Mulher espera há 20 anos . Crédito: Paula Fróes
A morosidade processual é a demora excessiva no andamento e resolução de processos judiciais. No Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) há situações que ultrapassam o que se pode classificar de “cúmulo do absurdo”. É caso da aposentada Maria de Fátima Lordelo dos Santos, de 62 anos, que sofridamente aguarda há mais de 20 anos pela primeira sentença num pedido de perícia que está parado na 8ª Vara da Fazenda Pública, no Fórum Ruy Barbosa. A solicitação consta nos autos movido contra o Estado da Bahia, referente a ação indenizatória como forma de reparação ao dano à autora, que ficou cega de um olho, após contrair um fungo enquanto trabalhava como secretária na Polícia Militar. O caso foi denunciado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no dia 19 de julho deste ano, que deu um prazo de 30 dias para a manifestação do TJ-BA.
“Esses 20 anos eu não vivi. Eu tinha uma vida muito ativa, saudável. Hoje me sinto uma inútil. Sequer posso atravessar uma rua sozinha e ainda tenho que passar por tudo isso? São anos aqui atrás de uma resposta. Será que esses juízes não têm coração? Essa angústia me destrói ainda mais! Perdi a vontade de viver!”, desabafou Maria de Fátima, ao mesmo tempo em que chorava. Ela foi diagnosticada com ceratite – inflamação da córnea que pode ser provocada por uma lesão ou infeção originada por vírus, bactérias, fungos ou parasitas. Cega do olho direito, ela desenvolveu uma depressão.
Em fevereiro de 2003, Maria de Fátima ainda estava na corporação quando o processo foi encaminhado para a 8ª Vara da Fazenda Pública, para desde então estacionar. À época, o valor da indenização era de R$ 150 mil. “Com as correções, hoje ultrapassaria R$ 1 milhão”, disse um dos advogados que há dois anos acompanha o caso da servidora. Em 2014, a 8ª Vara da Fazenda Pública informou que no sistema de peritos do TJ-BA não havia cadastro da especialidade de oftalmologia. Em 21 de janeiro de 2019, o juiz Pedro Rogério Castro Godinho manteve o posicionamento e ainda sugeriu que a aposentada arcasse com o laudo. “Intime-se a parte autora para informar sobre o interesse de custear a perícia oftalmológica com vistas ao deslinde regular do feito”, diz trecho do despacho.
“Até agora nenhuma movimentação plausível. A gente peticiona e dão despachos com muita insistência, porém protelatórios, que não resolve nada. Por exemplo, a gente pede a perícia, é reconhecido nos autos que o que ela (Maria de Fátima) ganha não dá para pagar e, mesmo assim, a justiça pede para que ela pague pela perícia porque o Estado não tem perito”, disse a advogada Manuela Oliveira.
TJ diz que não tem perito e recomenda que autora da ação pague por perícia. Crédito: Divulgação
Ainda que a perícia seja realizada, a aposentada terá muito o que esperar. “O absurdo é tão grande que estamos na primeira sentença. Sabemos que o Estado vai recorrer e que será uma briga longa. Se a perícia tivesse feita desde o início, ela já teria recebido a indenização nesses 20 anos. A nossa luta é que dona Maria de Fátima ainda consiga gozar desse dinheiro, da satisfação que a justiça foi feita com ela em vida”, declarou a advogada.
Mas para evitar que a situação se prolongasse ainda mais, a defesa de Maria de Fátima entrou com um pedido há cerca de de um mês no TJ-BA para que o juiz da 8ª Vara da Fazenda Pública desse a sentença com base no laudo da Polícia Militar, o Inquérito Sanitário de Origem (ISO), iniciado em 1994 e que consta desde o início do processo. “Até o momento o não houve nenhum resposta”, pontuou Jonathan Queiroz, também advogado de Maria de Fátima.
O ISO é uma perícia médico-administrativa realizada para confirmar a incapacidade temporária, so definitiva, ou invalidez do militar. Durante o ISO, foram ouvidos diversos médicos, entre eles Osório José Oliveira Filho, coordenador de Perícias Médicas da SAEB (Secretaria de Administração do Estado da Bahia), que chegou a pedir afastamento por invalidez das atividades em 26 de setembro do mesmo ano, após constatar que ele teve uma “ceratite herpética associada a crise hipertensiva em OD”.
Laudo militar atesta acidente de trabalhado de funcionária da corporação. Crédito: Divulgação
Porém, não foi isso o que aconteceu. “Só fiquei afastada no início, quando estava no estágio crônico. Não conseguia nem abrir o olho, de tão estufado que estava. Usava um tampão e só dormia dopada de tanta dor que sentia. Foi uma coisa tenebrosa que passei. Depois de três meses, o mesmo médico (Osório José Oliveira Filho) mandou um documento, dizendo que eu poderia ser relocada. Mas não desempenhava as funções corretamente porque não enxergava as letras e foi aí que desenvolvi a depressão, porque me sentia uma pessoa inútil ” contou ela, que se aposentou por tempo de serviço 2017 – na ocasião, ela trabalhava como secretária em um setor do QCG, no Largo dos Aflitos.
Quando Maria de Fátima iniciou a ação indenizatória contra o governo do estado, a Procuradoria Geral do Estado (PGE) exigiu uma nova perícia, que foi acatada pela justiça, após alegar a invalidade do reconhecimento de incapacidade da autora , pelo fato de ela ser servidora civil. Ou seja, quando os trabalhadores do regime celetistas (CLT) passaram a ser servidores públicos, em 1994, as primeiras mulheres na Polícia Militar não foram incorporadas à PM, mas sim pela Secretaria de Segurança Pública (SSP). “A gente sonhou em ser as primeiras Pfens (policiais femininas) ou pelo menos ser aproveitadas dentro da corporação, mas o comandante-geral da PM na ocasião assinou uma um documento que proibiu a gente de entrar. Na certa, só porque a gente não mexia com arma”, relatou a aposentada.
