Os segredos de família que são guardados por gerações

Foto de família
Walter, sentado e rodeado pela família

Cagney Roberts e Alexandria Gamlin

Em 2022, minha amiga Alex, dos Estados Unidos, veio me visitar em Londres.

Nós nos conhecemos há mais de 10 anos em Nova York. Sou cidadão londrino negro, britânico, e Alex é originalmente do Estado americano de Michigan.

Durante sua visita, nós conversamos sobre nossas carreiras, nossas famílias – e sobre segredos familiares.

Descobri que a família de Alex mantinha um importante segredo do passado, relacionado à raça, identidade e pertencimento. Sua revelação nos levou a pesquisar, antes de tudo, por que algumas famílias são forçadas a manter segredos – e o que os psicólogos podem nos dizer sobre o impacto desses segredos sobre a nossa saúde física e mental.

Mas vamos primeiro conhecer a história de Alex, nas suas próprias palavras.

Alexandria Gamlin: meu bisavô Walter

Minha avó me contava com frequência a história da avó dela, chamada Lulu May. Ela nasceu no século 19 em uma plantação em Newberry, na Carolina do Sul (EUA), onde seus pais haviam sido escravizados.

Quando jovem, Lulu May foi estuprada pelo dono da plantação, um homem branco. O estupro levou ao nascimento do pai da minha avó, meu bisavô Walter, na virada do século 20.

A escravidão terminou oficialmente nos Estados Unidos em 1865. Mas, para as pessoas negras em muitos Estados do sul dos Estados Unidos, como a Carolina do Sul, a emancipação não significou o fim da subserviência.

Aspectos fundamentais da escravidão eram mantidos em leis que foram aprovadas para que os cidadãos negros assinassem contratos de trabalho ou de serviço com seus antigos escravizadores brancos, que continuariam a ser conhecidos como seus “senhores”.

A segregação e a discriminação foram reforçadas pelos chamados sistemas de leis racistas de Jim Crow até bem depois da virada do século 20.

Mas, ao contrário da maioria dos bebês nascidos nessas circunstâncias, meu bisavô de pele clara cresceu sabendo exatamente quem era o seu pai. Ele passou a maior parte da juventude com seus meios-irmãos brancos na “casa grande”, onde morava o dono da plantação com sua família, enquanto os trabalhadores e os antigos escravos viviam em cabanas.

“Eu simplesmente sabia que ele não precisava trabalhar nos campos de algodão e fazer todo aquele trabalho pesado, porque ele ficava na casa do seu senhor, que, na verdade, era seu pai, porque ele foi o primeiro filho de Lulu May, uma jovem donzela”, segundo minha avó, Recalia Ruth Davis Childress.

Lulu May casou-se depois com um homem negro e teve outros filhos, irmãos mais novos de Walter, que moravam em uma cabana na plantação.

Quando Walter ficou adolescente, ele entrou nas forças armadas americanas e, mais tarde, serviu na Primeira Guerra Mundial. E, talvez naquela época, ou até um pouco antes, ele tomou a decisão de viver pelo mundo passando como homem branco.

A história da “passagem” racial nos Estados Unidos – a decisão de passar como branco, em resposta à forte discriminação e ao violento racismo – é documentada em fragmentos isolados. Ela costuma ser preservada pelas famílias, sem registros oficiais.

Uma razão, é claro, é que a decisão era um segredo. E, além disso, as famílias afro-americanas, de forma geral, podem ter dificuldade para rastrear sua própria história, devido à escravidão (até 1865) e à forma em que foram mantidos os registros dos censos ao longo do tempo.

Recalia Ruth Davis Childress
A avó de Alexandria Gamlin, Recalia Ruth Davis Childress, sabia do segredo do seu pai, mas não o divulgou fora da família

Em alguns casos, a passagem não incluía a reivindicação ativa da condição de branco, mas simplesmente não corrigir outras pessoas quando elas faziam essa avaliação. Em outros casos, ela envolvia esquemas elaborados, em uma tentativa desesperada de obter liberdade e segurança.

Foi o caso de Ellen e William Craft, um casal que escapou do sul da Geórgia para o norte dos Estados Unidos, em meados dos anos 1800. Ellen passou como homem branco e William, como seu servo pessoal.

Brian Lowery é psicólogo social da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e autor do livro Selfless: The Social Creation of You (“Sem identidade: a criação social de você”, em tradução livre), sobre a identidade e como o nosso mundo social nos molda enquanto pessoas. Ele define a passagem social como um conceito um tanto fluido.

“[Ela pode descrever] quando as pessoas saem para o mundo e permitem que os demais o considerem racialmente diferente do que você é”, explica Lowery. “Pode também significar a raça que você acredita que seja a sua.”

A passagem oferecia benefícios concretos em uma época em que as famílias afro-americanas enfrentavam muitas barreiras, incluindo a disparidade de oportunidades codificada no sistema legal.

