São Bento, o religioso que ‘inventou’ o conceito dos mosteiros ocidentais
Edison Veiga
Uma das instituições mais antigas de São Paulo, instalada desde o fim do século 16 no coração da cidade, o Mosteiro de São Bento é um conjunto de igreja e casa religiosa, onde vivem dezenas de monges.
O santo que empresta nome à comunidade foi um homem que viveu entre os séculos 5 e 6 na península itálica. A ele, São Bento de Núrsia (480-547), é atribuída a criação das bases que até hoje vigoram nos mosteiros religiosos católicos do ocidente.
Esses ensinamentos estão no livro que se tornou conhecido como ‘Regra de São Bento’, um compilado de regras, em 73 capítulos, de como deveria ser a vida daqueles que decidissem ingressar para uma casa monástica. Bento teria escrito esse texto ao longo do século 6. No cerne dos ensinamentos, estão o preceito fundamental para o beneditino, “ora et labora”, ou seja, “reza e trabalha”. E o lema de todo religioso da ordem, a “paz”.
O documento fala sobre como deve ser a organização interna do mosteiro (entre os capítulos 21 e 52), como deve ser a clausura (capítulo 66), as orações comuns (capítulos 8 a 20), as relações com o mundo (capítulos 53 a 57), entre outras questões.
Quem foi
“Muito do pouco que sabemos de São Bento vem-nos de São Gregório Magno, papa e doutor da Igreja”, comenta o escritor e pesquisador J. Alves, autor de ‘Os Santos de Cada Dia’ e membro da Academia Brasileira de Hagiologia. Gregório (540-604) narrou, no segundo livro de sua obra ‘Diálogos’, diversos fatos relacionados a São Bento.
“De fato, os registros históricos que possuímos sobre São Bento são muito escassos”, acrescenta o monge Hildebrando Brito, membro do Mosteiro de São Bento da cidade de São Paulo. “A sua única biografia foi a escrita pelo papa São Gregório Magno, alguns anos após sua morte.”
Mas Brito mesmo ressalta que “o próprio Gregório afirmou não havê-lo conhecido, mas sim registrado os fatos narrados por quatro de seus discípulos, seus sucessores no governo dos mosteiros por ele fundados”.
“Esta biografia, que é muito diferente do conceito moderno dessa palavra, se chama ‘Vida e Milagres de São Bento’ e é o segundo livro de uma obra mais vasta do papa Gregório, composta por quatro livros, nos quais ele narra fatos de diversos santos que viviam na Itália central daquele período”, completa o monge.
Filho de uma família de posses, Bento nasceu em Núrsia, na atual região italiana da Úmbria, na época Reino Ostrogótico. Sua irmã gêmea, Escolástica (480-542), também se tornaria santa do catolicismo.
Na adolescência, foi enviado a Roma, para estudar retórica, filosofia e ciências jurídicas. Decepcionado, decidiu se tornar um ermitão. Este enredo denota uma trajetória recorrente em narrativas referentes a santos, uma espécie de jornada do herói que, ao longo da história, se apresenta como um traço comum.
“Segundo consta, ele teria sido enviado aos 12 anos, com sua irmã, a Roma. No entanto, teria ficado chocado com a vida dissoluta da cidade e, a partir daí, teria desprezado os estudos, abandonado a casa e os bens de seu pai e visto despertar o interesse por uma vida monástica”, pontua o pesquisador Thiago Maerki, associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. “Essa narrativa é muito comum a vários santos, é como se fosse um lugar hagiográfico, algo que poderia ser atribuído a muitos santos da tradição eclesiástica.”
A ideia, no caso, do filho rico que vive uma epifania e, em dado momento, opta pelo desapego total dos bens em prol de uma causa de inspiração divina. “Este caminho de conversão se tornou muito comum no gênero da hagiografia, remonta à tradição da Igreja”, explica Maerki.
Por volta do ano 500, viveu cerca de três anos em uma caverna em Subiaco, no Lácio. Ali, consta que se dedicava à oração e a sacrifícios pessoais.
Sua reclusão foi interrompida quando pastores o descobriram e passaram a espalhar sua fama de santidade. “Terminada essa experiência, ele teria decidido guiar outros monges”, diz Maerki.
Acabou se mudando para uma casa religiosa em Vicovaro, no entorno de Roma, e ali ele teria conquistado o respeito dos demais e se tornado abade.
Ao tentar implantar na comunidade as regras que ele considerava corretas, enfrentou oposição dos religiosos que viviam na casa. Em determinado momento, conforme conta Gregório Magno, estes tentaram-no envenenar, colocando uma substância em sua taça de vinho. Mas a hagiografia conta que quando ele foi tomar o cálice, saiu dela uma serpente, quebrando-a. Seria um milagre para salvar sua vida.
O episódio fez com que ele decidisse sair daquela vida em comunidade e retornar ao ascetismo solitário. Em 503, como vinha sendo procurado por muitos admiradores, decidiu começar a fundar mosteiros com a sua regra. Chegaria ao total de 13 casas.
