Ditadura militar atuou para proteger agentes

  • Exército enviou ao SNI lista de colaboradores que queria abrigar no serviço público federal 

THIAGO HERDY

O Exército brasileiro tentou proteger de represálias um grupo de 49 agentes de órgãos estaduais que colaboraram ativamente com a ditadura militar e se notabilizavam “por seu engajamento pessoal ou funcional com o ideário da Revolução de 1964”. Um documento localizado pelo GLOBO aponta a preocupação com a segurança de indivíduos considerados colaboradores do regime após a eleição, em 1982, de governadores de oposição no Rio de Janeiro (Leonel Brizola), São Paulo (Franco Montoro), Minas Gerais (Tancredo Neves) e Goiás (Íris Rezende).

Assinado pelo Comando de Informações do Exército (CIE) e com difusão restrita ao Serviço Nacional de Informações (SNI), o texto cita o nome de funcionários que o próprio Exército considerava “alvos naturais de perseguições”, em função de suas “convicções e posicionamentos” durante o regime militar, sugerindo que fossem incorporados ao funcionalismo federal (que, na época, ainda estava sob comando militar do general Figueiredo). O documento foi produzido em 1983, no fim da ditadura. Especialistas ouvidos pelo GLOBO informam se tratar de registro raro, por não ser comum a exposição de colaboradores do regime em documentos oficiais.

Entre os 49 citados, pelo menos 16 estão vivos e 11 já morreram. Não há informações sobre o restante. A maior parte prestava serviços em unidades do Departamento de Polícia Política e Social (Dops) do Rio de Janeiro (24), de São Paulo (13) e de Goiás (6). São citados também um funcionário do Paraná e outro do Espírito Santo.

A lista reforça a participação de nomes já conhecidos pelo envolvimento com a repressão aos organismos de esquerda no Brasil, como o delegado mineiro Thacir Omar Menezes; os detetives cariocas José Paulo Boneschi e Ricardo Wilke; o legista Harry Shibata e o delegado paulista Aparecido Calandra — que ainda hoje nega ser o “Capitão Ubirajara”, codinome a ele atribuído por pelo menos uma dezena de presos políticos que o reconheceram anos depois de terem sido submetidos a sessões de tortura. O documento também traz nomes até então desconhecidos por sua relação com o regime.

Há funcionários que no passado foram acusados de cometer atos de violência e homicídios na ditadura, como Theobaldo Lisboa, citado no livro “Brasil: Nunca Mais” como responsável pela prática de tortura durante interrogatório no Dops; José Muniz de Souza, acusado de matar um bancário em uma blitz, em São Paulo; Lourival Gaeta, responsável pela morte do militante Frederico Eduardo Mayr, em 1972; e José Xavier do Bonfim, acusado de participar do assassinato de dois militantes de esquerda no interior de Goiás, em 1973.

Na lista também são citados agentes que cuidavam da documentação de inteligência e que teriam sido incorporados ao funcionalismo federal para cuidar dos arquivos dos Dops. Em São Paulo e Rio, por exemplo, os papéis foram transferidos à Polícia Federal. Em Minas, os documentos foram incinerados por um dos nomes citados na lista: o delegado Ediraldo Brandão, que se aposentou em 2002 e atualmente é advogado em Belo Horizonte. Não foi possível confirmar sua ida para o funcionalismo federal.

— Quando os governadores foram eleitos, havia uma preocupação sobre o que fazer com os aparatos repressivos montados nos estados. Muitos torturadores foram abandonados à própria sorte, principalmente os mais truculentos. Mas, por uma questão de estratégia, é natural que alguns funcionários tenham sido levados para a área federal, principalmente aqueles que cuidavam dos arquivos — afirma o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

É consenso entre especialistas a ocorrência do que Fico chama de “saneamento dos arquivos” dos Dops, isto é, a seleção prévia e a destruição de papéis sensíveis ao regime.

— É algo que se percebe claramente quando pesquisamos os arquivos do Rio e de São Paulo — afirma.

Para o historiador da UFMG Rodrigo Patto Sá Motta, o documento confirma “o quadro de intervenção federal nas polícias políticas estaduais, para reduzir o ‘prejuízo’ da redemocratização”.

— Note que o documento foi bastante sigiloso, pois era comum esses documentos serem difundidos para vários órgãos. Ele foi produzido pela mais feroz das agências de repressão, o CIE, e enviado apenas para a Agência Central do SNI, o que evidencia não ter se tratado de coisa corriqueira — avalia.

Autora de livro sobre ditadura na América Latina, a historiadora Carolina Silveira Bauer cita o medo que militares tinham de vir a ser responsabilizados pelos abusos cometidos.

— Eles consideravam um perigo a “argentinização” da transição política brasileira, isto é, o risco de serem levados à Justiça. Por isso essa atitude de resguardo de figuras diretamente vinculadas com a repressão — diz a pesquisadora.

Fonte: O Globo

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