A família boêmia que chocou a Grã-Bretanha vitoriana
Conheça os Rossettis: Christina, seu irmão Dante Gabriel e sua esposa Elizabeth.
Sua arte e poesia chocaram a Grã-Bretanha vitoriana. Mas o legado principal da família estaria na sua produção artística ou no seu espírito boêmio?
Os Rossettis é o nome de uma nova exposição na galeria de arte Tate Britain, em Londres, que fica em cartaz até setembro.
Ela nos convida a visitar o mundo de uma família extremamente atípica da era vitoriana – um mundo onde a moda de vanguarda se encontra com a liberação feminina, o uso de drogas, o radicalismo político, além de vombates, pequenos marsupiais originários da Austrália.
“Os Rossettis adoravam tudo o que fosse estranho e extremo”, afirma a curadora da exibição, Carol Jacobi.
“Eles eram muito impacientes com as normas convencionais da arte e da literatura. Estavam procurando heróis alternativos e formaram o primeiro movimento de arte de vanguarda da Grã-Bretanha.”
Para algumas pessoas, os quadros de Dante Gabriel Rossetti (e da Irmandade Pré-Rafaelita, movimento do qual ele foi um dos fundadores) são detalhados demais e afetadamente moralizadores – especialmente em comparação com os experimentos formais mais arrojados e a ilustração mais honesta da vida moderna dos movimentos de arte franceses da mesma época, como os impressionistas e os pós-impressionistas.
Mas esta visão desconsidera o aspecto mais importante da geração Rossetti no Reino Unido. Sua principal contribuição foi uma postura nova e radical para os artistas e mulheres criativas do país: a boemia.
Originalmente, o termo indicava, de forma depreciativa, os visitantes romanos na França. Desde então, ele passou a definir indivíduos com comportamento não convencional, que usavam roupas inovadoras – pessoas que desafiavam as regras da sociedade e saíam em busca de aventuras e liberdade de expressão.
Esse espírito boêmio da moda extravagante e comportamento excessivo é fundamental para a música, o design, as roupas e as artes até hoje em dia.
Sua ostentação contracultural é parte integrante da postura desenfreada de artistas como a poetisa americana Patti Smith e a cantora Matty Healy, vocalista do grupo The 1975, assim como as roupas extravagantes de David Bowie e Lady Gaga e o hedonismo de Keith Richards e Kate Moss.
Fundamentalmente, a boemia é um ataque a qualquer valor considerado de classe média. Isso envolve os papéis convencionais de gênero, comportamentos conservadores em relação ao amor, os valores tradicionais da família, a conformidade ao vestir e a repressão do prazer sensual.
Mas como os Rossettis lançaram essa forma de vida influente entre os artistas na Grã-Bretanha vitoriana? E onde entram os vombates nessa história?
Tudo começou com seu ambiente familiar não convencional.
Os Rossettis eram londrinos de primeira geração. Seu pai era poeta e combatente da liberdade italiano e sua mãe era acadêmica, também de família italiana.
Os jovens Rossettis foram criados em um ambiente único, que valorizava a política progressista e a criatividade artística.
Christina Rossetti (1830-1894) começou a brilhar cedo. Seus poemas foram publicados pela primeira vez quando ela tinha apenas 16 anos de idade.
Seu poema mais popular, provavelmente, é Goblin Market (“O Mercado dos Goblins”, Ed. Companhia das Letrinhas, 2015).
Escrito em 1859, trata-se de uma alegoria surpreendentemente original da sexualidade corrompida em um mundo materialista. Estes temas seriam refletidos mais tarde nas pinturas de Gabriel e Elizabeth.
Christina Rossetti era uma radical discreta, que levava uma vida não convencional para uma mulher naquela época. Ela formou uma carreira de grande sucesso e bem remunerada, sem a dependência burguesa de um marido como guardião financeiro.
‘Excessos boêmios’
Se você ainda não entendeu onde entram os vombates, fique sabendo que esses animais eram importantes para o irmão de Christina, Dante Gabriel Rossetti (1828-1882).
Ele era igualmente precoce e foi um dos fundadores de um novo e revolucionário movimento artístico, a Irmandade Pré-Rafaelita, com 20 anos de idade.
A Irmandade dedicava-se a desafiar a autoridade da Academia Real de Artes britânica. Ela acreditava em uma arte que oferecesse a verdade com base na precisão perceptiva e na coragem moral. E Gabriel acreditava que esses conceitos não existiam na arte acadêmica privilegiada pela classe média.
Gabriel Rossetti liderou os artistas de sua época com seu carisma, inspiração e visão revolucionária. Seus conceitos podiam ser sedutoramente bizarros e, muitas vezes, beiravam o escândalo.
“Gabriel abandonou a faculdade de artes – é difícil ser mais boêmio do que isso”, explica Carol Jacobi. “Ele usava roupas noturnas durante o dia e foi o primeiro a andar vestido de preto para ficar atraente.”
