As imagens escondidas em obras-primas
Jo Lawson-Tancred
A história da arte é repleta de obras de arte perdidas – pinturas e artefatos que foram destruídos, alterados ou até pintados por cima pelo artista e descobertos séculos depois.
Após a devastadora erupção do monte Vesúvio, na Itália, no ano 79 d.C., bibliotecas inteiras de antigos pergaminhos foram transformadas em carvão e, agora, são frágeis demais para serem desenrolados.
Uma das maiores obras-primas do artista holandês Rembrandt, A Ronda Noturna (1642), teve faixas cortadas de cada um dos lados para que pudesse passar pela porta da prefeitura de Amsterdã, na Holanda, onde foi instalada em 1715.
Nós aceitamos há muitos anos que poderemos nunca conhecer obras como essas tais quais elas eram. Mas, recentemente, essa premissa foi questionada.
À medida que a inteligência artificial vai se integrando à nossa vida diária, ela começa a ser utilizada para tentar restaurar artefatos culturais preciosos que foram perdidos com o passar do tempo.
Ao longo da história, não era incomum que os artistas reutilizassem suas telas, já que as novas às vezes eram difíceis de encontrar.
Um projeto que chegou às manchetes nos últimos anos, conhecido como Oxia Palus e liderado por dois estudantes de doutorado – o britânico George Cann e o irlandês Anthony Bourached -, vem tentando recuperar algumas obras que, atualmente, só conhecemos por meio de raios-x.
Suas imagens obtidas com inteligência artificial (a primeira delas veio a público em 2019) pretendem dar uma ideia da cor e da textura original dos quadros que foram perdidos porque suas telas foram repintadas.
Um dos exemplos é o Retrato de uma Jovem (cerca de 1917), do artista italiano Amedeo Modigliani. Nele, os pesquisadores trouxeram à vida uma mulher que o artista tentou esconder.
Acredita-se que essa mulher seja a escritora inglesa Beatrice Hastings, ex-amante do pintor, com quem ele teve um relacionamento notoriamente turbulento. Modigliani pode ter tentado apagar a memória de Hastings quando o relacionamento terminou em 1916, embora diversos outros retratos dela tenham sobrevivido.
Os pesquisadores converteram suas reconstruções em impressões 3D que estão sendo vendidas com o nome NeoMasters.
“Acho que as pessoas se interessam porque são como coisas novas”, declarou Bourached à BBC. “Seria incrível ver todas essas obras-primas, que existem, mas ninguém nunca viu porque ninguém iria raspar parte de uma pintura que vale milhões.”
Os pesquisadores estão atentos para que as manchetes não simplifiquem demais seu trabalho. “A notícia que chama a atenção é ‘inteligência artificial reconstrói uma pintura’, como se houvesse um botão que pressionamos e todo o trabalho está feito”, afirma Bourached.
Manchetes como essa podem dar a falsa impressão de que os cientistas estão delegando toda a autoridade para as máquinas, mas, na verdade, “existem muitas instruções humanas ao longo do processo”, segundo ele.
A contribuição humana inclui reunir um conjunto de dados sobre as obras do artista para que a máquina aprenda seu estilo e limpe a imagem obtida com raios-x para remover elementos da superfície da pintura. As imagens resultantes são “em grande parte, a nossa interpretação do que está por baixo”, segundo Cann.
Os pesquisadores descrevem o processo como “desajeitado” – apenas um experimento produzido nas suas horas vagas e sem financiamento.
“Um dos pontos que queremos deixar claro é que, mesmo com uma abordagem relativamente simples, podemos fazer isso”, acrescenta Bourached. “Espero que outras pessoas assumam esse campo em desenvolvimento e façam coisas melhores.”
Reunir a arte e a ciência
Uma barreira enfrentada pelos pesquisadores é a limitada quantidade de informações fornecida pelos raios-x tradicionais, que foram utilizados em pinturas pela primeira vez no século 19.
Os restauradores também tiram amostras da tela para descobrir mais sobre os materiais, pigmentos e possíveis danos, mas as tecnologias atuais de varredura permitem obter todas essas informações sem tocar na obra.
Cinco anos atrás, a Galeria Nacional de Londres adquiriu novos scanners de primeira linha, capazes de capturar tantos dados sobre um único quadro que a maioria das organizações culturais não possui equipamento adequado para fazer muito uso deles.
Algumas estão agora iniciando colaborações com outros setores de universidades que podem oferecer computadores mais avançados e conhecimentos mais amplos.
Como parte de uma recente parceria com o University College London (UCL) e o Imperial College London, chamada Arte pela Lente da Tecnologia da Informação e Comunicação (ARTICT, na sigla em inglês), a Galeria Nacional vem produzindo imagens muito mais claras do quadro Dona Isabel de Porcel, do artista espanhol Francisco de Goya (cerca de 1805), o retrato de uma jovem bem vestida usando uma mantilha preta.
Em 1980, foi descoberto um segundo retrato misterioso de um homem vestido com um colete e casaco por baixo da pintura. Para obter uma imagem mais clara do homem, foi necessário combinar diversas varreduras de diferentes regiões do espectro eletromagnético, algumas revelando certos aspectos da pintura melhor do que outros.
