“Foi a falsa moral”: Odair José revela bastidores da censura da ditadura militar

Ícone do rock progressivo contou à TV 247 como a censura afetou suas composições, que tratavam da vida boêmia no Rio de Janeiro da década de 1970. Assista

Odair José
Odair José (Foto: Reprodução/Facebook @odairjoseoficial)

 

Por Joaquim de Carvalho e Leonardo Sobreira

A cultura popular brasileira dos anos 70 foi um paradoxo de efervescência e repressão, com o governo militar sufocando toda forma de expressão artística. Em meio a esse cenário turbulento, surgiu um fenômeno musical desafiador e subversivo: Odair José. Originário de Morrinhos, Goiás, o cantor e compositor ergueu-se como um questionador dos rígidos limites impostos pelo regime ditatorial, abordando temas considerados tabus.

O músico, o cronista, o rebelde — A carreira de Odair José está entrelaçada nas complexidades emocionais e sociais do povo brasileiro. Ele não é somente um cantor, mas um verdadeiro cronista social, mergulhando nas profundezas emocionais e políticas do país. Suas letras navegavam por um amplo espectro de temas, indo do romance à vida boêmia e questões sociais urgentes. Dorival Caymmi, inclusive, afirmou que Odair José foi “o artista que melhor retratou o universo do homem com a mulher na noite”, um elogio validado pela própria experiência do músico tocando em boates cariocas.

Uma de suas composições de maior sucesso, Eu vou tirar você desse lugar (1972), narra a história de homens apaixonados por prostitutas. Em entrevista ao jornalista Joaquim de Carvalho, da TV 247, ele compartilhou a inspiração por trás da canção: “Trabalhei em uma casa noturna na Mauá, tocando, alguns executivos iam lá tomar um drink. Um executivo, chamado Alcides, chegava sempre acompanhado de um segurança, costumava me dar uma grana, que às vezes era maior do que a casa pagava por três ou quatro dias. Ele combinou comigo de sempre tocar Quase fui lhe procurar, de Roberto Carlos, toda vez que ele chegasse na boate, que não era todos os dias, umas duas vezes por semana. Era para a moça que estava lá dentro que ele gostava saber que ele estava chegando. E essa moça saiu de lá com ele”.

Confrontando a censura — Diferente de muitos de seus contemporâneos, Odair José evitou retratar o amor de forma idealizada. Ele optou por uma incursão descompromissada na vida noturna carioca, o que inevitavelmente o fez colidir com os censores do regime militar. A emblemática frase “Eu vou tirar você desse lugar” foi recebida com alarme pelos censores, mesmo tendo intenções benignas.

Recordando seu “tenso” encontro com a censura, ele relatou: “Eu disse que não me referia bem ao governo, e sim à história de um homem que queria tirar uma prostituta da boate para morar com ele. Então ficaram mais assustados ainda e muito nervosos… Disseram que era pior a emenda que o soneto o que eu disse”.

“É a falsa moral. O que está errado em se apaixonar pela mulher que seja? Onde está errado isso, pensei comigo? Qual o direito que a pessoa não tem só porque está ali na noite?”

A partir desse ponto, toda nova música de Odair José precisaria ser submetida à censura antes de ser ver a luz do dia. Embora a canção não tenha sido censurada, todas as letras dos seus futuros álbuns passaram a ser escrutinadas nos mínimos detalhes.

Apesar da censura, seu álbum Assim Sou Eu (1972) representou uma mudança significativa tanto em termos de conteúdo quanto de sonoridade, expandindo os limites da estética vigente ao encorajar uma narrativa mais realista e menos idealizada do amor. Mas a vigilância da censura permaneceu constante, contou Odair José, citando a faixa Esta noite você vai ter que ser minha.

O músico enfrentou as agruras da censura enquanto migrava da gravadora CBS para a Philips. Mesmo assim, ele continuou a enfocar o que mais o inspirava: “Eu escrevo sobre aquilo que observo nas pessoas, o povo brasileiro. Isso incomodava eles, mas era o que eu tinha para falar. Eram relações mais realísticas, mais profundas, que iam além de simplesmente segurar as mãos”.

Ele continuou: “Para a época, a letra da música é bastante ousada. Na verdade, ela refletia a realidade, não se restringindo ao namoro no portão, à poesia, ao ato de simplesmente dar as mãos. Ela abordava algo mais profundo, algo que eu observava nas pessoas. As pessoas estavam mais envolvidas fisicamente no contexto do romance do que apenas segurando as mãos. Essa sempre foi a minha trajetória”.

A controvérsia atingiu o ápice com a canção Uma vida só—Pare de tomar a pílula (1973), que discutia o uso de anticoncepcionais. Numa época em que o tema era um tabu, a música capturou não apenas a atenção do público, mas também do governo, que a proibiu. Aqui, a censura deixou de ser somente um meio de controle para se tornar uma barreira ao diálogo sobre questões sociais relevantes, ponderou Odair José.

