De estupro a toques íntimos: como cirurgiãs britânicas são abusadas durante operações
Médicas cirurgiãs estão sendo assediadas sexualmente, agredidas e, em alguns casos, estupradas por colegas, segundo um amplo estudo das equipes do serviço público de saúde do Reino Unido, o NHS.
A BBC News conversou com mulheres que foram abusadas sexualmente dentro de salas de operação, enquanto cirurgias aconteciam.
Os autores do estudo apontam um padrão de trainees e novatas sendo abusadas por cirurgiões experientes do sexo masculino, e que isso está acontecendo em hospitais do NHS.
O Royal College of Surgeons, um centro de excelência na formação de cirurgiões fundado em 1800, disse que as descobertas são “verdadeiramente chocantes”.
As mulheres são vítimas de assédio sexual, agressão sexual e estupro. Há casos de mulheres sendo tocadas dentro de seus uniformes, de cirurgiões limpando a testa em seus seios e de homens encostando ereções em funcionárias.
A algumas foram oferecidas oportunidades de promoção em troca de sexo.
A análise, promovida pela Universidade de Exeter, pela Universidade de Surrey e pelo Grupo de Trabalho sobre Má Conduta Sexual em Cirurgia, foi compartilhada exclusivamente com a BBC News.
Quase dois terços das cirurgiãs participantes disseram ter sido alvo de assédio sexual e um terço afirmou ter sido agredida sexualmente por colegas nos últimos cinco anos.
As mulheres dizem que temem que a denúncia destes incidentes prejudique suas carreiras e afirmam não têm confiança de que o NHS vá tomar medidas.
‘Por que o rosto dele está no meu decote?’
Falar sobre o tema abertamente gera nervosismo.
Judith pediu que usássemos apenas seu primeiro nome. Ela é uma cirurgiã experiente e talentosa.
Ela opta por não descrever o que aconteceu com ela como estupro, mas deixa claro que a relação sexual ocorrida não foi consensual. O episódio aconteceu em um evento social ligado a um congresso de médicos da mesma especialidade.
Seguindo o padrão familiar, ela era trainee, e ele consultor.
“Eu confiava nele, eu o admirava”, diz ela.
Ele tomou proveito desta confiança dizendo que ela não conhecia as outras pessoas no evento e que não deveria confiar nelas.
“Então, ele me acompanhou de volta ao lugar onde eu estava hospedada. Eu pensei que ele queria conversar, mas de repente ele se jogou sobre mim e fez sexo comigo.”
Ela disse que naquele momento seu corpo congelou. “Eu não consegui impedi-lo.”
“Não era o que eu queria, nunca foi o que eu queria, foi totalmente inesperado.”
Quando o viu no dia seguinte, ela “mal conseguia se compor”.
“Não achei que pudesse fazer escândalo, senti que havia uma cultura muito forte de simplesmente tolerar tudo o que fosse feito com você.”
O incidente teve um impacto duradouro, primeiro deixando-a emocionalmente abalada. Anos depois, no trabalho, a lembrança ainda “inundava minha mente como um pesadelo”, mesmo enquanto ela se preparava para operar um paciente.
Confiança em cirurgiões abalada
Concorda-se amplamente que existe uma cultura de silêncio em torno desse tipo de comportamento.
A formação cirúrgica depende da aprendizagem com colegas mais velhos na sala de operação e mulheres dizem que é arriscado falar abertamente sobre quem têm poder e influência sobre suas futuras carreiras.
O relatório, publicado no British Journal of Surgery, é a primeira tentativa de se entender a escala do problema.
Cirurgiões registrados — homens e mulheres — no Reino Unido foram convidados a participar de forma totalmente anônima e 1.434 responderam. Metade eram mulheres.
- 63% das mulheres foram alvo de assédio sexual por parte de colegas
- 30% das mulheres foram agredidas sexualmente por um colega
- 11% das mulheres relataram contato físico forçado relacionado a oportunidades de carreira
- Pelo menos 11 incidentes de estupro foram relatados
- 90% das mulheres e 81% dos homens testemunharam alguma forma de má conduta sexual
Embora o relatório mostre que os homens também estão sujeitos a alguns destes comportamentos (24% foram assediados sexualmente), o estudo conclui que os cirurgiões e as cirurgiãs “vivem realidades diferentes”.
“Nossas descobertas provavelmente vão abalar a confiança do público na profissão cirúrgica”, disse Christopher Begeny, da Universidade de Exeter.
Um segundo relatório, chamado “Breaking the Silence: Addressing Sexual Misconduct in Healthcare” (“Quebrando o silêncio: lidando com má conduta sexual no sistema de saúde”, em tradução livre) traz recomendações sobre o que precisa de ser mudado.
Os dois relatórios sugerem que a proporção relativamente mais baixa de mulheres cirurgiãs (cerca de 28% no Reino Unido), combinada com o fato de a dinâmica da cirurgia ser profundamente hierárquica, confere a alguns homens um poder significativo, agravado por um ambiente de alta pressão da cirurgia.
“Isso faz com que as pessoas possam se comportar impunemente e muito disso não é controlado”, disse a professora Carrie Newlands, cirurgiã da Universidade de Surrey.
Ela se diz motivada a enfrentar esse comportamento depois de ouvir as experiências de colegas mais jovens.
“O cenário mais comum é que uma médica júnior seja abusada por um abusador sênior, que muitas vezes é seu supervisor”, disse. “Isso resulta em uma cultura de silêncio, onde as pessoas têm medo real sobre seu futuro e sobre suas carreiras se falarem.”
‘Incrivelmente chocantes’
Outro tema que surgiu nos dados da pesquisa foi a falta de confiança em órgãos como conselhos de medicina para enfrentar o problema.
“Precisamos de uma mudança profunda nos processos de apuração, para que eles se tornem externos e independentes e sejam confiáveis para que o setor de saúde se torne um lugar mais seguro para se trabalhar”, diz o professor Newlands.
Tim Mitchell, presidente do Royal College of Surgeons da Inglaterra, disse à BBC que as conclusões da pesquisa são “incrivelmente chocantes e serão uma fonte de grande constrangimento para a classe cirúrgica”.
Ele reconheceu que ficou “claro que esse é um problema frequente” que não foi abordado.
“Precisamos implementar uma cultura de tolerância zero para garantir que existam mecanismos que façam com que as pessoas afetadas se sintam confiantes de que podem denunciar esses incidentes e que as denúncias serão levadas a sério”, disse.
Binta Sultan, do NHS da Inglaterra, disse que o relatório é uma “leitura incrivelmente difícil” e apresenta “evidências claras” de que são necessárias mais ações para tornar os hospitais “seguros para todos”.
“Já estamos tomando medidas significativas para isso, inclusive através de compromissos para fornecer mais apoio e mecanismos de denúncia claros para aqueles que sofreram assédio ou comportamento inadequado”, afirmou.
O Conselho Geral de Medicina do Reino Unido atualizou no mês passado seus padrões profissionais para médicos.
Seu presidente-executivo, Charlie Massey, disse que “agir de forma sexual com pacientes ou colegas é inaceitável” e que “a má conduta é incompatível” com a continuação da prática da medicina no Reino Unido.