Inicialmente, esse processo precisou ser feito manualmente, mas, graças às novas pesquisas, ele foi delegado para um computador.
Os pesquisadores do UCL, chefiados pro Miguel Rodrigues, haviam trabalhado anteriormente em um projeto similar para restaurar o Retábulo de Ghent, do pintor flamengo Jan van Eyck (1432). A obra, de grandes dimensões, é composta de diversos painéis, alguns dos quais com o dobro do tamanho dos demais, para que possa ser aberta e fechada na própria igreja, atrás do altar.
Os painéis externos, que exibem a anunciação e uma série de patronos e santos, eram visíveis na maior parte do ano, mas o retábulo era aberto em festividades especiais, para revelar outras figuras religiosas e a Adoração do Cordeiro Místico.
Os painéis com tamanho duplo produziram camadas de imagens de raios-x que são particularmente difíceis de interpretar, o que representou um problema para os restauradores, que esperavam estudar diferentes camadas da pintura. O algoritmo desenvolvido por Rodrigues e sua equipe conseguiu separá-las em duas imagens distintas.
Mas atingir esse resultado com as radiografias de baixa definição do quadro de Goya é um desafio maior, pois os pesquisadores ainda não tinham ideia da aparência da pintura recoberta. Eles então misturaram radiografias de outras pinturas para ver se o algoritmo poderia aprender a separá-los.
Neste caso, o algoritmo pode produzir bons resultados, mas nem sempre se sabe exatamente de que forma. Para tentar entender melhor este processo, a equipe procurou resultados de diferentes pontos do processo de aprendizado e fez experimentos para saber como diferentes formas de alimentação dos dados da máquina poderiam melhorar o resultado.
“Um dos pontos particularmente difíceis de definir é o que é bom e o que é melhor”, segundo Catherine Higgitt, chefe de Ciência da Galeria Nacional de Londres.
“Estamos separando uma imagem em duas imagens hipotéticas, mas o que estamos tentando obter? Algo útil para um restaurador – interessado em lesões, rachaduras e detalhes ocultos – ou algo que se pareça ao máximo possível com a imagem da superfície?”
Questões como essas demonstram a importância da colaboração entre os cientistas da computação e os especialistas em arte, que orientam as pesquisas rumo a um objetivo útil. Todos enfatizam que os seres humanos estão trabalhando em conjunto com a IA e não delegando tudo para os aparelhos.
“Os algoritmos não estão respondendo sozinhos a uma questão. Eles estão alimentando um processo”, afirma Higgitt.
Alguns acadêmicos questionaram se o retrato de Goya foi atribuído corretamente ao artista. “Entender o retrato oculto pode ajudar a afirmar com mais segurança se a obra é de Goya ou do período correto, mesmo se não pudermos dizer com certeza qual o artista envolvido”, segundo Higgitt.
Um especialista em história da arte, por exemplo, pode tentar identificar que roupas o homem da pintura oculta está vestindo e quais materiais foram usados. Até o momento, uma imagem muito mais clara do rosto do homem foi separada da cabeça e do pescoço da mulher, revelando uma expressão séria em um par de sobrancelhas escuras.
“A conservação sempre aplicou a tecnologia disponível ao tratamento das pinturas”, segundo Larry Keith, chefe de Conservação da Galeria Nacional. “Não é uma mudança tão grande observar os avanços técnicos atuais. É parte de uma continuidade que remonta a pelo menos 150 anos.”
‘Desenrolar’ pergaminhos antigos
A intenção do trabalho é produzir uma ferramenta que possa ser aplicada a outros problemas de pesquisa em todo o setor de patrimônio histórico.
Outro desenvolvimento promissor tem sido o escaneamento e o “desenrolamento virtual” de pergaminhos antigos que são delicados demais para serem abertos fisicamente.
Neste caso, a tomografia computadorizada, a mesma usada na Medicina, combina imagens de raios X em diversos ângulos e pode fornecer imagens transversais de um pergaminho.
Uma equipe da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos, está trabalhando em rolos de papiro encontrados na antiga cidade de Herculano, na Itália, e carbonizados pela erupção do Vesúvio.
Trechos de papiro da tomografia foram isolados em segmentos, que são aplainados e reunidos, em um processo que é feito manualmente.
As tentativas de fazer com que os elementos metálicos da tinta aparecessem nas imagens não tiveram resultados, pois aparentemente os escribas usavam tinta de carbono. Por isso, a equipe elaborou modelos de manuscritos enrolados usando a mesma tinta e ensinaram um algoritmo a prever onde ela apareceria nas imagens.
A técnica ainda está sendo aperfeiçoada, mas a equipe está nos estágios iniciais de sua aplicação aos rolos não desenrolados de Herculano, que permanecem aguardando sua leitura desde a Antiguidade.
No século 19, rolos de pergaminhos foram abertos por máquinas e forneceram uma ideia do que está à nossa espera. Eles continham antigos textos em grego e latim, relativos à filosofia epicurista, escritos principalmente pelo poeta Filodemo.
