O filho de nordestino e abolicionista que patrocinou a indústria vinícola gaúcha
A indústria vitivinícola da Serra gaúcha não existiria sem o entusiasmo e o incentivo de um filho de pernambucano que estudou em Recife e acolheu, no Rio Grande do Sul, vários nordestinos que moldaram a história do Estado.
Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961) é mais conhecido do público brasileiro como o elegante cidadão de casaca, colarinho duro e chapéu coco na capa da coleção Nosso Século, da Editora Abril, muito popular nos anos 1980. Ele foi, entretanto, muito mais do que um ícone da moda da Belle Époque.
Nenhum indivíduo na história do Brasil permaneceu por mais tempo em um comando do Executivo do que Borges de Medeiros. Foram 26 anos como presidente (equivalente ao atual governador) do Estado do Rio Grande do Sul: de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928. No intervalo de 1908 a 1913, quando o cargo foi ocupado por seu condiscípulo Carlos Barbosa Gonçalves (1851-1933), Borges assumiu o papel de poder por trás do trono.
Nas três décadas em que mandou e desmandou no Estado mais meridional da federação, Borges teve papel de primeira linha na política nacional, aprovando e vetando aspirantes à Presidência da República. Como líder incontestável do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), foi o mentor de Getúlio Vargas, Oswaldo Aranha, José Antônio Flores da Cunha, João Neves da Fontoura, Maurício Cardoso e muitos outros.
No início deste mês de março, a indústria vinícola gaúcha esteve sob os holofotes da mídia após o resgate de mais de 200 trabalhadores — a grande maioria deles vinda da Bahia — de condições análogas à escravidão no município de Bento Gonçalves.
Eles trabalhavam para uma empresa terceirizada, contratada pelas vinícolas Aurora, Garibaldi e Salton, importantes produtoras da região.
O pai de Borges de Medeiros era o advogado pernambucano Augusto César de Medeiros, nomeado promotor público de Caçapava do Sul, na Metade Sul do Rio Grande do Sul. No município, Medeiros casou-se com Miquelina de Lima Borges, de família de proprietários de terras.
Uma das iniciativas de Borges de Medeiros no governo do Rio Grande do Sul foi justasmente o incentivo à indústria de uva e vinho.
A região em que essa atividade prosperou, a Encosta da Serra do Nordeste (hoje conhecida como Serra gaúcha e compreendendo 75 dos 496 municípios gaúchos, incluindo Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Garibaldi e Flores da Cunha), foi uma das últimas a ser povoadas no Estado. A ocupação tardia teve causas sobretudo econômicas: situada 300 metros acima do nível do mar e coberta de florestas de araucária e pinus, não se prestava à criação de gado que havia sustentado por séculos a economia rio-grandense. A presença de índios da etnia kaingang, os chamados “bugres”, tornava a área mais ameaçadora.
Mesmo os primeiros migrantes na segunda metade do século 19 — alemães, franceses, holandeses, poloneses, suecos e suíços — não se aventuraram encosta acima, preferindo terras menos inóspitas e próximas de cursos d’água, como os vales dos rios Caí e dos Sinos. A Encosta da Serra foi destinada aos que chegaram mais tarde, a partir de 1870: os italianos oriundos das províncias do Vêneto e do Trentino (então parte do Império Austro-húngaro).
Em vez de ser alojados em aldeias, como na antiga tradição europeia que remonta à Antiguidade, os migrantes foram distribuídos em lotes independentes organizados em travessões (linhas). O sistema previa a criação de vilas que serviriam como centro comercial e comunitário, mas as linhas acabaram sendo a unidade adotada pelos colonos para a tessitura de seus laços de sociabilidade na nova terra.
Mal servidos pela geografia, os recém-chegados foram favorecidos pela história. Em 1893, pouco mais de três anos após a proclamação da República, o Rio Grande do Sul foi sacudido por uma guerra civil de três anos entre os republicanos, no poder em Porto Alegre, e os estancieiros da Metade Sul que haviam dominado a região desde os tempos coloniais. O conflito, que durou três anos e deixou 10 mil mortos, terminou com a vitória dos primeiros. Derrotados e humilhados, os fazendeiros da Metade Sul assistiram à remoção de entraves políticos à atividade manufatureira e comercial nas regiões de migração, embora a pecuária continuasse sendo o principal ramo da economia do Estado. Além disso, a guerra quase não chegou à Serra. Diferentemente do que ocorreria mais ao sul, a população cresceu e, com ela, o peso econômico de migrantes e descendentes.
O governo do Estado, sob Julio de Castilhos (1892-1898) e, depois, Borges de Medeiros, intuía o potencial agrícola e industrial das regiões de migração. O principal propósito era suprir os grandes centros urbanos, como Porto Alegre e Pelotas, com produtos de subsistência. As próprias colônias foram organizadas em moldes supostamente científicos, de acordo com a ideologia positivista. As primeiras tentativas de plantar uvas, com mudas vindas da Europa, não vingaram. Entusiasta do progresso da região, Borges de Medeiros criou uma estação agronômica para prestar assistência aos colonos e patrocinou a importação de mudas de uva da variedade Isabel ou Isabella, que mais tarde se provou inadequada.
Em mensagem à Assembleia Legislativa, em 20 de setembro de 1902, comemorou os sucessos alcançados: “A viticultura tem melhorado visivelmente, devido aos trabalhos que a Estação Agronômica há empreendido com eficácia. A distribuição anual de bacilos das melhores castas de videiras trará dentro em pouco a substituição completa da uva Isabella, que não é a mais própria para a fabricação do vinho, atenta a sua fraqueza alcoólica”. E completou: “Mais do que o aumento da produção, que aliás é animadora, importa aperfeiçoar os processos de vinificação e combater as fraudes e falsificações de todo gênero, sobretudo quando consistem na adição aos vinhos de substâncias tóxicas”.
