. A notícia do ocorrido ocupou as manchetes do país, reforçando a ótica policial e desfavorável a José Leandro.
“O taifeiro [José Leandro] foi apresentado como uma figura ameaçadora da ordem social harmônica. [Ele era representado como uma figura] bestial, descontrolada, com poder de violência superior ao dos agentes da repressão estatal”, diz Hamilton Santos.
Pernambuco foi condenado a 30 anos de prisão pelo ocorrido. A condenação do grevista, no entanto, causou comoção entre os movimentos sociais.
Diversos esforços para arrecadação de recursos para o pagamento de advogados foram feitos e, cerca de três anos após o ocorrido, o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu um habeas corpus a José Leandro.
Logo depois, um novo julgamento foi marcado no Tribunal do Júri no qual Pernambuco foi absolvido pela Justiça em 1924. Movimentos sociais comemoraram o resultado nas ruas.
Ho Chi Minh no Brasil
Não há dados oficiais ou registros históricos, mas biógrafos dizem que Ho Chi Minh (1890-1969) esteve no Brasil provavelmente em 1912.
Ainda com o nome de Nguyen Tac Thanh (Ho Chi Minh quer dizer “aquele que ilumina” e foi adotado anos depois), o líder da unificação do Vietnã e das guerras contra a França e EUA viu de perto os conflitos sociais de um país que ainda respirava os ares de um longo período de escravidão e era influenciado pelos novos ventos de disputas sociais no começo do século 20.
Ho trabalhava na época como ajudante de cozinha em um navio francês chamado Admiral Tréville. Durante uma viagem à América do Sul, ficou doente e foi deixado no Brasil pela tripulação para tratar de uma doença que não foi especificada por historiadores.
Nos cerca de três meses em que aguardou a nova passagem do navio, Ho sobreviveu atuando como ajudante de cozinha em um restaurante que ficava em um hotel da Lapa.
“Ho Chi Minh morava em Santa Teresa, em uma pensão, trabalhava na Lapa e constantemente ia para o porto do Rio para ter notícias do navio que o levaria a continuar viagem”, disse Ariel Seleme, emissário diplomático brasileiro que morou em Hanói e estudou a passagem de Ho pelo Brasil.
Não há registros, porém, de um encontro entre Ho e Pernambuco – mesmo que possam ter frequentado os mesmos locais no Rio de Janeiro na mesma época.
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, o mais provável é que Ho Chi Minh tenha ficado sabendo da mobilização dos trabalhadores em prol de José Leandro por meio de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB).
Ho e Pereira se encontraram em Moscou para discussões acerca do movimento revolucionário em 1924.
“O artigo do Ho Chi Minh foi publicado em 1924, justamente depois do desfecho vitorioso [de José Leandro] e na ocasião em que Ho encontrou-se com o Astrojildo Pereira na União Soviética, porque os brasileiros estavam lá para oficializar o PCB. Muito provavelmente eles é que levaram a notícia do que tinha acabado de ocorrer no Brasil. Nesse momento Ho publicava crônicas sobre a luta dos trabalhadores em todo mundo, e publicou essa sobre os marinheiros do Rio”, afirmou o historiador Rafael Galante.
Segundo Pierre Brocheux, biógrafo francês de Ho Chi Minh, as viagens do líder vietnamita, incluindo ao Brasil, moldaram sua personalidade.
“Ho Chi Minh viajou ao redor do mundo não como turista, mas como marinheiro e descobridor. Portanto, ele observou atentamente o mundo e os povos, mas ao mesmo tempo construiu laços abertos e amigáveis. Ele se comportou assim não apenas com os trabalhadores, mas também com os intelectuais e artistas”, disse Brocheux.
“Depois de suas viagens, ele não se tornou um extremista, mas um pragmático com uma visão mais clara das coisas e dos homens. Portanto, ele estava convencido de que o socialismo era o futuro da humanidade, mas também disse que ‘para construir o socialismo deve haver socialistas'”, completou.
Intervenção artística
O artista plástico Pedro Rajão pretende reviver a figura de José Leandro por meio da arte na cidade – mais especificamente em algum muro próximo dos Arcos da Lapa, onde tanto José Leandro quanto Ho Chi Minh estiveram.
Rajão comanda o projeto Negro Muro, que busca homenagear personagens negros históricos com intervenções artísticas no Rio.
“José Leandro é uma figura negra completamente desconhecida e com uma história cinematográfica. Queria fazer uma homenagem ao Pernambuco, na qual Ho Chi Minh aparecesse também como líder e pessoa influente que foi”, disse.