Indícios de sobrepreço de R$ 4,6 milhões na compra de coletes balísticos foram o estopim de operação da Polícia Federal (PF) feita ontem para apurar se houve corrupção na intervenção federal na Segurança Pública do Rio, em 2018. O ex-interventor, o general Walter Souza Braga Netto, é um dos investigados e teve o sigilo telefônico quebrado, embora não tenha sido alvo dos 16 mandados de busca e apreensão cumpridos no Rio, em Minas Gerais, no Distrito Federal e em São Paulo. No centro das suspeitas está a contratação, com dispensa de licitação, da empresa americana CTU Security LLC para fornecer 9.360 coletes capazes de resistir a tiros de fuzil, que seriam entregues à Polícia Civil fluminense.
O alerta veio de uma comunicação internacional da Agência de Investigações de Segurança Interna (Homeland Security Investigations – HSI), dos Estados Unidos, em fevereiro do ano passado, informando que se apura o possível fornecimento de apoio logístico por parte da empresa ao grupo criminoso envolvido no assassinato do presidente do Haiti Jovenel Moïse, em julho de 2021. Da investigação americana emergiram elementos de crimes contra a administração pública brasileira no contrato com o Gabinete de Intervenção Federal (GIF) no Rio.
Acionado, o Tribunal de Contas da União (TCU) enviou ofícios à PF esclarecendo que o contrato no valor global de US$ 9,45 milhões (R$ 40,17 milhões no câmbio da época) já tinha sido, inclusive, suspenso, em 2019,devido a irregularidades administrativas. Naquele ano, o GIF também havia instaurado dois processos administrativos sancionadores contra a empresa, um deles devido à possível falsificação de documentos pela CTU Security.
Na representação enviada à Justiça Federal, pedindo as buscas e apreensões de ontem, a PF, no entanto, afirma que “a suspensão da execução do contrato, por si só, não afeta os supostos crimes até então cometidos”. Na operação, chamada de Perfídia, são apurados patrocínio de contratação indevida, dispensa ilegal de licitação, corrupção ativa e passiva e organização criminosa. Assim como fraude ao caráter competitivo de licitação, em razão do conluio das empresas Inbraterrestre Indústria e Comércio de Materiais de Segurança LTDA e Glágio do Brasil Proteção Balística Eireli, por suposto conhecimento prévio da intenção de compra dos coletes pelo GIF.
Defesa de Braga Netto
Em nota à imprensa ontem, Braga Netto — que foi ministro-chefe da Casa Civil do governo Jair Bolsonaro e é tido como um dos principais nomes do bolsonarismo na disputa pela prefeitura do Rio em 2024 — afirmou que os contratos do Gabinete de Intervenção seguiram todos os trâmites previstos na lei brasileira. Quanto aos coletes, destacou que a suspensão da compra foi feita pelo próprio GIF, após avaliação de supostas irregularidades nos documentos fornecidos pela empresa.
“Os coletes não foram adquiridos ou tampouco entregues. Não houve, portanto, qualquer repasse de recursos à empresa ou irregularidade por parte da Administração Pública. O empenho foi cancelado e o valor total mais a variação cambial foram devolvidos aos cofres do Tesouro Nacional”, afirmou ele. “No que se refere à dispensa de licitação, a decisão teve por base o Acordão 1.358/2018 do TCU, que estabelece que é possível a realização de contratações diretas durante intervenção federal. Desde que o processo de dispensa de contratação esteja restrito à área temática, assim entendidos os bens e serviços essenciais à operação”, continuou, defendendo o legado da intervenção, que consumiu R$ 1,2 bilhão.
Segundo a PF, os alvos da operação de ontem, com pedido deferido pela 7ª Vara Federal Criminal do Rio, seriam representantes da CTU no Brasil, articuladores e lobistas supostamente envolvidos na contratação da empresa. Entre eles, o coronel da reserva da Aeronáutica Glaucio Octaviano Guerra é apontado pela Polícia Federal como principal operador da fraude. No ano passado, o celular dele, que residia nos Estados Unidos, chegou a ser apreendido pela HSI no âmbito das investigações americanas.
Já seu irmão, Glauco Octaviano Guerra, seria responsável pela articulação com militares da reserva em troca de influência no GIF e interferência no processo licitatório de compra de coletes. E o coronel da reserva do Exército Diógenes Dantas Filho, afirma a PF, atuaria como lobista junto aos militares do Gabinete de Intervenção. Trocas de mensagens extraídas do celular de Glaucio indicam que, em 2020, Braga Netto ainda mantinha contato com os investigados, com a possível participação de um deles, por exemplo, num jantar na casa do general, em março daquele ano.
Gabinete ativo até hoje
O relatório da PF destaca ainda que a licitação para a aquisição dos coletes da CTU Security ocorreu nos 15 dias finais da intervenção federal no Rio, que durou cerca de dez meses, até 31 de dezembro de 2018. O GIF, no entanto, foi mantido, para finalizar entregas de aquisições às forças de segurança do Rio. Em maio de 2019, por exemplo, antes da suspensão do contrato com a CTU, uma comissão do gabinete viajou à Flórida para a retirada de amostras dos coletes. Mas, na chegada, foi informada de que não havia nenhum material pronto. Um dos principais motivos alegados seria a necessidade de atender a uma demanda do Exército americano no Afeganistão.
