Gastos milionários com royalties ficam ‘secretos’ em prefeituras com transparência precária
O destino da dinheirama de royalties de petróleo que municípios obtiveram após decisões “sem rigor técnico” do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) é um limbo. Os milhões de reais extras foram obtidos, em sua maioria, por prefeituras com transparência precária, o que impede acompanhamento, fiscalização e análise da destinação dos recursos.
Nos poucos casos em que foi possível mapear o uso, os fins subverteram o princípio que os especialistas classificam como utilização ideal dos royalties – caracterizados como de natureza volátil, finita e incerta. Em vez de servirem a investimentos estruturantes, foram usados para inchar a máquina pública e firmar contratos suspeitos.
Como mostrou o Estadão, ações judiciais “que se baseiam em nada”, segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP), significaram R$ 125 milhões a cidades do Amazonas, de Alagoas e do Pará sem produção de petróleo. Os processos renderam R$ 25 milhões em honorários ao grupo do lobista Rubens Machado de Oliveira – condenado por estelionato e investigado por lavagem de dinheiro.
Os números só são conhecidos porque a ANP torna públicas as planilhas mensais de repasses. Da parte das administrações municipais, pouco se sabe sobre a entrada e a saída desse tipo de recurso. Dentre as prefeituras que se mobilizaram para reivindicar o dinheiro na Justiça Federal de Brasília, há municípios com portais de transparência que não trazem o detalhamento de despesas e de fontes dos recursos.
Nos primeiros sete meses de 2023, os municípios brasileiros já receberam, juntos R$ 15 bilhões em royalties. Para se ter uma ideia, quatro ministérios têm orçamento menor do que esse valor – Integração e do Desenvolvimento Regional (R$ 11,5 bilhões); Minas e Energia (R$ 9 bilhões); Planejamento (R$ 3,4 bilhões) e Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (R$ 2,6 bi).
A fiscalização das despesas realizadas com essa verba dos royalties fica a cargo dos tribunais de contas regionais, conhecidos pela influência política em suas composições.
“Entendemos que a procuradoria junto à ANP deveria cientificar os Tribunais de Contas dos Estados e/ou dos municípios acerca da existência das ações judiciais de alegações genéricas mediante a contratação de escritórios de advocacia, que vêm gerando royalties a esses entes federativos em virtude de decisões judiciais liminares”, alertou a ANP, em uma nota técnica que mapeou decisões do TRF-1.
O Estadão revelou que um grupo coordenado por um lobista condenado por estelionato conseguiu contratos sem licitação com 56 prefeituras de oito Estados apresentado à Justiça “ações genéricas” e “sem amparo técnico e legal” assinadas até por advogados recém formados. Para 21 delas houve decisões favoráveis – sendo 19 dos mesmos três desembargadores do TRF-1. Dessas, 14 já efetivamente receberam parcelas extras.
Dez ordens saíram do gabinete do desembargador Carlos Augusto Pires Brandão; cinco do gabinete da desembargadora Daniele Maranhão; e quatro do desembargador Antônio Souza Prudente. O TRF-1 tem 38 desembargadores, mas só os três concederam decisões nesse sentido. A reportagem levantou as informações nos processos públicos que tramitam no TRF-1.
Pires Brandão e Souza Prudente não comentam o assunto. Daniela Maranhão só aceitou se manifestar após a publicação da primeira reportagem da série. Ela enviou uma nota ao jornal: “Magistrada de carreira, a desembargadora Daniele Maranhão atua há 30 anos com base na lei e nos princípios que regem a jurisdição e, ao contrário do que sugere o Estadão, nunca proferiu decisões que “driblam” a lei”.
Na nota, afirmou ainda: “A reportagem ignora que as cidades não produtoras de petróleo podem receber royalties, desde que cumpram outros requisitos. Nos casos mencionados, no entanto, houve o deferimento de liminar e facultada a juntada de documentos complementares pelas partes. Com a documentação trazida pela Agência Nacional do Petróleo (ANP), as decisões foram revogadas. Posteriormente, houve a rejeição do mérito dos pedidos.”
Como mostrou a reportagem, as decisões foram revogadas pelo juiz substituto e não pela desembargadora.
A transparência da cidade de Arthur Lira
Entre as beneficiadas por decisão judicial está a pequena Barra de São Miguel (AL), com R$ 15 milhões arrecadados. O reduto do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), – administrado pelo pai dele, Biu de Lira (PP) -, apresenta informações sobre a arrecadação e despesas na transparência ativa. Assim, foi possível identificar que a prefeitura torrou os royalties em honorários do advogado Gustavo Freitas Macedo, ligado ao lobista, e inchou a máquina pública. A cidade foi atendida por um desembargador com base em um critério que ela nem cumpre.
