São Brás: o que se sabe sobre o médico da antiguidade que se tornou santo protetor da garganta
Edison Veiga
É tradição católica em várias partes do mundo: se é dia de São Brás, é preciso levar as crianças para a igreja.
Durante a missa, em momento oportuno, o sacerdote irá se encarregar de benzer as gargantas de cada um com uma curiosa cruz formada por duas grandes velas apagadas.
A bênção não é privilégio para os filhos. Adultos também a recebem.
Para famílias que praticam o catolicismo e se apegam às práticas que passam de geração para geração, esse ritual tem um significado prático: segundo a fé, os benzidos pela intercessão de São Brás não terão nenhuma inflamação de garganta até o ano seguinte. Ou, se tiverem, as doenças serão leves.
A festa em honra ao santo é no dia 3 de fevereiro, justamente porque é a data em que se acredita que ele tenha sido martirizado, morto por decapitação, no longínquo ano de 316.
E é justamente essa distância temporal que não nos permite ter muitas informações biográficas sobre o personagem.
Entre pesquisadores contemporâneos, não há um consenso, por exemplo se ele nasceu em Roma ou em Sebaste, hoje a cidade de Sivas, na Turquia, na época uma localidade na chamada Armênia Menor.
Também não é possível confirmar se ele realmente veio ao mundo em 264 ou em algum outro ano por volta disso.
Por outro lado, acredita-se que, sim, ele tenha construído sua carreira religiosa e morrido, como mártir, em Sebaste. Muito provavelmente no ano de 316 — embora haja quem defenda que isso ocorreu quatro anos mais tarde.
“A vida e a memória de São Brás foram inteiramente remodelas por legendas e mitificação. Pouco sabemos sobre a história real”, aponta o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
“Dizem os relatos centenários que ele foi bispo e médico especializado em curas de homens e animais”, acrescenta ele.
Nesses primeiros séculos do catolicismo, bispos eram aqueles religiosos aclamados como líderes regionais, muitas vezes fundadores de comunidades cristãs e mantenedores das mesmas.
Nesses séculos de antiguidade, profissões não eram bem definidas como hoje — o que nos permite compreender, portanto, que um estudioso de fisiologia cuidasse tanto da saúde de seres humanos como da de bichos.
De acordo com o padre Antônio Lúcio da Silva Lima, autor do livro ‘Novena São Brás’, o religioso foi um bispo “muito querido pelos fiéis”.
“Perseguido pelos romanos [que então combatiam o cristianismo], Brás abandonou o bispado e se protegeu em uma caverna de uma montanha isolada”, conta.
Mesmo assim, acabou descoberto e preso pelos soldados de Roma.
“Durante o cativeiro, na escuridão de um calabouço, ganhou de presente de algum amigo um par de velas, com as quais recebia luz e calor”, narra o padre.
“É por isso que, na representação iconográfica, o santo aparece portando duas velas.”
São as tais duas velas que se utilizam para a bênção das gargantas até hoje.
Mas sua condenação não se limitou à prisão. Segundo os relatos antigos, Brás foi morto por decapitação, como era praxe entre os cristãos dessa época, sob ordens do imperador romano Licínio (265-325).
“Morreu em testemunho de sua fé”, salienta Lima.
Sobre a tradição das velas, Altemeyer Junior ainda recorda que na véspera da festa de São Brás a Igreja celebra Nossa Senhora das Candeias — também chamada de Nossa Senhora da Luz.
“As velas entrecruzadas sob o pescoço em rito sacramental ao final das missas sugere a festa do dia anterior”, ressalta ele.
Biografia carente de detalhes
No martirológio romano, que narra as histórias dos santos da Igreja, as informações sobre ele são muito sucintas.
“São Brás, bispo e mártir, que padeceu pela fé cristã em Sebaste, na antiga Armênia, hoje Sivas, na Turquia, sob o mandato do imperador Licínio”, diz o texto. E só.
“A tradição popular narra que ele fora médico e em dado momento ele resolve tomar a vida eremítica e ainda em vida sua fama de santo começou a se espalhar”, diz o pesquisador e estudiosos da vida de santos José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor da Universidade Estadual Vale do Aracaú, do Ceará.
“Então, o povo a ele acorria e alcançava graças, obtinha milagres. Naqueles primeiros séculos do catolicismo a escolha do bispo, o líder de uma Igreja local, se dava por aclamação do povo e o povo de Sebaste o aclamou bispo”, esclarece Lira.
“Ele aceitou mas teria continuado a residir próximo à caverna na qual se ‘escondera’ do mundo e dali dirigia a Igreja da atual cidade de Sivas, no centro da Turquia. Por sua fé cristã, foi martirizado”, completa.
Altemeyer Junior conta que há relatos de que, nesse período, tanto pessoas quanto animais o procuravam em busca de curas. E ele atendia a todos.
“Ele simplesmente impunha uma benção e havia curas”, diz o teólogo.
“Logo, sua fama de santo se espalhou por toda a região da Capadócia, pois ele atendia a todos que o procuravam e muitas vezes as pessoas ficaram curadas de suas doenças do corpo e da alma. Até os animais selvagens conviviam em total harmonia com o santo”, acrescenta padre Lima.
