Especialistas brasileiros quebram muro e debatem sobre eutanásia

Discussão em torno da eutanásia esbarra em implicações religiosas e culturais

Por: Rafaela Souza

Foto ilustrativa de paciente em leito de hospital
Foto ilustrativa de paciente em leito de hospital – 

Em meio ao debate acerca do lidar com a morte, a legalização da eutanásia passa a ser uma realidade em diferentes países do mundo, a exemplo de Portugal, que admitiu a prática em determinados casos no último mês. Enquanto isso, na Bahia, a discussão caminha por projeções quase que utópicas, seja no âmbito do direito ou da saúde pública. O cenário é o mesmo nos demais estados do Brasil, reflexo de um tema que ainda desafia preceitos religiosos e de comportamento humano.

Diante de tal complexidade, o Portal A TARDE traz uma abordagem singular sobre os desafios em torno da descriminalização da eutanásia em solo nacional, baseada na análise de especialistas das mais distintas áreas sociais. Para começo de conversa,  a eutanásia deve ser diferenciada de outros procedimentos, como o suicídio assistido e a ortotanásia, explica Karoline Apolônia, médica e coordenadora do Programa de Cuidados Paliativos da Secretaria da Saúde do Estado da Bahia (Sesab).

“Só para deixar claro, no Brasil é proibido a eutanásia e o suicídio assistido. Isso não pode ser feito, mas acredito que essa discussão é plausível. Essas questões que geram um desconforto e reavaliação das ações são importantes”, destaca.

A partir da compreensão do Código Penal brasileiro, a Lei nº 13.968, de 26 de dezembro de 2019, decreta pena de 6 meses a 2 anos de prisão, a quem “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou a praticar automutilação ou prestar-lhe auxílio material para que o faça”.

Contudo, a especialista aponta que o debate da descriminalização não deve desconsiderar e antecipar o contexto em que o país está inserido, tendo em vista, principalmente, a desigualdade socioeconômica da população.

“Tem a morte provocada por questões sociais, que são as pessoas em situação de rua, que não têm acesso à alimentação adequada. Isso as adoece e, por isso, acabam vindo à finitude. É algo gritante, que a gente precisa cuidar, é inadmissível. A nossa realidade é diferente de outros países. É uma discussão importante, mas precisamos pensar em não matar do ponto de vista social antes de tudo”, pontua.

A médica ainda explica que há uma grande discussão bioética em torno do suicídio assistido, que é possível em alguns países no mundo, a exemplo da Suíça, Colômbia e Canadá, em relação à prática da ortotanásia.

Médica e coordenadora do Programa de Cuidados Paliativos, Karoline Apolônia
Médica e coordenadora do Programa de Cuidados Paliativos, Karoline Apolônia|  Foto: Arquivo Pessoal

A técnica do suicídio assistido ocorre quando uma equipe médica fornece medicamentos para o procedimento, mas é o próprio paciente que administra a dose. Já a eutanásia acontece quando a equipe médica aplica a substância. Diferente das duas práticas, a ortotanásia é autorizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), conforme a resolução nº 1.805/2006. O processo se aplica em limitar ou suspender tratamentos, no caso de doença grave sem possibilidades de cura, e a ofertar cuidados paliativos, desde que com consentimento do paciente ou seu representante legal. Neste caso, o paciente não é submetido a procedimentos que visam prolongar a vida de forma artificial.

“Outra questão importante é pensar no suicídio assistido, que traz uma grande discussão bioética. Há quem diga que a prática está relacionada com a ortotanásia, que é a permissão da morte natural com condições e sintomas adequados. [Do outro lado] Tem quem argumente de alguma forma que é uma morte assistida, mas eu não concordo”, acrescenta.

Cuidados paliativos

Ainda de acordo com a médica, a discussão perpassa pela importância do acesso e realização de cuidados paliativos em todo o país. Para a especialista, a prática possibilita um olhar voltado para o ser humano e não para determinada doença, promovendo qualidade de vida aos pacientes. Por isso, ela acredita que é fundamental que haja mais processos e programas voltados à área na Bahia.