“Por isso, se alguém pudesse ter acesso a esses benefícios, ele teria, se houvesse mais a ganhar”, afirma Lowery. “A necessidade de fazê-lo se devia principalmente à natureza do sistema.” Mas “a passagem era algo muito perigoso naquela época”.

Havia também o custo psicológico de deixar para trás sua velha identidade e comunidade.

No livro The Chosen Exile of Racial Passing (“O exílio voluntário da passagem racial”, em tradução livre), a autora Alysson Hobbs conta sobre uma mulher jovem e ambiciosa chamada Elsie Roxborough.

Ela decidiu passar racialmente como branca e rompeu todos os laços com sua família, na esperança de conquistar seus sonhos com mais facilidade. Em muitos casos, esses sonhos poderiam significar um trabalho melhor, o direito ao voto e a oportunidade de morar em um bairro melhor.

Posteriormente, Elsie, já com o nome de Mona Monet, pediu auxílio financeiro ao seu pai biológico, que se recusou a ajudá-la. Alguns dias depois, ela tirou sua própria vida.

“Acho que, para as pessoas que faziam a ‘passagem’, devia ser devastador para elas e para a sua família”, afirma Lowery. “Imagine o que seria cortar todos os laços com a sua família e os seus amigos. O custo psicológico para a família e para a pessoa que precisava fazê-lo seria imenso.”

Para ele, a passagem diz muito sobre a sociedade da época e a brutalidade infligida sobre os afro-americanos, que levava as pessoas a carregar esse fardo.

Meu bisavô não cortou laços com seus entes queridos. Na verdade, sua passagem foi pública, não em segredo. Sua aparência deu a ele a oportunidade de comprar terras em Michigan quando voltou da guerra. Isso moldou a trajetória de toda a minha linhagem.

“[O homem que vendeu a fazenda] era alguém meio preconceituoso e [não iria] vender aquela fazenda de 16 hectares para uma pessoa negra”, conta minha avó. Por isso, Walter “disse que não era negro, que era indígena ou algo assim, qualquer coisa menos negro, é como eram as pessoas preconceituosas”.

Na sua vida privada, meu bisavô viveu com orgulho, como um homem negro. Ele se casou, criou sua família naquela terra e, depois, passou a fazenda para os seus filhos. A terra sustentou diversas gerações e é a mesma onde minha mãe foi criada.

Na minha família, a história de Walter é contada com afeto. Ele fez o que precisava fazer para sobreviver e prosperar contra todas as adversidades. Na verdade, ele também ajudou os seus irmãos a sair da Carolina do Sul.

“Ele chamou seus irmãos do sul para virem para o norte. E foi assim que muitas pessoas negras saíram do sul – um familiar os retirava do sul para longe dali”, conta minha avó.

Embora a escravidão tivesse terminado há muito tempo, “eles precisavam sair à noite para fugir”, de forma que o dono da plantação não soubesse que eles estavam indo embora. “Você não saía, você ficava naquela plantação, isso é o que realmente acontecia.”

Na minha família, é difícil dizer qual foi o verdadeiro impacto da passagem de Walter e quanto segredo ela envolveu. Pelo menos, Walter não precisou mentir para sua esposa e seus filhos – ao contrário de outros, quando se casavam com mulheres brancas.

Seus entes queridos sempre souberam. Mas e a comunidade como um todo? Houve momentos em que ele esteve em perigo, em que teve medo de ter analisado mal a situação e pudesse ser descoberto a qualquer momento?

Como acontece com muitas histórias de família, existem aspectos que nunca saberemos. Quando falei com minha avó para esta reportagem, descobri que ela se identifica como mestiça, o que eu nunca havia percebido antes.

“Nunca me considerei de uma raça específica, eu sou mestiça”, afirma ela. “Nós somos chamados de americanos, um pouco de cada coisa.”

Não sei ao certo quem foi a primeira pessoa a contar o segredo de Walter para alguém fora da família. Mas quem quer que tenha feito devia ter a certeza de que as circunstâncias já haviam mudado o suficiente e que já era seguro contar a história.

Será que este orgulho pela vontade de sobreviver do meu ancestral afeta o impacto do segredo sobre a minha família, talvez se tornando uma fonte de força e não de dor e trauma?

Cagney Roberts perguntou a renomados especialistas em segredos sobre o impacto de guardar um segredo a longo prazo e suas respostas foram surpreendentes.

Cagney Roberts: Como os segredos nos afetam

Walter e sua família
Na sua vida privada, Walter (sentado, à frente) era um orgulhoso homem negro, mas ele decidiu apresentar uma versão diferente de si próprio em público

Os pesquisadores descobriram que os segredos são surpreendentemente comuns. Na verdade, muitos de nós chegamos a manter uma coleção inteira de segredos.