Já com a compra suspensa, a Secretaria de Polícia Civil do Rio informa que adquiriu, no fim de 2020, dois mil coletes à prova de balas de alta performance, com recursos próprios do Estado. Na época, agentes denunciavam estarem trabalhando com coletes vencidos.
O GIF, por sua vez, teve sucessivas prorrogações. Até que um decreto de 19 de junho deste ano apontou o encerramento de suas atividades para o próximo dia 20 de dezembro. O mesmo texto também extinguiu cargos em comissão que eram mantidos na estrutura regimental do gabinete. “Atualmente, o GIFRJ é composto por cinco militares da ativa, que tratam das demandas administrativas ainda em curso”, informou o gabinete, ao ressaltar que dois helicópteros foram repassados ao governo do Rio em 2023, mas que já não há mais entregas a serem feitas.
Após a operação de ontem, o Ministério Público Federal (MPF) no Rio também anunciou que vai pedir o desarquivamento de outra investigação sobre o gabinete, a respeito de possíveis irregularidades na compra em 2018 de 27 mil pistolas Glock, calibre .40, que custaram aos cofres federais R$ 43,3 milhões. Responsável pelo arquivamento em 2019, o procurador da República Eduardo Benones disse que pedirá a reabertura pela semelhança com o inquérito da compra de coletes, com dispensa de licitação. Poderá ser verificado, entre outros pontos, se foram os mesmos agentes públicos que negociaram e autorizaram a compra.
Braga Netto afirma que intervenção seguiu trâmites legais
O general Walter Souza Braga Netto afirmou em nota à imprensa nesta terça-feira que o próprio Gabinete de Intervenção (GIF) suspendeu o contrato com a CTU Security, para a compra de 9.360 coletes balísticos, após avaliar que havia supostas irregularidades nos documentos fornecidos pela empresa americana.
Ainda segundo o general, os contratos do GIF seguiram todos os trâmites legais previstos na lei brasileira. Especificamente sobre os coletes, ele afirmou que o equipamento não foi adquirido ou tampouco entregue. “Não houve, portanto, qualquer repasse de recursos à empresa ou irregularidade por parte da Administração Pública”, afirmou.
Leia a íntegra da nota
“Diante de matérias veiculadas hoje (12) pela imprensa, é importante reiterar que os contratos do Gabinete de Intervenção Federal (GIF) seguiram absolutamente todos os trámites legais previstos na lei brasileira.
Com relação a compra de coletes balisticos da empresa americana CTU Security, é preciso destacar que a suspensão do contrato foi realizada pelo próprio GIF, após avaliação de supostas irregularidades nos documentos fornecidos pela empresa.
Isto posto, os coletes não foram adquiridos ou tampouco entregues. Não houve, portanto, qualquer repasse de recursos à empresa ou irregularidade por parte da Administração Pública. O empenho foi cancelado e o valor total mais a variação cambial foram devolvidos aos cofres do Tesouro Nacional. Todo o processo vem sendo acompanhado pela Secretaria de Controle Interno (CISET) da Casa Civil, pela Controladoria Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU). No que se refere à dispensa de licitação, a decisão teve por base o Acordão 1358/2018 do TCU, que estabelece que é possível a realização de contratações diretas durante intervenção federal. Desde que o processo de dispensa de contratação esteja restrito à área temática, assim entendidos os bens e serviços essenciais à operação.
É importante também lembrar que durante a intervenção foram empenhados R$ 1,17 bilhão, sendo que deste total, cerca de 81% foram destinados à aquisição de equipamentos e material permanente e 19% à compra de material de consumo.
O legado tangível e intangível da Intervenção Federal recuperou a capacidade operativa, logística e moral dos órgãos de segurança pública. Durante 10 meses de operação (de fevereiro a dezembro de 2018), diversos índices de criminalidade foram reduzidos, incluindo os crimes contra a vida, como latrocínio (-27%); e crimes contra o patrimônio, como o roubo de carga (-13%).
Em abril de 2023, foi realizada, a entrega do helicóptero Leonardo AW169 ao Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Rio de Janeiro (CBMERJ), adquirido em janeiro de 2019, durante a intervenção.
O GIF equipou os órgãos de segurança pública com a entrega de armamentos, munições, coletes, viaturas, equipamentos para perícia criminal, câmeras de monitoramento, drones, entre outros itens”.
Decreto da intervenção assinado em 2018
O decreto da intervenção federal na segurança do Rio foi assinado pelo presidente Michel Temer no dia 16 de fevereiro de 2018. A medida teve efeito imediato. O governador na época era Luiz Fernando Pezão. O interventor escolhido foi o general Walter Souza Braga Netto, do Comando Militar do Leste do Exército, sediado no Rio de Janeiro.
Braga Netto anunciou oficialmente o general Richard Nunes como o titular da pasta. Já chefe de gabinete da intervenção foi o general Mauro Sinott. Ao assumirem o controle da segurança, os militares podiam atuar no patrulhamento das ruas e fazer prisões, sempre dentro dos mesmos limites legais que regem a atuação policial.