O argentino que salvou milhares de vidas na 2ª Guerra graças ao talento de falsificador
Paula Rosas
A tinta Waterman azul. O grande problema era a tinta Waterman azul.
Não havia forma de apagá-la. Os papéis escritos com tinta da marca Waterman da cor azul não podiam ser alterados. Era impossível falsificá-los.
A resistência francesa já havia tentado de tudo, mas a tinta Waterman azul usada pela prefeitura condenava os judeus aos campos de extermínio.
Até que um jovem aprendiz de tintureiro, que havia acabado de completar 18 anos, exclamou: “Eu sei apagar. Tudo pode ser apagado.”
E, de fato, o ácido láctico apagava a tinta. E, com ela, um nome. O nome apagava uma origem que era considerada um pecado mortal na França ocupada pelos nazistas: ser judeu.
O jovem foi então convidado a trabalhar com a resistência.
Quem era ele?
Era o mês de março de 1944 e a vida de Adolfo Kaminsky sofreu uma reviravolta.
Seus conhecimentos de química valeram a ele um lugar na “Sexta” – uma pequena célula clandestina da resistência francesa.
Em um sótão do bairro parisiense de Saint-Germain-des-Prés, ele falsificou passaportes, certidões de nascimento, carnês de racionamento, salvo-condutos e qualquer outro documento que caísse em suas mãos e pudesse evitar a morte dos seus proprietários.
Os pedidos chegavam de toda parte – eram até 500 por semana. Eles apagavam sem descanso as letras em vermelho, “JUIF” ou “JUIVE” (“judeu” ou “judia”), alteravam nomes judeus como Isaac por Jean Pierre, Meyer por Dubois ou Hanna por Marie-Hélène.
Antes de completar 19 anos, com o nome falso de Julien Keller, aquele jovem havia conseguido salvar a vida de milhares de pessoas, graças ao seu talento como falsificador. A sua própria vida chegou a ser salva pelo seu passaporte argentino.
Adolfo Kaminsky nasceu em 1925 na capital argentina, Buenos Aires, em uma família judia de origem russa. Sua história parece ter saído de um filme de espionagem em preto e branco, com esconderijos, códigos secretos, duplas identidades e portas esmurradas no meio da noite. Kaminsky morreu em Paris no último dia 9 de janeiro, aos 97 anos.
Certa vez, a “Sexta” recebeu a missão de falsificar os documentos de 300 crianças judias internadas em centros do Estado, que seriam deportadas. Seria necessário criar 900 documentos novos, incluindo certidões de nascimento, de batismo e carnês de racionamento. Mas havia um problema: tudo precisaria ser feito em três dias.
Kaminsky trabalhou dia e noite, sem descanso, até cair no chão, desmaiado de exaustão.
Sua grande obsessão era terminar o trabalho. “Manter-se acordado. O maior tempo possível. Lutar contra o sono. O cálculo era simples. Em uma hora, consigo fabricar 30 documentos. Se dormir uma hora, 30 pessoas irão morrer”, recorda ele, em sua biografia Adolfo Kaminsky, Une Vie de Faussaire (“Adolfo Kaminsky, uma vida de falsificador”, em tradução livre), escrita por sua filha Sarah.
O laboratório era pequeno, mas tinha tudo o que era necessário. Usando a técnica da fotogravura, Kaminsky havia conseguido fabricar carimbos e suas almofadas, timbres e marcas d’água. Com uma roda de bicicleta, ele criou uma centrifugadora para envelhecer os documentos.
Todos os cinco que trabalhavam na Rue des Saints-Pères n° 17 eram estudantes de ciências ou de belas artes, exceto Kaminsky. Eles se faziam passar por artistas.
Para os vizinhos, os odores das substâncias químicas eram solventes de tintas e o carteiro sempre os elogiava pelas suas obras – os quadros que eles expunham bem à vista de todos, para ocultar o verdadeiro trabalho que era feito no sótão.
A equipe trabalhava de forma voluntária, sem receber pagamento e arriscando sua vida caso fosse descoberta. Eles conseguiram preparar os documentos das 300 crianças a tempo, mas o peso da responsabilidade e o esforço extenuante do trabalho cobraram sua conta.
