John Wesley: o pastor anglicano que, sem querer, criou uma nova igreja
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são apenas 341 mil aqueles que seguem a Igreja Metodista no Brasil. As raízes dessa religiosidade vieram do outro lado do Atlântico, na Inglaterra — mas a igreja tomou forma mesmo nos Estados Unidos.
Considerado o líder precursor, o clérigo e teólogo John Wesley (1703 Epworth-1791 Londres – ambas na Inglaterra) nasceu e morreu anglicano. E, curiosamente, nunca teve a intenção de criar uma nova igreja.
“Até o final da vida ele não se via separado da Igreja Anglicana. E não estimulava seus seguidores a romperem com ela”, comenta à BBC News Brasil o historiador, teólogo e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie.
“Wesley não criou uma nova igreja. Ele era da Igreja da Inglaterra – como mais tradicionalmente ele chamava a Igreja Anglicana -, filho de anglicanos, seu pai era pastor anglicano, sua mãe filha de pastor anglicano, seus avós e bisavós eram ligados à igreja”, acrescenta à reportagem o historiador e teólogo Vinicius Couto, doutor em ciências da religião pela Universidade Metodista de São Paulo, presbítero da Igreja do Nazareno e professor do Seminário Teológico Nazareno do Brasil e do Seminário Batista Livre.
A Igreja Metodista nasceu fruto de um movimento criado por Wesley. Mas só se tornou uma denominação independente por conta de um episódio político: no caso, a independência dos Estados Unidos.
Couto explica que o movimento capitaneado por Wesley era o que se costuma chamar de paraeclesiástico, ou seja, um grupo paralelo à igreja da qual eles participavam. Cresceu e passou a contar com muitos adeptos, tanto na Inglaterra onde se originou como nas colônias inglesas na América do Norte, para onde emigraram muitos de seus adeptos.
Contudo, após aquele 4 de julho de 1776, quando os Estados Unidos se tornaram um país livre das amarras coloniais, a ruptura institucional com a Inglaterra também teve consequências religiosas.
“No corte de todo o tipo de relacionamento com as ex-colônias, muitas igrejas nos Estados Unidos, estabelecidas de maneiras rústicas em templos improvisados, foram crescendo e ficando sem pastores para administrar os sacramentos, sem presbíteros ordenados [pela Igreja Anglicana]”, diz Couto.
Foi para não deixar esse povo desassistido que Wesley, à distância acompanhando o movimento que se espalhava por terras americanas, decidiu que era preciso viabilizar uma maneira para que sacerdotes fossem ordenados lá.
“Então ele viu a necessidade de autorizar, pessoalmente, orando por pessoas que trabalhavam com ele na sociedade metodista, esses novos presbíteros”, prossegue o professor.
O especialista explica que ocorreu uma corrente, em que um presbítero passou a orar pelo candidato a tal, e com isso novos sacerdotes foram ordenados. E assim por diante.
De modo que a intenção de Wesley, lá na Inglaterra, chegou até as terras norte-americanas. E os metodistas passaram a ganhar os primeiros presbíteros propriamente metodistas.
A Igreja Metodista foi organizada oficialmente em solo norte-americano no Natal de 1784. Na Inglaterra, onde o movimento nasceu, essa cisão do seio anglicano só ocorreria após a morte de Wesley — uma ala formalizou a separação em 1795, outra em 1797.
“John Wesley nunca abandonou a Igreja Anglicana”, enfatiza Couto.
Moraes ainda lembra que havia outra questão legal que “forçava” os metodistas a se assumirem como uma nova denominação religiosa, em vez de seguirem como um grupo paraeclesiástico.
“Havia uma lei inglesa do século 17 que permitia a existência de outras denominações que não a anglicana desde que se reconhecessem como outras denominações. Assim, os seguidores de Wesley se viam numa situação delicada: não queriam se separar da Anglicana mas, ao mesmo tempo, para existirem enquanto grupo precisavam se reconhecer como um agrupamento à parte”, explica o historiador.
O Clube Santo
Para entender as origens do movimento criado pelo religioso é preciso retornar à sua própria biografia e ao contexto de sua época. Wesley viveu em um período conturbado, em que as consequência da primeira Revolução Industrial eram vistas nas ruas das grandes cidades inglesas. A urbanização havia crescido e, ao mesmo tempo, desempregados, mendigos e criminosos passavam a fazer parte da paisagem cotidiana.
Ao mesmo tempo, Wesley notava que o cristianismo estava em baixa. Passou a infância em Epworth, na região leste da Inglaterra, onde nasceu. Foi alfabetizado pela mãe, uma religiosa compenetrada que usava o livro bíblico dos Salmos como apostila para educar os 19 filhos — Wesley foi o 15º.
Depois de concluir o ensino básico em uma escola pública, ele foi mandado para a Universidade de Oxford, onde se prepararia para, um dia, assumir o papel que tradicionalmente cabia aos de sua família: ou seja, tornar-se ele também um sacerdote anglicano.
Nessa época, juntou-se a estudantes e montaram um grupo que se reunia, de forma sistemática, diariamente. Era o Clube Santo.
Esses encontros serviam para leitura bíblica, estudos religiosos e oração. Ao mesmo tempo, e esta era uma preocupação latente de Wesley, esses estudantes não fechavam os olhos para a miséria ao redor. Realizavam visitas assistenciais e missionárias a orfanatos, presídios, hospitais.
Como eles eram extremamente regrados, com horários e métodos para tudo, logo acabaram tachados por outros alunos como “os metodistas”. E o apelido acabou ficando.
Wesley mesmo assumiu, dizendo que eles eram os Metodistas de Oxford. E havia quem os chamassem de “os devoradores da Bíblia”.
