O polêmico general americano que inspirou sobrenome de Rita Lee
Transgressora, progressista e defensora da liberdade, Rita Lee morreu nesta terça (9/5) aos 75 anos.
Vinda de uma família conservadora, a rainha do rock ostentava com orgulho o título de “ovelha negra” da família e chegou a ser presa pela ditadura militar.
Na mesma autobiografia em que dizia que seu epitáfio deveria ser “nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa”, a cantora de rock contou sobre o histórico de sua família.
Lee não era o sobrenome original na família paterna – foi escolhido por seu pai em homenagem a um general americano. A família de seu pai, Charles Fenley Jones, era de imigrantes americanos que se instalaram na cidade paulista de Santa Bárbara d’Oeste depois da guerra da secessão nos EUA, contou a cantora em Rita Lee: Uma Autobiografia (Globo Livros).
“Lee não é sobrenome de família; meu pai foi o primeiro a acrescentá-lo ao nome das três filhas em homenagem ao general confederado Robert E. Lee”, escreveu ela. “A partir de então, primos e primas de todos os graus passaram também a adotá-lo.”
Robert E. Lee foi um general e comandante do exército sulista americano durante a guerra civil no país (1961-1965), na qual os confederados foram derrotados. Assim como os outros imigrantes americanos que se instalaram em Santa Bárbara d’Oeste, a família paterna de Rita Lee estava do lado dos confederados e deixou os EUA após os sulistas perderem a guerra.
O bisavô de Rita, o médico Robert Norris, era maçom e veio cultivar algodão em terras cedidas aos imigrantes por Dom Pedro 2º, que também era maçom.
Nos EUA, Robert E. Lee é um dos nomes que representam o Confederalismo – que hoje passou a ser visto por muitos americanos como símbolo do apoio à escravidão e da extrema-direita.
A retirada de uma estátua sua em Charlottesville, no estado da Virgínia, foi o estopim para uma confusão em 2017, quando supremacistas brancos entraram em conflito com antifascistas após um supremacista jogar o carro em cima de um militante contrário ao racismo. A retirada fazia parte de um movimento de remoção de monumentos e homenagens a confederados.
Em sua autobiografia, Rita Lee conta que seu avô, Norris, chegou a ter escravos. Uma das ex-escravas, Olímpia, veio com a família para o Brasil e visitava os pais da artista em São Paulo, para onde seus pais se mudaram quando se casaram.
“Uma vez, eu quis saber o que significava a palavra ‘gódemi’ que Olímpia sempre usava no final de algumas frases, e meu pai explicou que quando ela se referia às agruras que passou durante a Guerra de Secessão, emendava um God damn it! (algo como ‘maldição!’, em inglês)”, conta a roqueira no livro.
Grande mistura
Como a maioria dos brasileiros, a origem familiar de Rita Lee era uma grande mistura. Além dos americanos confederados, ela tinha ascendentes indígenas americanos, por parte de pai; e imigrantes italianos ultracatólicos por parte de mãe.
Rita Lee escreveu em seu livro que seu avô paterno, Cícero, era mestiço, “filho de uma índia da tribo Cherokee com um cara-pálida americano de ascendência escocesa”.
“Certa vez, Cícero se envolveu numa briga num bar e acabou matando um branco no Alabama e, para fugir da prisão, entrou de gaiato num navio onde embarcavam para o Brasil as primeiras famílias confederadas”, explicou.
No navio, Cícero se aproximou de Norris ao conseguir fazer com que um passageiro de primeira classe que estava passando mal melhorasse com o uso de um placebo – o que deixou o médico impressionado.
“Chegando ao Brasil, meu bisavô tratou de lhe conseguir um diploma de médico e acrescentou um ‘Jones’, por ser um sobrenome super comum e difícil de ser traçado’, escreveu.
No Brasil, Cícero se casou com a filha mais velha de Norris e, após a morte da primeira esposa, com outra filha, Martha, com quem teve nove filhos, incluindo Charles, o pai de Rita Lee.
Santa Bárbara d’Oeste
Em seu livro, Rita Lee relembrava também dos eventos “surreais” dos imigrantes americanos dos quais sua família participava de dois em dois anos no interior de São Paulo. “Na Reunião do Campo, como era chamado o evento, cada família dividia com os descendentes pelo menos dois pratos típicos da culinária sulista, expostos numa mesa principal e proibidos de serem atacados até encerrarem o demorado culto religioso”, contava ela.
Segundo a artista, todos os participantes – homens, mulheres e crianças – iam à caráter, com figurinos confederados da época da guerra.
“Alguém menos avisado que passasse por lá pensaria se tratar de um episódio da série Além da imaginação”, escreveu Rita Lee. “Crescer sendo brasileira entre americanos protestantes/maçons e italianos ultracatólicos me deu uma panorâmica existencial de valores e bizarrices.”
As cidades de Americana e Santa Bárbara d’Oeste até hoje têm comunidades de descendentes de imigrantes americanos. Parte da comunidade ainda participa de eventos como os descritos por Rita Lee em seu livro.
Rainha
Cantora, compositora, multi-instrumentista, além de escritora e apresentadora, Rita construiu uma carreira de sucesso que começou com o rock, mas que flertou com diversos gêneros: da psicodelia d’Os Mutantes ao pop, passando por disco, MPB, bossa nova e eletrônica ao longo de mais de cinco décadas.
Também se tornou uma das mulheres mais influentes do país, reconhecida por gerações de artistas por seu pioneirismo empunhando uma guitarra nos palcos, a irreverência que a levou à televisão, as opiniões fortes, a defesa da liberdade e dos animais.
A cantora anunciou sua aposentadoria dos palcos em 2012 e passou os últimos anos reclusa em um sítio na Grande São Paulo com o marido, Roberto. Ela foi diagnosticada com câncer de pulmão em maio de 2021.
Após sua morte, a família divulgou a seguinte nota: “Comunicamos o falecimento de Rita Lee, em sua residência, em São Paulo, capital, no final da noite de ontem (segunda), cercada de todo o amor de sua família, como sempre desejou”.
O velório será aberto ao público, no Planetário do Parque Ibirapuera, na quarta-feira (10/5), das 10h às 17h.