“Sobre a legalização da eutanásia, eu me preocupo com uma progressão dessa no Brasil porque a gente não consegue executar nem cuidados paliativos básicos. Então, ao sentir uma dor insuportável e intolerável, as pessoas têm vontade de morrer. E muitas já me pediram isso. Porém, quando a gente consegue controlar esse sintoma, diante da existência  da possibilidade, essas pessoas pedem para pular o carnaval no hospital, por exemplo. Ou seja, a falta de acesso e cuidados inadequados também impactam [no assunto]”, avalia.

Entre as iniciativas desenvolvidas na Bahia, a gestora também comenta sobre a inauguração do Hospital de Cuidados Paliativos, que está prevista para acontecer em março de 2024. Com a oferta de cerca de 80 leitos disponíveis, o equipamento vai funcionar no antigo prédio do Hospital Couto Maia, no bairro de Monte Serrat, em Salvador.

“Isso teve tanta repercussão que, provavelmente, em março do ano que vem a gente vai entregar o primeiro hospital de cuidados paliativos que terá 80 leitos direcionados para essa população. A unidade terá a qualidade da assistência direcionada. A gente tem muito a oferecer dentro das possibilidades que o corpo dele [do paciente] diz que é possível. E que ele seja olhado por uma equipe [multidisciplinar] como um ser humano completo e não pela doença. O foco nunca é a morte, o foco sempre será viver com qualidade, dignidade, pelo tempo possível para aquela pessoa. Não é prolongar sofrimento de forma desnecessária”, declara.

Partida com dignidade

A professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Mônica Aguiar, analisa a discussão acerca da legalização da eutanásia a partir dos campos da bioética, biodireito e direitos fundamentais. Segundo ela, os direitos humanos podem variar em cada país, mas é entendido que o cidadão tem o ‘direito de ter uma morte digna’.

“Os direitos humanos é um estatuto que vai variar muito do seu entendimento de país para país, mas o direito de morrer dignamente é visto como um direito humano. Não tem nada no ordenamento jurídico, assim como nenhum regramento específico a respeito desse assunto, mas entendemos que sim, o direito de morrer, de ter uma morte digna, é um direito humano”, inicia.

Tendo em vista este direito, destaca a reflexão: “quem decide o que é a dignidade para a pessoa que está morrendo, considerando a vontade e o desejo daquela pessoa em ser submetido a processos invasivos após um prognóstico, por exemplo?”.

Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Mônica Aguiar
Professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Mônica Aguiar|  Foto: Arquivo Pessoal

A especialista afirma que, por meio do debate, questões como essa podem avançar diante do direito de decidir e de lidar com a terminalidade a fim de respeitar as escolhas do paciente. Ainda de acordo com ela, não há um indicativo de que a eutanásia seja discutida de forma mais aberta em curto a médio prazo no Brasil devido às implicações morais, religiosas, culturais e econômicas. Em contrapartida, a docente da Ufba aponta a legalização em outros países como uma possível abertura nas demais regiões.

“No Brasil, a eutanásia é crime, mas talvez com essa discussão em outros países, isso abra algum espaço. E para aqueles que consideram impossível  a realização da eutanásia, existe uma discussão que é muito da ordem da moral, do capitalismo, como se as pessoas que não fossem mais produtivas, fossem ser descartadas, que não servem mais. Então, há uma grande resistência em torno da eutanásia muito em função disso”, acrescenta.

A especialista em bioética também cita os conflitos entre o desejo do paciente e as escolhas dos familiares, que muitas vezes, podem ignorar a vontade e autonomia do ente querido. Para ela, apesar de complexa, a questão tem a ver como a forma como o lidar com a morte é encarada a partir da ótica da perda.

“A bioética cuida dessa relação da ética relacionada à vida. Então, nós sempre estamos muito preocupados com o paciente poder se colocar e dizer o que ele quer. Muitas vezes ele manifesta [o desejo] em testamento vital, que é o documento onde vai dizer como será  tratado quando não tiver condições de externar a própria vontade. No entanto, na prática, a gente ainda vê uma grande luta na bioética. É que o desejo do paciente não é atendido porque os familiares contrariam o que o paciente quer, não aceitam a perda, fica a questão de não deixar ir”, diz.