“Era um trabalho voltado para que eles se reunissem e colocassem em prática duas coisas: as obras de misericórdia e as obras de piedade”, pontua Couto. “Eles se reuniam todos os dias para isso.”
Obras de piedade eram as atividades ligadas à devoção.
“Eles oravam, jejuavam duas vezes por semana, liam a Bíblia de modo estudioso e também devocional”, explica.
“E colocavam em prática as obras de misericórdia, que têm mais a ver com compaixão: boas obras, caridade.”
Como bons metódicos, contavam com uma agenda organizada para visitar várias instituições da sociedade que precisavam de ajuda. “Duas vezes por semana eles intercalavam essas visitas, sempre de forma padronizada”, frisa Couto. “Viviam um compromisso de santidade não apenas moral mas também social.
Coração aquecido
Graduado em teologia, Wesley logo assumiu um papel junto a seu pai na Igreja Anglicana. Em 1735 resolveu encarar uma missão: converter indígenas na Georgia, uma das trezes colônias britânicas na América do Norte. Foram dois anos em que esteve lá, na companhia de seu irmão Charles. Em sua própria avaliação, o saldo foi de um fracasso retumbante.
No retorno à Inglaterra, Wesley conheceu um pastor da Morávia — hoje parte da República Checa — e com ele se convenceu que fé necessitava de uma experiência imersiva total.
“Ele conheceu um grupo de morávios que eram pietistas, ou seja de um movimento de avivamento do luteranismo. Isso faz com que ele começasse a questionar sua própria fé”, diz Moraes.
“Foi uma experiência que mudaria sua vida.”
O pietismo foi um movimento que valorizava as experiências individuais do crente.
Segundo as próprias anotações de Wesley, esse conceito para ele se concretizaria em um encontro religioso ocorrido em Londres em 24 de maio de 1738, enquanto ouvia a leitura de um texto escrito por Martinho Lutero (1483-1546) e viveu uma epifania.
“Senti que meu coração ardia de maneira estranha”, anotou ele. Seu entendimento era de que, naquele momento, Deus havia lhe “tirado” os pecados e que ele havia encontrado “a salvação”.
O episódio, conhecido como “a experiência do coração aquecido”, passaria a nortear a vida religiosa de Wesley — e daqueles que passaram a seguir o movimento metodista.
O religioso passou a pregar de forma obstinada, chegando a três sermões por dia, muitas vezes ao ar livre, indo ao encontro das pessoas comuns. Daí veio sua famosa frase: “o mundo é minha paróquia”.
Com a ajuda de seu irmão, ele passou a fundar sociedades, comandadas por leigos, com o objetivo de estudar a Bíblia, orar juntos e pregar — de certa forma, réplicas mais organizadas do antigo Clube Santo empreendido em Oxford.
Esse movimento acabou sendo o nascedouro da Igreja Metodista.
“O chamado metodismo nasce como um movimento baseado na ideia da experiência”, explica Moraes.
“Assim como os pietistas haviam renovado o engessado e dogmático apologético do mundo luterano, o metodismo trouxe ao anglicanismo uma religiosidade mais emotiva, mais baseada em experiências.”
Pentecostalismo?
Conforme reconhece o pesquisador, isso “de alguma maneira” vai desembocar para o universo pentecostal que viria nos séculos seguintes.
Para Moraes, é possível analisar o metodismo como um movimento híbrido. “Doutrinariamente, Wesley tem uma base calvinista muito forte, uma luta por justiça social e por organizar a sociedade”, comenta.
“Apesar de pregar nas ruas e nos campos abertos, ele entendia que a vida comunitária tinha de acontecer dentro de quatro paredes, que aos domingos a pessoa precisava ir à igreja, participar da comunhão, do culto.”
“O metodismo é inovador porque é talvez o primeiro grande movimento a compreender o impacto da urbanização, do processo de precariedade das condições de trabalho, da experiência de isolamento nos centros urbanos e como essa religiosidade cristã precisava se adaptar a esses novos tempos”, afirma ele.
“Essa religiosidade baseada na experiência acaba sendo uma máxima do movimento e tem sequelas nos movimentos seguintes, a partir do século 19.”
E um dos filhotes dessa ideia, nas ramificações complexas que permeiam a história das religiões, são as denominações pentecostais.
“Principalmente nos Estados Unidos, em que passam a ocorrer movimentos de santidade típicos dos grandes avivamentos, a ideia de injetar ânimo no povo que aparentemente está vivendo uma certa morosidade espiritual”, explica.
“A experiência mais profunda com o sagrado, a expressão ‘segunda bênção’, isso acaba sendo sequestrado pelo movimento pentecostal, que passa a utilizar esses termos para se referir ao batismo com o Espírito Santo, dentro da ideia de que o cristão pode ser salvo porque ele aceita Jesus Cristo mas ele só estará preparado para viver uma grande experiência no dia em que for batizado pelo Espírito Santo”, acrescenta Moraes.
“Perceba que tudo isso está ligado, na origem, ao movimento metodista. O pentecostalismo é herdeiro das ideias de Wesley porque ele aprofunda a temática.”
Para Couto, é preciso relativizar um pouco esse legado, não atribuir diretamente o pentecostalismo como uma consequência do movimento de Wesley.
“Podemos pensar, sim, em influência. Mas não em herança direta”, argumenta ele.
“John Wesley acreditava que a obra de santificação era operada pelo Espírito Santo, na ideia de que pessoa nasce de novo… Isso seria o que a gente vai ver mais adiante, a partir do século 19, como batismo do Espírito Santo. Mas para John Wesley isso aconteceria no momento em que a pessoa nasce de novo.”
Segundo o especialista, a visão metodista se aproxima mais da noção das igrejas reformadas do que das pentecostais que viriam em seguida.