Kaminsky perdeu a visão de um dos olhos devido ao trabalho intenso daqueles anos. Seus companheiros, que tinham nomes como “Lontra”, “Lótus” e “Pinguim”, acabaram suicidando-se nos anos após a guerra, segundo relatado por ele próprio em um curto documentário produzido pelo jornal americano The New York Times em 2016, chamado The Forger (“O falsificador”, em tradução livre).
Depois da guerra e sempre na clandestinidade, Kaminsky continuou falsificando documentos para diferentes movimentos até os anos 1970. Ele deixou sua marca em conflitos como a guerra da Argélia, a luta contra o apartheid na África do Sul, contra os ditadores Franco, na Espanha, e Salazar, em Portugal, e para diversos grupos revolucionários da América Latina.
Segundo cálculos dele próprio, só em 1967, Kaminsky enviou documentos falsos para 15 países diferentes. Ele chegou a falsificar documentos para desertores americanos que não queriam participar da Guerra do Vietnã.
Kaminsky pôs fim a essa vida clandestina em 1971 e trabalhou como fotógrafo e professor pelo resto dos seus dias. Mas sua intensa vida de falsificador não custou apenas a visão de um dos olhos. Sua família não podia saber de nada sobre esse submundo secreto e ilegal e acabou pagando o preço.
Seu primeiro casamento, que lhe deu dois filhos que Kaminsky não pôde ver por longos períodos de tempo, terminou em divórcio em 1950.
Sua filha Sarah nasceu de um segundo relacionamento. Ela começou a entrever sinais daquele passado quase uma década depois de Kaminsky abandonar a falsificação.
Certo dia, Sarah falsificou a assinatura da mãe no boletim escolar. Seu pai, em vez de brigar com ela, soltou uma gargalhada.
“Sarah, você poderia ter tido um pouco mais de cuidado”, disse ele. “Veja como a letra está pequena demais!”
Vida de refugiados
A história da família Kaminsky foi sempre marcada pelas fronteiras. Talvez por isso ele tenha sonhado com um mundo sem divisões, onde as pessoas pudessem movimentar-se livremente.
Sua mãe chegou à França no início do século 20, fugindo das perseguições aos judeus na Rússia. Lá, ela conheceu seu pai, outro judeu russo que trabalhava para uma publicação marxista.
Quando os bolcheviques chegaram ao poder, a França, com receio dos simpatizantes do novo regime, expulsou-os do país, o que fez a família emigrar para a Argentina.
Ali, Adolfo nasceu e viveu seus cinco primeiros anos de vida, até que os Kaminsky pudessem voltar para a França e reunir-se com o restante da família. Eles levaram para a Europa algo que seria vital para eles mais à frente: passaportes argentinos.
Os Kaminsky se instalaram na cidade francesa de Vire, na Normandia, onde Adolfo precisou trabalhar desde muito cedo para ajudar nas finanças da família.
Quando tinha 13 anos de idade, Kaminsky conseguiu um emprego na fábrica da cidade. “E, um dia, eles chegaram.” Em junho de 1940, os nazistas invadiram a França e todos os judeus da fábrica – ele e seu irmão Pablo – foram demitidos.
Kaminsky encontrou então um emprego como aprendiz de tintureiro, em um lugar que tingia de cores “civis” os uniformes remanescentes da Primeira Guerra Mundial. Ali, ele aprendeu a eliminar manchas e ficou fascinado por aquela alquimia.
Seu chefe era engenheiro químico e ensinou a ele todos os segredos sobre como alterar ou apagar cores e manchas.
Kaminsky montou então um laboratório caseiro, inicialmente na cozinha de casa. Mas, depois de várias explosões e do consequente desagrado da sua mãe, ele mudou o laboratório para uma cabana no lado externo. Foi assim que ele conseguiu fazer experiências sobre tudo o que aprendia no trabalho.
Para ajudar os vizinhos, Kaminsky passou a produzir sabão e velas, além de descontaminar sal. Os alemães havia misturado óxido de ferro no sal para evitar que os camponeses franceses preservassem e escondessem carne de porco sem precisar enviar todos os seus animais para a Alemanha, como haviam sido obrigados a fazer.