O psicólogo Michael Slepian é um dos principais especialistas na psicologia dos segredos e autor do livro The Secret Life of Secrets (“A vida secreta dos segredos”, em tradução livre).

Seus estudos concluíram que as pessoas mantêm, em média, cerca de 13 segredos simultaneamente – cinco dos quais elas nunca contaram para ninguém.

Outros segredos podem ser mantidos em confidencialidade, mas revelados para algumas pessoas, dependendo do tipo de segredo.

Os estudos indicam que experiências como o uso de drogas ou a insatisfação com o emprego são compartilhados com mais frequência, pelo menos com algumas pessoas, enquanto experiências e sentimentos como o desejo romântico ou o comportamento sexual são “certamente os principais segredos que não são compartilhados com ninguém”.

Slepian e seus colaboradores desenvolveram uma lista de 38 categorias comuns, nas quais se enquadram os segredos. Elas cobrem uma ampla variedade de assuntos: crenças, família, finanças, ambições, hábitos, hobbies, uso de drogas, dificuldades de saúde mental, mentiras, trabalho, relacionamentos, sexo e muito mais.

Os mais comuns, pela ordem, estão relacionados a ouvir uma mentira significativa (e manter o segredo); ter um desejo romântico enquanto solteiro; e segredos referentes ao dinheiro e finanças pessoais.

Em casos como o da passagem de Walter, que era conhecida da família, mas não do mundo exterior, a distinção entre a privacidade e o segredo nem sempre é tão perceptível.

“Pode haver algumas áreas cinza entre a privacidade e o segredo”, afirma Slepian. Algumas pessoas podem não querer falar sobre sexo e dinheiro, por exemplo, por motivos de privacidade.

“Mas, quando se torna um segredo, não é apenas porque ninguém sabe daquilo sobre você, mas porque você pretende que as pessoas não fiquem sabendo daquela informação”, explica ele.

Apesar de serem tão comuns, os segredos podem trazer um custo.

“As pessoas mantêm segredos por todo tipo de motivos, mas principalmente para proteger relacionamentos, a si próprios ou a outras pessoas. Os segredos causam prejuízo quando um relacionamento é afetado ou quando ele assombra o dono do segredo”, afirma Evan Imber-Black, professora de casamento e terapia familiar do Mercy College, em Nova York, nos Estados Unidos.

As evidências dos estudos de Slepian também indicam que os segredos podem prejudicar seus donos. Manter um segredo foi associado a menor satisfação na vida, redução da qualidade dos relacionamentos e sintomas de problemas de saúde física e psicológica.

Pode-se pensar que isso se deve ao estresse e à ansiedade de precisar esconder algo das pessoas, mas Slepian afirma que as razões reais são mais complexas.

“A ideia de que os nossos segredos nos prejudicam porque é difícil e estressante escondê-los, na verdade, está errada”, afirma ele. “Nossos segredos realmente nos machucam, mas, muitas vezes, por outros motivos, associados à sensação de vergonha, isolamento e inautenticidade.”

“Estas experiências podem nos causar sensação de impotência e manter um segredo durante uma conversa é apenas uma pequena parte da dor e do estresse causados pelos segredos”, afirma Slepian.

No caso da família de Alex, deve ter havido ocasiões em que manter o segredo realmente causou dor e estresse. Mas o impacto terá sido diferente porque era um mecanismo de sobrevivência?

Lowery sugere que o impacto da passagem pode atravessar gerações, mas o contexto mais amplo da opressão pode ter um impacto ainda maior.

“Existem boas possibilidades de que haja algum trauma agudo ou que tenha acontecido alguma tragédia que molde os indivíduos de famílias que sofreram a passagem racial, afetando como as pessoas se comportam hoje em dia”, afirma ele. “Pode causar falta de identidade entre diversas gerações que não pode ser rastreada.”

“Mas esse trauma, na verdade, é reflexo das incríveis degradações de todo o sistema estatal a que toda a comunidade negra foi submetida de alguma forma”, ressalta Lowery.

E o impacto individual de um segredo pode variar. Alex conta que se sente empoderada pela história oculta da sua família e pela coragem do seu ancestral. A história faz com que ela se sinta corajosa e segura, por ela própria e pela sua linhagem.

Para aqueles que têm sentimentos menos positivos sobre o segredo da sua família, Slepian tem um conselho: pensar em como manter o segredo faz você se sentir.

Se a resposta for “culpado”, pode estar na hora de aprender com o passado e tomar decisões diferentes no presente – incluindo, talvez, uma maior abertura.

“Quando as pessoas se sentem culpadas, elas ficam motivadas a fazer alguma coisa”, segundo Slepian.

“Você não pode mudar o passado, não importa o quanto quiser que isso aconteça. Mas você pode tomar a direção correta hoje e continuar a fazer o mesmo amanhã.”

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