“Foram quase três décadas assim. Em Subiaco, pregando o Evangelho, falando de Deus, acolhendo aqueles que os procuravam, fazendo discípulos e criando mosteiros”, comenta Maerki. “Fundar 13 comunidades monásticas nessa época era algo esplendoroso.”
De acordo com o pesquisador, essas primeiras comunidades beneditinas tinham como norma o número de 12 monges guiados por um abade, numa reprodução intencional do grupo fundador do cristianismo, ou seja, Jesus e os 12 apóstolos. A palavra abade, conforme explica Maerki, remonta ao siríaco e significa “pai”. “Um pai amoroso, a qual o monge deve obediência por toda a vida”, explica.
Bento se mudou para Monte Cassino, uma colina rochosa perto de Nápoles, na época parte do Império Romano Oriental. Ali, em 529, estabeleceu um mosteiro que se tornaria o mais importante dentre todos os beneditinos. Viveu na casa religiosa até sua morte, em 547.
Antes, contudo, um novo episódio de descontentamento fez dele alvo de tentativa de assassinato. Um dos religiosos, um homem chamado Florêncio, deu a Bento um pão envenenado. Pressentindo algo estranho, o religioso teria dado, conforme narra a hagiografia, o alimento a um corvo que todos os dias vinha comer algo de suas mãos. No caso do pão, contudo, Bento teria dito que era para que a ave o levasse embora para longe — e não comesse. E isso teria ocorrido. Para os que acreditam, este teria sido mais um milagre.
Na tradição católica, os dribles que Bento deu nas duas ciladas armadas para matá-lo são os fatos que confirmam sua santidade. Ele é um santo muito anterior às normas atuais de canonização, ou seja, não foi submetido ao mesmo rigoroso processo adotado hoje pelo Vaticano para declarar alguém santo.
Comunidades religiosas
Considerado o padroeiro da Europa, São Bento é também chamado de “pai do monaquismo”. Isto porque praticamente toda ordem monástica ocidental deriva direta ou indiretamente dos princípios e normas fundamentados por ele.
“Na Igreja do ocidente, todos os que são chamados de monges seguem a regra de São Bento, os beneditinos, os cistercienses e os trapistas. Uma exceção é feita à pequena mas antiga ordem dos cartuxos, que segue a regra de São Bruno”, comenta o monge Hildebrando Brito.
“O monaquismo precede São Bento, mas, a partir dele tem um impulso muito maior e mais determinado, principalmente por conta da regra por ele escrita e aprovada pelos monges de então”, analisa o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará. “Após a sua morte, a regra foi adotada ou formulada, ainda que diversamente, por inúmeros mosteiros mundo afora. Quinze papas foram eleitos da Ordem Beneditina, incluindo entre estes três santos e dois beatos.”
Retrocedendo àqueles tempos em que Bento era vivo, contudo, vale ressaltar uma diferença fundamental entre as comunidades religiosas por ele criadas e a maneira como a vida monástica costuma ocorrer. Para São Bento, a experiência religiosa buscada pela vida religiosa deveria ser coletiva, não mais individual.
“Isto é importante sinalizar. A espiritualidade sonhada e pensada por São Bento vai na contramão da ideia de uma vida isolada, como a de um eremita”, diz Maerki. “Embora ele tenha passado pela experiência eremítica, ele propôs uma vida em fraternidade.”
O pesquisador nota que os princípios de Bento demonstravam a necessidade de que os monges pudessem se correlacionar. “Não é uma vida de alguém que se isola do mundo em uma caverna. Ele propõe um isolamento do mundo, mas dentro de uma comunidade formada por irmãos”, salienta.
“E esse modelo depois se espalhou por todas as ordens que temos hoje na Igreja”, acrescenta Maerki.
Alves reitera que esse papel de “patriarca do monaquismo do Ocidente” atribuído a São Bento já era fato “200 anos após a morte dele”, quando a sua regra “havia se espalhado pela Europa inteira, tornando a norma de vida monástica aceita, amplamente comentada e difundida, não apenas durante toda a Idade Média, mas ao longo de toda a história do monaquismo ocidental”.
“Os monges beneditinos exerceram papel importantíssimo na evangelização da Europa medieval e na vida da Igreja universal”, comenta o pesquisador. “São Bento antevia em sua Regra que o menos era mais, sintetizando no ‘ora et labora’ toda uma mística cristã de servir, na simplicidade, na abnegação ao próximo, em nome de Deus.”
Para Alves, foi São Bento quem tornou a vida religiosa “acessível a todos os que desejam”. “A moderação passa a ser a tônica geral”, ressalta. “Nela, não mais se fala em rigorosas mortificações e penitências, mas da busca do Deus da ternura e da misericórdia, com o coração humilde, na oração e no trabalho.”
“São Bento, no meu entender, é um dos santos mais importantes da história do catolicismo”, comenta Lira. “Não à toa 16 Papas escolheram por nome Bento, tendo sido o último o grande Papa Bento 16.”