Sua paixão o levou a trabalhar como químico em uma fábrica de produtos lácteos nos fins de semana. Lá, ele aprendeu um truque aparentemente banal que mudaria sua vida.
Kaminsky descobriu que para saber o teor de gordura do leite trazido pelos criadores bastava introduzir um pouco de azul de metileno em uma amostra e esperar que o ácido láctico o dissolvesse.
O azul de metileno era a substância usada na fabricação da tinta Waterman.
A vida dos judeus era cada vez mais difícil na França. Depois que os oficiais alemães quiseram transformar a casa do seu tio em um bordel, ele fugiu para se esconder em Paris.
Sua mãe, ao retornar de uma viagem para a capital francesa para ver seu irmão (“vou e volto”, disse ela ao sair), morreu em circunstâncias suspeitas. As autoridades disseram que ela caiu do trem em movimento quando confundiu a porta traseira com a do banheiro. Mas Kaminsky passou a vida certo de que ela foi assassinada.
Consumido pela dor e pela raiva, o então adolescente encontrou uma forma de sentir-se menos impotente. “Eu não queria chorar meus mortos sem fazer nada”, diz ele na sua biografia.
Ele entrou em contato com a resistência pela primeira vez, através do farmacêutico da cidade. Kaminsky então aprendeu a fabricar pequenos detonadores e produtos corrosivos para sabotar as linhas de trem alemãs.
“Eu tinha pelo menos o sentimento de que os estava vingando. Estava orgulhoso. Era um resistente”, contava ele.
Drancy
Apenas judeus ficaram em Vire, até que, no verão de 1943, a família foi detida e transferida para o campo de concentração de Drancy, nas redondezas de Paris. Calcula-se que, durante a ocupação alemã, mais de 67 mil judeus tenham sido enviados para campos de extermínio a partir de Drancy.
Em um momento de lucidez, seu irmão maior escreveu cartas dirigidas ao consulado argentino em Paris. Ele as entregou para trabalhadores das ferrovias e chegou até a lançar algumas pelas janelas do trem que os transportou para o campo, com a esperança de que alguma delas chegasse ao seu destino.
“Só podíamos esperar que uma boa alma pagasse o selo e as enviasse”, relembra Kaminsky.
A Argentina havia se declarado neutra no conflito e, até aquela data, a França ocupada havia respeitado essa neutralidade.
“Éramos milhares. Quarenta em cada quarto. Homens e mulheres separados à noite. Um formigueiro. Ninguém ficava em Drancy. Ali eles faziam a seleção, antes de enviar os comboios para diferentes campos da Europa”, recorda Kaminsky.
Ele relatou que, na noite anterior às partidas, era possível ouvir “o eco do choro dos que acabavam de ser raspados e ficavam nas escadas à espera do nascer do sol, já que não havia mais camas nos quartos”.
Mas houve um milagre para a família Kaminsky. Uma das cartas chegou às mãos do cônsul da Argentina.
“Devíamos nossa sobrevivência à covardia diplomática de um governo que, para se manter próximo da poderosa América do Norte sem romper os acordos econômicos que o vinculavam à Alemanha nazista, havia optado pode declarar-se neutro”, relata Kaminsky em sua biografia.
Adolfo Kaminsky teve claro ao longo de toda a vida que “a neutralidade não existe. Não fazer nada, não dizer nada, já é ser cúmplice”.
Dez dias depois da liberação, a família foi enviada de volta para Drancy devido à ruptura dos acordos entre a Argentina e a Alemanha. Mas, por erro de comunicação entre a polícia francesa e a administração do campo de concentração, os Kaminskys acabaram sendo libertados.
De volta a Paris, seu pai, que ainda mantinha amizade com os russos da revista marxista onde trabalhou, concluiu com muita clareza que eles precisavam de documentos falsos.
Adolfo Kaminsky foi encarregado de fornecer aos falsificadores as fotografias e os dados necessários. Para isso, ele precisava encontrar-se com o contato chamado “Pinguim”. E, quando soube que Kaminsky havia sido aprendiz de tintureiro, o jovem contato contou os problemas que eles estavam enfrentando com a tinta Waterman azul.
Ao que Kaminsky respondeu: “Eu sei apagá-la”.