Reflexão

O psicanalista, psiquiatra e professor da Ufba, que também atua como coordenador do Programa de Saúde Mental e Bem Estar da instituição, Marcelo Veras, destaca que a discussão da eutanásia contempla diversas esferas de reflexão, entre elas religiosas, jurídicas e históricas. Veras explica que o entendimento da morte é interpretado de formas diferentes nas religiões e isso reflete na postura das pessoas. Segundo ele, isso acontece até nos países onde há existência de leis mais avançadas.

“Toda vez que a gente tem debate mais profundo sobre a questão da morte, em lugar nenhum do mundo, nem nesses países onde tem leis muito avançadas, é permitida a eutanásia sem o consentimento do paciente, que aí é assassinato mesmo, na visão jurídica da coisa. É uma questão que tem várias esferas de reflexão, uma delas acontece no momento de assumir uma postura religiosa ou não [sobre o tema]. Porque um dos grandes problemas da vida vem desse fato de que nós somos ou não donos da nossa própria vida, aí as religiões dizem que não somos, por exemplo, a católica diz que o nosso corpo pertence a Deus”, analisa.

O professor ainda alerta para condições históricas da sociedade que implicam também no lidar com a própria existência, a exemplo da autonomia que a pessoa tem sobre o seu corpo.

“Em termos de humanidade do pensamento ocidental, a gente tem que pensar sobre isso. Talvez, a grande mudança se dá com o teatro inglês, quando em curto  espaço [de tempo] mais de duzentos suicídios foram encenados e, inclusive, nós temos a frase que é fundamental de Hamlet: “Ser ou não ser, eis a questão”. Ali, ele está colocando que a decisão em questão é dele e não de Deus, nem do Estado. A partir daí começa a se abrir a ideia dessa autonomia que a pessoa tem sobre o próprio corpo. Então, é muito complicado realmente pensar em matar a si mesmo, mas isso acontece”, aponta.

Psicanalista, psiquiatra e professor da Ufba, Marcelo Veras
Psicanalista, psiquiatra e professor da Ufba, Marcelo Veras|  Foto: Arquivo Pessoal

Veras ainda amplia o debate para a relação com o aumento de casos de suicídios no mundo e pontua a necessidade da criação de um Comitê de Ética para a regulamentação de práticas como a eutanásia.

“É muito complicado uma legislação extremamente elástica com relação ao suicídio assistido, a eutanásia. Às vezes, as condições sociais, governamentais são tão duras para os idosos, por exemplo. O idoso com o atual valor de aposentadoria não consegue pagar um plano de saúde. Então, muitas vezes, até as pessoas em um estado terminal, elas não querem morrer, mas pedem a morte porque não encontraram outra alternativa, situação melhor [financeira e de qualidade de vida]. E pode ser que haja alternativa. Por isso, a reflexão precisa ser envolvida no debate. Agora, o debate que será melhor feito se estiver focado na autonomia do sujeito do que propriamente no que Deus acha que deve ser ou a religião”, avalia.

“Por isso, que qualquer que seja o debate jamais vai ser excluído a necessidade de ter um Comitê de Ética presidindo isso porque o fato de termos uma lei não significa que ela seja tão aplicada para todos, assim é preciso que haja uma reflexão do singular e não do universal”, completa.

Testamento vital

Mesmo com a eutanásia sendo uma discussão distante no atual contexto, um novo ato relacionado ao fim da vida tem gerado interesse e sendo procurado nos cartórios da Bahia. Intitulado de Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs), o documento conhecido popularmente como testamento vital consiste no registro das orientações sobre como a pessoa deseja ser tratada caso venha ficar incapacitada de expressar sua vontade em razão de acidente ou doença grave.

Por meio do testamento, o solicitante pode manifestar o desejo de não ser submetido a tratamento de prolongamento de vida de modo artificial, ou ainda, recusar a realização de transfusão de sangue em casos de acidente ou cirurgia, por exemplo.

Segundo um levantamento realizado pelo Colégio Notarial do Brasil – Conselho Federal (CNB-CF), entidade que reúne os 8.344 Cartórios de Notas do país, a Bahia apresentou um aumento na realização do testamento vital desde 2012, com 29 escrituras públicas no estado até o momento. Anteriormente, o recorde de atos ocorreu em 2013, quando foram feitas sete DAVs.