A transparência nos municípios que foram à Justiça Federal de Brasília reivindicar parcelas milionárias de royalties, contudo, não é a regra. Alvarães (AM) foi a primeira cidade representada pelo grupo do lobista a obter parcelas milionárias de royalties por ordem do TRF-1, ainda em janeiro de 2021. Até o momento, o município já recebeu R$ 18,8 milhões pela “existência de instalações de embarque e desembarque de gás natural (pontos de entrega) sobre a produção marítima e terrestre”. Estrutura que, na verdade, não possui.
A cidade de 15,8 mil habitantes a oeste de Manaus publica a prestação de contas em um portal compartilhado com outros municípios do Estado. Apesar de parte dos dados da administração estar disponível ao cidadão, acessar os detalhes dos gastos não é uma tarefa simples. Não há, por exemplo, mecanismos de busca. É preciso abrir planilhas avulsas para obter informações sobre gastos, divulgados em listas e sem detalhamento.
As planilhas do município não registram, por exemplo, qual é a origem do recurso gasto em cada despesa. Os R$ 3,8 milhões em honorários gastos com o advogado Gustavo Freitas Macedo, que obteve a vitória no TRF-1, foram identificados na prestação de contas de Alvarães junto a uma fonte de recursos descrita apenas como “0.01.87″. A prefeitura não oferece um dicionário que permita ao cidadão entender a origem da verba.
A mesma fonte que paga o advogado também foi usada para comprometer R$ 7 milhões com cinco empresas. Uma delas é a RG Serviços Locação Terraplanagem LTDA, cujos sócios foram beneficiários do Auxílio Emergencial em 2020 e em 2021. Um de Alvarães e outro de Manaus. Em 2022, a empresa recebeu R$ 800 mil do município. Não há descrição do serviço prestado.
Já o município de Novo Airão (AM), que recebeu R$ 12,8 milhões em royalties após decisão judicial, não apresentou nenhuma informação sobre seus gastos neste ano. Não há nenhuma planilha, tabela ou explicações referentes ao primeiro semestre de 2023 no portal da Transparência.
A cidade de Rio Preto da Eva (AM) é outro exemplo. A planilha que deveria detalhar as despesas de R$ 174 milhões de 2022 apresenta os dados de forma generalista. Em 1 de junho do ano passado, a prefeitura gastou R$ 1,053 milhão “referente ao serviço de advocacia”. Não há informações sobre quem recebeu o dinheiro ou qual foi o trabalho feito.
Royalties são oportunidade e ameaça aos prefeitos
A má qualidade dos gastos com royalties é um tema recorrente entre gestores da área. A receita extraordinária disponível acaba servindo a reajustes e contratações de pessoal. Em seguida, ela míngua, e os compromissos assumidos permanecem.
“Tem muitos municípios que acabam sofrendo com isso. Eles aumentaram a arrecadação de forma rápida e significativa, mas quando caiu acabaram quebrando. O prefeito tem que ter muito cuidado com essa receita de royalties. Tem prefeito com dificuldade de honrar programas que criou e até salários”, disse Hugo Wanderley Caju, prefeito de Cacimbinhas (AL) e presidente da Associação dos Municípios Alagoanos (AMA).
O presidente da Associação Amazonense de Municípios (AAM), Anderson Sousa, prefeito de Rio Preto da Eva, não retornou as chamadas nem as mensagens da reportagem. Na semana passada, ele havia apresentado Rubens de Oliveira como “consultor da associação”. Os municípios amazonenses são os principais “clientes” do lobista.
A reportagem não conseguiu localizar o prefeito de Alvarães, Lucenildo Macedo, nem os sócios da RG Serviços Locação Terraplanagem LTDA. A prefeitura de Barra de São Miguel não retornou aos contatos da reportagem.
Arthur Lira pediu mais prazo para responder à reportagem, mas depois preferiu não se manifestar oficialmente. O lobista Rubens de Oliveira chegou a dizer que não atua com royalties, antes de desligar o telefone e ignorar o contato.
Procurado, o TRF-1 informou que não haveria manifestação por parte dos magistrados. A desembargadora Daniele Maranhão informou que “tem 30 anos de magistratura e sempre pautou suas decisões pelas leis e pelos princípios que regem a jurisdição”. A magistrada disse que “repudia as ilações que foram feitas”.
A ANP, por meio da Advocacia-Geral da União (AGU), disse ao Estadão que se tratam de “decisões proferidas sem rigor técnico” que estabelecem “critérios criados judicialmente”.
“Quando um município que legalmente não tem direito a royalties passa a recebê-los, isso gera um efeito cascata bastante deletério, pois reduz o montante a ser repassado àqueles que legalmente têm direito a receber”, destacou a nota.
Vinícius Valfré e Julia Affonso/Estadão Conteúdo