A Serra especializou-se na produção de itens essenciais para as cidades em crescimento, mas que pouca atenção recebiam nas regiões de predomínio da pecuária: banha, uva e madeira. Esse tripé impulsionou um desenvolvimento econômico que não seria igualado em nenhuma outra região. Inicialmente destinada ao abastecimento do mercado rio-grandense, a banha tornou-se item de exportação a partir de 1889. Entre 1907 e 1927, o valor exportado cresceu 1000%. O vinho teve ascensão ainda mais meteórica: de 2,1 milhões de litros anuais em 1905 para 20,8 milhões entre 1927 e 1930. Finalmente, a madeira ganhou importância crescente a partir da 1ª Guerra Mundial, respondendo por 2% da receita total de exportações do Estado em 1926-1930.
Às 15h40min do dia 10 de junho de 1910, os sinos das igrejas da vila de Santa Teresa, na Serra, repicaram em júbilo. Era a chegada do primeiro trem à localidade, que passava, naquele dia, por ato assinado pelo presidente do Estado, Carlos Barbosa, um dos passageiros da composição, à categoria de cidade sob o nome de Caxias do Sul. O jornal O Brazil descreveu a cena: “Houve um alvoroço indescritível em todos os corações. Ouvem-se as notas vibrantes do Hino Nacional e da marcha real italiana; vivas e aclamações reboam nos ares; ao longe, ao sinal de um disparo de canhão, uma salva de 21 tiros de morteiros saúda a chegada do trem inaugural”.
O domínio de Borges de Medeiros foi inspirado no ideário positivista do filósofo francês Auguste Comte, que preconizava um governo dito científico. O objetivo de uma administração positivista seria promover o progresso por meio da correta aplicação do conhecimento humano em detrimento de valores democráticos como liberdade e representação. O positivismo havia inspirado intelectuais e militares desde os tempos do Império, e uma versão sintética de seu lema “O Amor por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim” foi incorporada à bandeira da República. Na prática, o regime do borgista Partido Republicano Rio-grandense (PRR) era uma ditadura na qual a Assembleia de Representantes (hoje Assembleia Legislativa), com esmagadora maioria governista, reunia-se duas vezes por ano.
“Tirano positivista”, definiu-o o poeta e diplomata francês Paul Claudel, enviado ao final da 1ª Guerra Mundial a Porto Alegre para negociar dívidas francesas e belgas no setor ferroviário. “Magro como lobisomem, mesquinho como o demônio”, vituperou Ramiro Barcelos, médico e aliado tornado inimigo, no poema Antônio Chimango, obra-prima de sátira política.
Há cem anos, oposicionistas promoveram um levante contra Borges que passou à história com o nome de Revolução de 1923. O objetivo do movimento armado era impedir a reeleição do chefe do PRR para um novo mandato. No acordo que pôs fim ao levante, o presidente do Estado comprometeu-se a deixar o governo definitivamente em 1928, quando foi eleito seu pupilo Getúlio Vargas.
Do ponto de vista econômico e social, o Rio Grande do Sul experimentou um boom sob o governo de Borges. Cidades foram criadas, expandidas e melhoradas com avenidas, parques e iluminação pública. Floresceram indústrias, linhas e ramais ferroviários, cais e armazéns para transporte fluvial e marítimo. Fundaram-se bancos, firmas de exportações, escolas, faculdades, tipografias, editoras, teatros. Essas e outras mudanças influenciaram de forma decisiva o Rio Grande atual e tiveram consequências para o restante do país.
A condição de filho de “baiano” — como eram conhecidos no Rio Grande do Sul os naturais da atual região Nordeste — rendeu dissabores a Borges de Medeiros. O historiador Sergio da Costa Franco (1928-2022) assinalou que seus muitos inimigos costumavam acusá-lo de não ter nascido no Rio Grande do Sul, contrariando um preceito da Constituição de 1891 para a ocupação do cargo de presidente do Estado. “A afirmação, de pura hostilidade partidária, não era verdadeira”, notou o autor de Julio de Castilhos e sua época. Borges nasceu em 19 de novembro de 1863 em Caçapava do Sul.
O adolescente Borges de Medeiros ingressou em 1881 na Faculdade de Direito de São Paulo, no Largo de São Francisco. Na instituição, tornou-se ardente republicano e abolicionista, além de positivista. O curso seria concluído na Faculdade de Recife, em 1885. Segundo Costa Franco, o motivo da transferência teria sido financeiro: na capital pernambucana, o estudante poderia contar com moradia e alimentação fornecidas por familiares do pai.
As relações tecidas na esfera familiar e acadêmica levaram Borges a manter importantes laços com nordestinos, alguns dos quais acolheu no serviço público e no setor privado no Rio Grande do Sul. Um deles foi o jurista potiguar Manuel André da Rocha (1860-1942), de Natal. Ele assumiu em 1890 a comarca de Lagoa Vermelha, no interior do Rio Grande do Sul. Posteriormente, foi chefe de polícia, procurador-geral do Estado e presidente do Superior Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul. Sua função mais notória, porém, foi a de diretor da Faculdade de Direito de Porto Alegre, hoje Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. André da Rocha permaneceu à frente da instituição durante 40 anos.