De acordo com o presidente do Colégio Notarial do Brasil- Seção Bahia (CNB-BA), Giovani Guitti Gianellini, o testamento vital é uma forma de garantir que a vontade de um indivíduo seja respeitada e pode ser feita em qualquer Cartório de Notas no estado e em todo o país. Para ele, o documento também se relaciona à busca pela dignidade do cidadão consigo mesmo diante da própria vida.

“É um meio em que fica expressa a vontade de como um indivíduo deseja ser tratado, caso o mesmo fique incapacitado em decorrência de algum problema de saúde. E esse ato vai dispor de tratamentos que a pessoa deseja que sejam administradas ou dispensadas, quando não puder mais se comunicar. Então, o testamento vital é extremamente importante porque ele vai registrar efetivamente o desejo daquela pessoa quando ela não puder se manifestar, mas obviamente as pessoas sempre tem ali essa informação de que podem fazer, preparar esse documento”, pontua.

Presidente do Colégio Notarial do Brasil- Seção Bahia (CNB-BA), Giovani Guitti Gianellini
Presidente do Colégio Notarial do Brasil- Seção Bahia (CNB-BA), Giovani Guitti Gianellini|  Foto: Divulgação | CNB-BA

Gianellini ainda destaca que o DAV apenas vai produzir efeitos do ato enquanto o indivíduo ainda está vivo, o que diferencia o ato do testamento de partilha de bens.

“Esse ato surge como uma espécie de como se fosse um testamento, mas ele não é propriamente um testamento porque vai produzir os efeitos enquanto a pessoa ainda está viva. E nos cartórios, a grande vantagem que essa pessoa pode ter é a seguinte, que primeiro essa pessoa vai ser assessorada juridicamente por um notário, que vai ouví-la e vai identificar quais são as disposições que podem efetivamente ter validade aqui no Brasil e, em especial, quais são factíveis. Em segundo lugar, nós temos aí a questão do arquivamento do registro propriamente dito dessas diretivas”, afirma.

Para realizar as Diretivas Antecipadas de Vontade, o interessado deve comparecer em um Cartório de Notas com seus documentos pessoais, entre eles Documento de Identificação com foto, CPF e Certidão de Nascimento/Casamento. O Testamento Vital também pode ser feito de forma eletrônica, por meio da plataforma digital nacional. Neste caso, o cidadão escolhe o Cartório de Notas de sua preferência para solicitar o serviço, em seguida, é agendada uma videoconferência com o tabelião de notas e a escritura é assinada eletronicamente, por meio de um certificado digital gratuito que pode ser emitido pela mesma plataforma. O valor do serviço custa R$ 194, 82 e o documento pode ser alterado posteriormente a depender do desejo do solicitante.

Sobre a efetividade do testamento vital na prática médica, o Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da resolução 1.995, estabelece que o médico levará em consideração suas Diretivas Antecipadas de Vontade. A norma da entidade também define que, caso o paciente tenha designado um representante para tal fim, suas informações serão atendidas e informadas no prontuário. A partir disso, com o auxílio do profissional de saúde, o indivíduo optará pelos procedimentos considerados pertinentes e aqueles aos quais não quer ser submetido em caso de terminalidade da vida, por doença crônico-degenerativa.

Otavio Marambaia, conselheiro e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb)
Otavio Marambaia, conselheiro e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb)|  Foto: Divulgação | Cremeb

O presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia (Cremeb), Otávio Marambaia, reitera em entrevista ao Portal A TARDE que “a vontade do paciente é soberana desde quando manifestada antecipadamente, mas pode ser alterada a qualquer momento após sua manifestação expressa”. Neste sentido, ele também aponta que os cuidados paliativos não visam prolongar o sofrimento, mas buscam oferecer todos os meios cientificamente aceitos para manter a qualidade de vida e o conforto do paciente no final da sua vida.

“A ciência e arte médica estão ao serviço do paciente não prescindindo, porém, de todo o suporte familiar e religioso [se for da formação e vontade do paciente] que se necessite  – sempre respeitando a vontade da pessoa”, conclui.

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