O hagiólogo Lira diz que a fonte mais confiável sobre São Brás é a chamada ‘Legenda Áurea’, um conjunto de narrativas sobre a vida de santos reunidas, por volta do ano de 1260, pelo então arcebispo de Gênova, Jacopo de Varazze (1229-1298).
“Apesar da atemporalidade, posso considerar a narração como fonte, por inexistirem, pelo menos no que conheço, outras”, afirma o pesquisador.
“O arcebispo torna escrita a oralidade a respeito de vários santos. Uma verdadeira preciosidade.”
“Nela o arcebispo diz que ‘Brás era de grande doçura e santidade, o que fez os cristãos o elegerem bispo da cidade de Sebasta, na Capadócia. Por causa da perseguição de Diocleciano, após receber o episcopado retirou-se para uma caverna onde passou a levar vida eremítica. Os passarinhos levavam-lhe de comer e juntavam-se em torno dele, só o deixando depois de ter sido abençoado por ele. Se algum deles estava doente, ia vê-lo e retornava perfeitamente curado'”, narra Lira.
O pesquisador conta que Varazze ainda “narra importantes fatos da vida e do martírio de Sã Brás”.
“E o que acho mais interessante é algo que ele nos informa na ocasião do martírio do santo e que o faz, espontaneamente, o protetor dos que têm males na garganta”, comenta.
A cura da garganta
O texto medieval diz que “Brás pediu então ao Senhor que se alguém invocasse seu patrocínio contra dor de garganta ou qualquer outra enfermidade, fosse atendido”.
“E uma voz do Céu respondeu-lhe, dizendo que assim seria”, enfatiza o registro.
Altemeyer Junior recorda que há um episódio narrado sobre uma cura realizada ainda em vida que o teria tornado alguém reconhecidamente apto a solucionar problemas do tipo.
“Fato famoso foi salvar a vida de uma criança que tinha presa à garganta uma espinha de peixe. E estava morrendo engasgado. Tornou-se patrono das gargantas e males do pescoço”, comenta o teólogo.
O hagiólogo Lira corrobora.
“Num dos muitos relatos da vida de São Brás, vemos os milagres e a história de uma mãe que teria chegado até ele aflita, com o filho agonizante, engasgado com uma espinha de peixe”, conta.
“São Brás teria olhado para o céu, rezado e, em seguida, fez o sinal da cruz na garganta do menino e o este ficou bom imediatamente. A partir daí e, principalmente, após o martírio de São Brás, passou-se a usar as velas em forma de cruz para dar a bênção de São Brás”, completa Lira.
Essa história é recuperada pela própria oração a São Brás, que lembra que ele restituiu “a perfeita saúde a um menino que, por uma espinha de peixe atravessada na garganta, estava prestes a expirar” e pede que todos tenhamos “a graça de experimentarmos a eficácia” de seu “patrocínio em todos os males da garganta”.
Por fim, conforme detalha padre Lima, a prece pede para que o santo ajude a conservar “a nossa garganta sã e perfeita para que possamos falar corretamente e, assim, proclamar e cantar os louvores de Deus”.
Isso teria dado origem à bênção contemporânea das gargantas dos fiéis.
“A mão direita de São Brás abençoando relembra o gesto que ele tanto usava quando rezava pelos doentes. Por meio de sua bênção muitos doentes ficavam curados e muitas graças aconteciam”, diz Lima.
“As velas na mão esquerda de São Brás, amarradas e em formato de cruz simbolizam a bênção do santo bispo”, acrescenta ele, enfatizando que esse gesto relembra a cura do menino engasgado com a espinha de peixe.
“São Brás abençoou o menino e retirou-lhe a espinha. O menino ficou bom imediatamente. Por causa disso, São Brás passou a ser invocado como o protetor da garganta”, explica o padre.
O hagiólogo Lira conta que essa tradição do benzimento das gargantas ocorre em boa parte do mundo católico.
Morte e culto
De acordo com os relatos antigos, Brás teria sido torturado e morto a mando do império romano.
“Foi martirizado com pentes de aço para cardar lã de ovelhas e posteriormente decapitado”, afirma Altemeyer Junior.
“Ele teria sido terrivelmente flagelado e torturado, sendo por fim pendurado em um andaime para morrer. Como isso não acontecia, primeiro lhe descarnaram os ossos com pentes de ferro. Depois tentaram afogá-lo duas vezes e, frustrados, o degolaram para ter certeza de sua morte”, narra Lira.
De acordo com padre Lima, a fama de santidade de Brás, no princípio local, começou a se espalhar ainda na Idade Média, principalmente a partir do século VIII.
No Brasil, a tradição foi trazida já pelos colonizadores portugueses. “O Brasil tinha, e ainda tem, muita carência de santos próprios reconhecidos”, aponta o hagiólogo Lira.
“E temos que considerar que há um apelo interessante na figura de São Brás: a cura dos males da garganta.”
“Com isso, muitas paróquias foram a ele dedicadas, fábricas, produtos e até municípios”, ressalta o pesquisador.