Ambiente insalubre teria sido a causa
Maria de Fátima entrou na Polícia Militar quando ainda não havia concurso público, em 1982. Ela e outras trabalhadoras, mais 200, foram as primeiras mulheres na corporação, que desempenhavam diversas funções, como telefonista, técnica bucal, auxiliar de enfermagem, enfermeira, professora (do Colégio Militar), agente de limpeza.
Com 21 anos, Maria de Fátima foi uma das atendentes do serviço de chamadas do 190, que funcionava à época no Quartel Geral da PM, no Largo dos Aflitos. Em 1989, ela foi transferida para trabalhar como secretária do comandante da Vila Militar, que deixou o cargo três anos depois. Então, Maria de Fátima disse que foi “jogada” para organizar o arquivo da Diretoria de ensino (DE) da vila, que funcionava na parte superior da sala do comando. “Com a aposentadoria dele (comandante), me empurraram para lá. Onde estava antes, na secretaria, era tudo limpinho, ar-condicionado, uma sala bem organizada. No andar de cima, o arquivo, o forro molhava com as goteiras do telhado. Tudo cheirava a mofo. Todos dias estava lá, limpando e encaixotando os documentos. Chegava às 7h da manhã e ficava até 13h”, contou ela, que acredita que pode ter sido o início de contaminação.
Maria de Fátima ficou cega de um olho quando trabalhava na PM. Crédito: Paula Fróes
Foram cinco anos no arquivo da Vila Militar até que, em 1994, quando todos os trabalhadores celetistas do estado passaram a ser servidores públicos, houve mudanças em várias diretorias da PM e, com isso, Maria de Fátima foi nomeada como secretária do comandante da antiga sede do 8º Batalhão da Polícia Militar, na Calçada. “Era um prédio caindo aos pedaços. Muito velho, poeira em tudo. Não havia material de limpeza. Eu levava de casa álcool e detergente para conseguir trabalhar. Minha sala ficava colada ao arquivo, que eu precisava também acessar algumas vezes”, contou. Um ano depois de trabalho, os sintomas apareceram. “Meu olho começou a estufar, saia muita água e todo mundo achando que era conjuntivite. Mas fui para emergência e o médico disse que era ceratite. Mandou investigar o porquê, depois de vários exames, apontou que era por fungo encontrados em papeis”, disse Maria de Fátima. Os sinais e sintomas mais frequentes da doença são a dor nos olhos que pode ir de moderada a forte, a fotofobia (sensibilidade à luz), a vermelhidão e o ardor nos olhos, a visão turva, entre outros.
Quando o seu diagnóstico tornou ao público no Batalhão, os colegas da época suspeitaram que Maria de Fátima não foi o único caso. “Eles diziam que antes de eu chegar, havia um soldado que foi afastado, porque ficou cego completamente e ninguém sabia o motivo. Eu não sei o que realmente aconteceu, porque ele foi para o interior e o pessoal da minha época ou já se aposentou ou morreu”, relatou.
Fé para superar a negligência
Há 15 anos, em uma das inúmeras idas a especialistas, Maria de Fátima ouviu de médico uma decisão difícil, pois olho direito não tinha mais função. “Ele disse que o nervo ótico tinha atrofiado, não respondia mais, que o mais correto seria arrancar e colocar um olho de vidro. Foi um choque terrível, porque mexeu tanto com a minha autoestima, não parava de chorar e tremer”, recordou.
Mas após a indicação de um amigo, ela teve uma consulta com uma oftalmologista, especialista em glaucoma, que lhe acompanha até hoje. A médica fez novos exames e que possibilitou uma trabeculectomia – um procedimento cirúrgico que reduz a pressão intraocular dentro do olho em pacientes com glaucoma (lesão do nervo óptico que pode provocar cegueira). “Controlou pressão do meu olho, que não baixava a nunca. Eu não voltei a enxergar, mas o problema estacionou a ferida, que abria constantemente na córnea”, explicou ela, que hoje é depende de colírios. “São dois lubrificantes de uso diário, que custam em média R$ 200 e não duram mais de 15 dias”, disse ela, que recebe a aposentadoria de R$ 1.700
Atualmente, por causa da cegueira, a aposentada tem uma vida limitada. “Minha filha saiu da casa dela, em Lauro de Freitas, para morar perto de mim, porque não saio sozinha. Tenho medo de ser atropelada, porque a vinha visão é limitada. Nisso adquiri a síndrome do pânico”, lamentou. Maria de Fátima disse que era pessoa alegre, fazia dança do ventre, artesanato, que gosta de ir para shows, principalmente do cantor Djavan, seu artista preferido, com quem tirou uma foto quando ele esteve aqui em Salvador, em 1988. “Um policial muito meu amigo, me colocou no camarim e vi ele. Foi a maior felicidade de minha vida, foi ver Djavan de perto”, disse sorridente, ao exibir a fotografia, guardada como um tesouro, em um baú. Porém, rapidamente as recordações são atropeladas pelo presente “Desde então minha vida acabou”, disse em lágrimas.
Relíquia: aposentada guarda com se fosse um tesouro a foto com Djavan. Crédito: Acervo pessoal
Embora tantas dores, ela se apega na fé. “A medicina não tem resposta para o meu problema, mas Deus ressuscitou Lázaro e eu acredito em milagres!”.
O CORREIO procurou o Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA) e a Policia Militar (PM) , mas não teve resposta.
Fonte: Correio