O relatório que apontava há 56 anos maus-tratos a indígenas e descaso de militares
Eduardo Reina
Atenção: o texto a seguir contém relatos que podem ser perturbadores para alguns leitores
A falta de assistência aos povos indígenas é a forma mais eficaz de matar sem deixar vestígios. É o que destacava em 1967 o procurador Jader de Figueiredo Correia em um relatório que descrevia violências praticadas contra povos indígenas no Brasil por militares, integrantes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI), funcionários públicos, fazendeiros, garimpeiros, grileiros, madeireiros e empresários.
“A falta de assistência, porém, é a mais eficiente maneira de praticar o assassinato. A fome, a peste e os maus tratos, estão abatendo povos valentes e fortes. A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de subnutrição, de peste, de parasitoses externa e interna, quadros esses de revoltar o indivíduo mais insensível”, revelava o relatório escrito há 56 anos, em plena ditadura militar, que ficou conhecido como Relatório Figueiredo.
Ele mostrava o genocídio de comunidades inteiras, torturas, sevícias, roubo, violências e crueldades praticadas contra indígenas no Brasil nas décadas de 1940, 1950 e 1960. “O Serviço de Proteção ao Índio degenerou a ponto de persegui-los até ao extermínio”, apontou o relatório, que ficou desaparecido por mais de 40 anos.
Muito do que se relata hoje sobre abandono, massacre, violência e falta de assistências a comunidades indígenas no Brasil, como os Yanomami, já estava documentado naquele relatório composto por 26 volumes e 5.492 páginas.
A investigação foi resultante de uma expedição que percorreu mais de 16 mil quilômetros. Foram entrevistados dezenas de agentes do SPI, além da visita a mais de 130 postos indígenas.
Foram denunciados 132 militares, outros servidores públicos, cidadãos comuns, homens e mulheres. Houve a recomendação de prisões, demissões ou a suspensão do trabalho, além de outras penalidades. O material foi entregue ao Poder Judiciário.
Ocorreu apenas o afastamento do pessoal do SPI e a abertura de processos administrativos. Com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), em dezembro de 1968, tudo foi esquecido. Parte dos afastados retomou seus postos na nova estrutura que substituiu o SPI, a Funai (Fundação Nacional do Índio, que passou depois a se chamar Fundação Nacional dos Povos Indígenas). Ninguém foi preso.
‘Estado é autor’
O relatório de 1967 identifica e reconhece as violências cometidas contra os povos indígenas. O Estado brasileiro aparece como autor direto dos crimes, através de seus servidores, ou de forma indireta, por omissão diante dos ataques contra essas populações originárias efetuados por fazendeiros, garimpeiros, madeireiros, grileiros, seringueiros que contavam com a conivência de políticos locais, estaduais e federais.
“Há repetição permanente desse problema. São 56 anos desde a denúncia do Relatório Figueiredo, e o problema do desrespeito ao direito constitucional indígena às suas terras e ao usufruto de seus territórios segue inalterado. Os povos são atacados em suas comunidades e aldeias, sem solução”, reclama Marcelo Zelic, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e coordenador do Armazém Memória, responsável pelo resgate do Relatório Figueiredo nos arquivos do governo federal.
O procurador Jader de Figueiredo cita dificuldades para desenvolver o trabalho em campo e chama a situação de “o maior escândalo administrativo do Brasil”.
Na enorme lista de delitos cometidos, o documento cita crimes contra pessoa e a propriedade do indígena, assassinatos individuais e coletivos, prostituição de indígenas, sevícias, trabalho escravo, usurpação do trabalho, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena, dilapidação do patrimônio indígena como a venda de gado, arrendamento de terras, venda de madeira, exploração de minérios, venda de castanha e de outros produtos de atividades extrativas e de colheita, venda de produtos de artesanato, doação criminosa de terras, venda de veículos.
Tudo isso, ainda segundo Jader de Figueiredo, alcançou cifras incalculáveis. Não sendo “possível levantar com exatidão os valores subtraídos aos índios (sic) para exigir ressarcimento”.