O papirologista e cientista da computação James Brusuelas indica que esses rolos podem ser as cópias mais antigas ainda existentes.
Muitos textos clássicos são conhecidos atualmente a partir de versões medievais, mas, segundo Brusuelas, “quando fazem as coisas manualmente, as pessoas cometem erros, e os romanos não achavam que seria necessariamente uma ideia terrível fazer alterações”.
Por isso, se pudermos ler os manuscritos, poderemos nos aproximar mais do que realmente escreveram os grandes filósofos. “Acho que existe uma possibilidade razoavelmente grande de podermos conseguir algo novo, possivelmente até algo de que nunca ouvimos falar antes”, acrescenta ele.
Recuperando obras perdidas
Alguns desses esforços de pesquisa conseguem nos mostrar o que ainda existe, mas está escondido, enquanto outros tentam deduzir o que foi perdido. Em 2021, o Rijksmuseum de Amsterdã convidou o público a observar a reconstrução, com inteligência artificial, dos painéis perdidos do quadro A Ronda Noturna, de Rembrandt.
Antes de ser recortada, a obra completa felizmente foi copiada por outro artista holandês, Gerrit Lundens. Os detalhes perdidos são pequenos, mas, na versão completa, o capitão, vestido de preto e dando ordens para os guardas civis à sua volta, não está no centro, mas sim mais para a direita.
A reconstrução foi complicada devido às muitas diferenças entre as duas obras. “Existem mudanças na paleta e no estilo e a cópia de Lundens tem menos de 20% da escala completa”, segundo Rob Erdmann, cientista sênior do Rijksmuseum. Ele também observa que a cópia foi feita em um painel, enquanto o quadro de Rembrandt foi pintado sobre tela.
Sua missão foi reverter esses efeitos, ensinando o algoritmo a converter o estilo de Lundens no de Rembrandt. “A iluminação chiaroscuro [contraste entre luz e sombra] pela qual ele é conhecido, por exemplo, ou a noção de que os seus rostos brilham”, segundo ele.
“A rede até imita o craquelê [finas rachaduras] da pintura e eu diria que é o mais científico possível. O que não quer dizer que seja perfeito; a tecnologia sempre irá melhorar”, acrescenta Erdmann.
“Não é como ensinar o computador a escrever no estilo de Shakespeare. Isso envolve inventividade, criatividade e saber como é o ser humano. É mais como uma máquina de tradução.”
Mas tem havido resistência contra projetos como esses, pois alguns questionaram a precisão sendo atribuída ou até se há algum valor nesse trabalho. Uma iniciativa da plataforma Google Arts & Culture de recolorir os quadros de faculdade do pintor austríaco Gustav Klimt – que foram destruídos em um incêndio e só são conhecidos por suas fotografias em preto e branco – foi considerada por críticos como tendo praticado excesso de licença artística, reduzindo as obras a “desenhos”.
Trabalhando para corrigir o talento artístico de Lundens, Erdmann tenta limitar a contribuição estética humana. Embora a imagem final reconstruída tenha sido aprovada pelos curadores especializados, ela foi escolhida pelo algoritmo e não selecionada pelos especialistas dentre um conjunto de opções.
“O que estávamos tentando fazer aqui não era dizer que esta é a aparência definitiva dos pedaços que estão faltando”, afirma Erdmann. “Quando os pedaços foram recortados, a composição foi alterada de forma significativa e queremos que o público possa ignorar temporariamente o ceticismo, da mesma forma que em um bom filme ou romance.”
“O fac-símile ajuda as pessoas a apreciar o conteúdo ou a aparência original das obras de arte”, segundo Keith. Ele relembra suas visitas a exibições décadas atrás, que usavam projetores com objetivos similares.
Um exemplo ainda mais antigo da Galeria Nacional de Londres é o painel da Santíssima Trindade do Retábulo de Pistoia, do pintor italiano Francesco Pesellino. O painel foi desmontado em 1793 e, quando foi remontado (depois de ter sido gradualmente adquirido pela galeria), uma parte que faltava foi repintada para completar a composição.
“Agora temos capacidade de reproduzir componentes faltantes de forma mais convincente, o que oferece aos curadores mais oportunidades de pensar sobre a interpretação”, segundo Keith. “A questão de como apresentar uma pintura permanece inalterada – existe apenas a influência das novas tecnologias disponíveis.”
Projetos como estes, que são inovadores em seus métodos e deixam claro onde termina o trabalho humano e começa a interpretação humana ou do computador, oferecem a oportunidade de explorar qual teria sido a aparência original de uma obra de arte perdida.
Esses esforços são parte de uma longa tradição de reconstruções históricas, mas, nos últimos anos, elas vêm sendo criadas e frequentemente vivenciadas de forma digital, sem necessidade de alterar a obra que sobreviveu. Suas melhores tentativas são abertamente inconclusivas e servem principalmente de ponto de partida para que a nossa imaginação preencha as lacunas restantes.