Foi com essa canção que o embate entre a música de Odair José e a censura ganhou proporções maiores. Ele recorda: “Um amigo me sugeriu que criasse uma música sobre anticoncepcionais, um assunto então muito delicado, raramente discutido. Falar sobre anticoncepcionais em uma conversa entre amigos era considerado indelicado. A tarefa de compor a música foi desafiadora para mim, mas criei o refrão: ‘Pare de tomar a pílula porque ela não deixa o nosso filho nascer’. Apresentei essa canção à gravadora. Eles ficaram empolgados, dizendo que era genial. Naquele mesmo dia, gravei a música, e no dia seguinte ela já estava em fita. Minhas músicas estavam sendo tocadas exaustivamente no rádio”.

O sucesso da música levou Odair José ao programa de Silvio Santos na TV Globo, emissora com a qual tinha um contrato de exclusividade. No entanto, esse triunfo foi passageiro quando ele se deparou com duas figuras do governo. “Eram dois funcionários do governo, da censura, que me aguardavam. Eles declararam que a música estava proibida em todo o território nacional a partir daquele momento. Fui obrigado a assinar um documento confirmando que não poderia mais cantá-la em nenhum lugar. Embora a música não tenha sido retirada das rádios, a mídia já estava ciente do ocorrido. Acabei cantando outra música”.

Ele explicou que, na época, o governo conduzia um programa de distribuição de anticoncepcionais, conforme explicou o chefe da censura em São Paulo. “O governo tinha um projeto de distribuir anticoncepcionais no país para controle da natalidade. Por isso a música tinha sido proibida. Eu pedi para falar e disse ao general que eu era uma pessoa com uma penetração na cabeça das pessoas mais simples, e elas são as que vocês querem atingir, que tomem a pílula. Elas são mais complicadas de convencer, mais que os intelectuais. Se vocês deixarem minha música tocar, talvez eu seja o garoto propaganda do que vocês querem com a minha canção. Eles disseram que não, que era um absurdo e que estava proibida. A música foi censurada, nunca foi liberada, em toda a América Latina não podia cantar”.

“Mas o projeto do governo foi um grande fracasso e a minha música proibida é um grande sucesso até hoje”

A relação de Odair José com a censura atingiu seu ápice de tensão em 1974, quando a sua canção A primeira noite de um homem provocou tal onda de controvérsia que culminou em um encontro com o general Golbery do Couto e Silva, à época ministro da Casa Civil. “Parei na casa do Golbery, ministro da Casa Civil. Ele virou pra mim e disse que queria saber o que podia mexer para liberar. Ele disse que o que está proibido é a ideia e ponto”, recorda.

De volta ao Rio, ele se viu obrigado a mudar o título da música para Noite de desejo. “Só o nome mudou, mas a historinha ainda está lá. Eles não gostavam de ‘A primeira noite de um homem’. A história é do nervosismo de um homem que teve sua primeira relação com uma mulher. A censura proibiu, e o disco estava parado, enquanto eu sustentava a gravadora, vendia muito. Fui para o Rio e troquei para Noite de desejo, só o título e uma coisa ou outra mais explícita… Para você ver como eram as coisas,” relembra o músico.

Além dos rótulos — Odair José estava constantemente confrontado pelo dilema de ser rotulado como “cantor brega” ou “cantor de MPB”. No entanto, suas músicas transcenderam categorias e se tornaram uma força cultural irresistível, e ele conhecido como “o cantor das empregadas” — um apelido que ilustra a identificação de muitos trabalhadores mais humildes com suas letras sobre a vida cotidiana. Mas sua música não se limita a isso; ela mergulha profundamente em questões complexas que desafiavam e continuam desafiando a moral dominante.

Durante os anos turbulentos da ditadura militar, as emissoras de rádio e televisão estavam ávidas por conteúdos que pudessem catalisar debates substantivos. Nesse cenário, Odair José emergiu como um verdadeiro provocador cultural. Sua discografia não apenas tangencia, mas imerge em temas delicados e muitas vezes tabus. Com sua sinceridade provocante, suas letras exploram personagens e cenários à margem da sociedade — desde prostitutas e cabarés até motéis e relacionamentos clandestinos — desafiando, assim, os limites da moralidade convencional vigente.

Embora Caetano Veloso tenha sugerido que Odair José vendia discos para que outros artistas pudessem experimentar em estúdio, o seu legado transcende essa noção. Ele espelha a complexa tapeçaria social e emocional do Brasil, capturando, por meio de suas letras e melodias, as alegrias, tristezas e ambiguidades morais que moldam a experiência humana no país. Em um período marcado pela censura e repressão da ditadura, a capacidade de Odair José de destilar e comunicar a essência genuína da cultura brasileira se tornou um ato impactante de resistência cultural.

 

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