Nos crimes administrativos, os envolvidos praticaram a adulteração de documentos oficiais, fraudaram processos de comprovação de contas, desviaram verbas orçamentárias, aplicaram irregularmente dinheiro público. Eles acarretaram em omissões dolosas das autoridades e dos próprios servidores, admissões fraudulentas de funcionários e incúria administrativa.
Crueldade
Com relação à violência, o documento registra o genocídio dos Cinta-larga, no Mato Grosso, com lançamento de explosivos de avião sobre as ocas. Os sobreviventes eram envenenados ou mortos a tiros de metralhadora. Entre as cenas mais cruéis relatadas está a morte por facão, quando a pessoa era cortada ao meio.
“Mais recentemente, os Cintas-largas teriam sido exterminados a dinamite atirada de avião, e a estricnina (veneno) adicionada ao açúcar enquanto os mateiros os caçam a tiros de ‘pi-ri-pi-pi’ (metralhadora) e racham vivos, a facão, do púbis para a cabeça o sobrevivente”, relatou Jader de Figueiredo. Esse povo vivia entre o noroeste do Mato Grosso e sudeste de Rondônia.
O caso do extermínio dos Cintas-largas ficou conhecido como o Massacre do Paralelo 11, promovido no Mato Grosso por pistoleiros contratados pela empresa seringalista Arruda Junqueira & Cia, em 1963. Depoimento de Ramis Bucair, servidor público, descreve a ação de pistoleiros chefiados por Chico Luiz, que metralharam um grupo Cinta-larga. Durante a ação, localizaram com vida uma indígena e seu filho de seis anos. O menino acabou morto com um tiro na cabeça. A mulher foi pendurada pelos pés, com as pernas abertas, e seu corpo partido ao meio com um golpe de facão.
A comissão chefiada por Jader de Figueiredo recebeu das mãos do próprio Ramos Bucair uma fita de áudio com a gravação da confissão do crime, com a voz de Ataíde Pereira dos Santos.
Também há registro sobre a extinção de um povo localizado em Itabuna, na Bahia, na reserva Caramuru-Paraguaçu dos Pataxó-Hãhãhãe, utilizando o envenenamento químico de doença. “A serem verdadeiras as acusações, é gravíssimo. Jamais foram apuradas a denúncia de que foi inoculado o vírus da varíola nos infelizes indígenas para que se pudessem distribuir suas terras entre figurões do governo”.
“É preciso desarmar os mecanismos de repetição da história que existem. A não-repetição de violações de direitos humanos pressupõe a criação de mecanismos que modifiquem procedimentos cristalizados na gestão e ação do Estado brasileiro. Estes procedimentos se constituem em prática lesiva ao direito indígena, ocorrendo tanto no poder Executivo, como no Legislativo e Judiciário que, quando não são protagonistas, dão sustentação fundamental à repetição de graves violações de direitos humanos contra os povos indígenas, como ocorre hoje e ao longo de todo o governo Bolsonaro, conforme denúncias de genocídio e crimes de lesa-humanidade em análise no Tribunal Penal Internacional”, afirma Marcelo Zelic.
Relatório da Comissão Nacional da Verdade
Mais recentemente, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) investigou casos de violência envolvendo dez etnias indígenas vítimas de graves violações de direitos humanos, ocorridos no Brasil durante o período da ditadura militar, entre 1964 e 1985.
No relatório da CNV são apontadas as mortes de ao menos 8.350 indígenas em massacres, esbulho de terras, remoções forçadas de seus territórios, contágio por doenças infectocontagiosas, prisões, torturas e maus tratos.
No capítulo Violações de direitos humanos dos povos indígenas consta que o maior número de mortos está entre os Cinta-larga, com 3.500 casos, seguidos pelos Waimiri-Atroari (AM) – 2.650 mortos; Tapayuna (MT) – 1.180; Yanomami (AM/RR) – 354; Xetá (PR) – 192; Panará (MT) – 176; Parakanã (PA) – 118; Xavante Marãiwatsédé (MT) – 85; Araweté (PA) – 72 e Arara (PA) – 14 mortos.
Atualmente, a população brasileira é composta por aproximadamente 900 mil indígenas de 305 etnias diferentes, segundo a Funai.