Em relação ao seu comportamento amoroso, Gabriel provavelmente se considerava um libertino forçando seus limites. Mas seus relacionamentos também não se preocupavam com as emoções de ninguém, exceto as dele próprio.
Embora tivesse um relacionamento longo com Elizabeth Siddal, que durou 10 anos até o pedido de casamento, Gabriel teve um romance com a popular modelo pré-rafaelita Fanny Cornforth. E, posteriormente, manteve outro romance com Jane Morris, esposa do seu amigo William Morris.
Após a morte de Siddal, em 1862, Gabriel mudou-se para uma casa no distrito de Chelsea, em Londres. A casa foi palco dos seus excessos boêmios e, particularmente, da sua obsessão por animais de estimação exóticos.
Os vombates eram uma compulsão particular, mas ele também tinha um tatu, pavões, cangurus, uma toupeira e um lulu-da-pomerânia chamado Punch. E seu tucano de estimação aprendeu a andar pela casa em uma lhama.
Esses animais costumavam andar livremente pela casa ou até escapavam, aterrorizando os respeitáveis vizinhos de Gabriel Rossetti.
Segundo o pintor americano Whistler, certa vez, tarde da noite, Gabriel mandou trazer seu vombate para a mesa com café e cigarros, para que ele pudesse ouvir as leituras de outro convidado, o escandaloso poeta Algernon Charles Swinburne.
Triunfos e tragédias
Estas histórias trazem à tona aspectos fundamentais do caráter boêmio, como o desprezo pelas normas burguesas, a propensão à automistificação e, talvez o principal, a ideia de que a arte não precisa ser exposta em uma galeria ou museu. Para Gabriel Rossetti, a própria vida era uma forma de arte.
Seus excessos atingiram um novo patamar em 1869, quando ele exumou o corpo de Siddal do seu túmulo no cemitério de Highgate, em Londres, para recuperar um manuscrito de poemas que ele havia colocado embaixo do cabelo da esposa.
As páginas precisaram ficar mergulhadas em desinfetante por duas semanas antes que Gabriel pudesse transcrevê-las para publicação.
Como aconteceu com Siddal, Gabriel morreria relativamente jovem em 1882, devido à sua dependência de álcool e hidrato de cloral, um sedativo de uso medicinal.
A amante de Gabriel que acabou sendo sua esposa, Elizabeth Siddal (1829-1862), foi uma mulher pioneira no século 19. Ela se estabeleceu como artista independente e desenhava suas próprias roupas, que eram não convencionais e feitas por ela mesma.
“Ela redefiniu totalmente as roupas femininas”, afirma Jacobi. “Ela simplesmente não conseguia usar armações, espartilhos e tudo o mais, de forma que ela redesenhou as roupas de trabalho.”
“Ela saía com roupas adaptadas e seu cabelo para baixo. Esta liberdade de vestimenta era muito inspiradora”, explica Jacobi.
“Tornou-se um padrão. Se você queria ser considerada uma mulher jovem e progressista, era assim que você se vestia.”
Siddal era uma mulher da classe trabalhadora. Ela foi funcionária de uma loja de chapéus até se associar aos artistas pré-rafaelitas em 1849. Siddal então serviu de modelo para suas pinturas, até se tornar uma artista independente.
Gabriel e Elizabeth colaboraram e influenciaram-se mutuamente. Seu caso de amor e eventual casamento foi tumultuado e problemático, tornando-se mito desde então. Mas existem aspectos do caráter boêmio de Siddal que fazem parte importante da sua história.
“Ela certamente não levava sua vida de acordo com as normas”, segundo Jacobi.
“Ela passou anos com Rossetti antes que eles se casassem e, recentemente, sugeriu-se que não foi porque ela estivesse esperando que Gabriel se casasse com ela, mas sim porque ela estava deliberadamente mantendo sua independência”, explica ela.
Siddal era essencialmente autodidata. Ela desafiava a nomenclatura social e a liberação era sua bandeira. Estas características eram inovadoras na Londres vitoriana, mas se tornaram a própria definição da boemia no século seguinte e além.
Tragicamente, Siddal foi vítima da dependência, como Gabriel. Ela morreu de overdose de láudano, um opioide que era usado como anestésico no século 19.
A história dos Rossettis é repleta de triunfos e tragédias.
Mas seu maior legado para a história da arte (dividido em três histórias de vida muito diferentes) foi a invenção da primeira subcultura artística britânica, que entrou em conflito direto com os padrões vitorianos.
Christina Rossetti subverteu os estereótipos de gênero sobre a criatividade feminina, o amor e a vida familiar. Gabriel Rossetti ignorou as normas burguesas de todo tipo e fez da vida diária um evento artístico; e Elizabeth Siddal estabeleceu uma independência criativa e de vestuário única.
Em vez de viver os estilos de vida determinados pela sociedade, eles escolheram seus próprios caminhos – e tornaram-se os primeiros boêmios da arte britânica.