Responsável pela saúde indígena na década de 1970, a Funai foi omissa e levou à morte muitos indivíduos acometidos por diversas epidemias de alta letalidade, segundo o relatório. Eram casos de sarampo, gripe, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por infecções sexualmente transmissíveis.
O mesmo relatório da CNV denuncia que a abertura do trecho da Perimetral Norte (BR-210), entre o município de Caracaraí e o limite entre Roraima e Amazonas, também provocou as mortes de 354 Yanomami e impactou diretamente cerca de 250 pessoas das aldeias desta etnia no rio Ajarani e seus afluentes, além de 450 indígenas abrigados em malocas no rio Catrimani na década de 70.
‘Ciclo de violência contra os povos indígenas’
“O Relatório Figueiredo elencava entre ‘os crimes contra a pessoa e a propriedade do índio’ práticas como, entre outras, ‘sevícias, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e dilapidação do patrimônio indígena’. Agora, 56 anos depois, acompanhamos o flagelo dos Yanomami em tempo real e vimos as mesmas práticas, denunciando que o Estado brasileiro repete os mesmos erros, sem ter em consideração o reconhecimento de sua diversidade cultural, conforme consagrado em nossa Constituição, e colocando o Brasil, novamente, no centro de uma crise humanitária”, diz Edilene Coffaci, antropóloga, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
E Marcelo Zelic diz: “Os governos agem sob pressão. O Estado age para tirar o problema da frente, mas é uma situação cíclica. Tudo vem acontecendo como sempre. O problema é grave, vai para a imprensa, há uma ação da sociedade. Daqui a pouco tudo some do noticiário e as coisas voltam a ser como eram antes”.
Esse ciclo de violência contra os povos indígenas não termina porque corresponde a uma cultura de índole colonial com a qual o Brasil nunca rompeu, segundo Alfredo Attié, presidente da Academia Paulista de Direito.
Attié afirma que os indígenas estão sendo expropriados de seus territórios e violentados desde a chegada europeia, no século 16. “Penso que essa expropriação sempre se deu de modo ilícito – foram construídas teorias jurídicas especificamente para justificar esse processo, conferindo àqueles que se apropriaram das terras indígenas títulos falsos, validados pela própria constituição do direito moderno, que subsiste até hoje”.
Para superar esse ciclo, há necessidade de medidas que dizem respeito a políticas públicas, sobretudo as de reconhecimento dos territórios e de sua proteção efetiva contra invasores e exploradores, segundo especialistas.
“Igualmente, há necessidade de impedir que os assassinatos contra líderes indígenas permaneçam. A criação de um Ministério para os Povos Indígenas significa alçar as políticas da Funai e da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) a um patamar mais seguro e eficiente”, diz Attié.
“Mas isso não basta, pois há necessidade de enfrentar corajosamente a revisão do que significa propriedade e restabelecer a propriedade indígena – são os verdadeiros donos do território brasileiro – e empreender uma política bastante radical na reatribuição de terras, o que afetará os donos do poder e os donos de extensas áreas, detentores ilegítimos do que não lhes pertence de direito”, afirma Attié, ao apontar que “talvez auxilie na compreensão dessa política a consciência de que defender indígenas e o que lhes pertence signifique reconstituir o meio ambiente e proteger os biomas brasileiros, de que são guardiães.”
Flávio de Leão Bastos Pereira, coordenador do Núcleo da Memória da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, diz que a Funai repetiu no governo Bolsonaro o que fazia durante a ditadura. Também aponta que “nunca se investigou o Reformatório Krenak, que era um campo de concentração, quantas terras indígenas foram invadidas, quantas crianças indígenas foram levadas à força em aviões da FAB para outras regiões do país, quantos Guaranis foram mortos na construção da Usina de Itaipu, entre outros fatos envolvendo os povos indígenas”.
Para garantir o direito e a vida dos povos indígenas, reafirma o professor do Mackenzie, é preciso demarcar as terras desses povos, conforme manda o artigo 231 da Constituição brasileira.
“A terra indígena é ancestral, essencial para a existência dessas culturas. Os povos indígenas não detêm a terra, eles são a própria terra. Também é necessário dar maior protagonismo a esses povos, com a criação do Ministério dos Povos Indígenas e a presidência da nova Funai com uma indígena, como começou a ser feito agora”, diz Bastos.