Teto que esquenta na favela, árvore e ar-condicionado no bairro rico: a desigualdade sob calor extremo
O aumento da temperatura no Brasil fez o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitir alertas de “grande perigo” para áreas localizadas em nove Estados do país.
A onda de calor começou na segunda-feira (18/9) e deve ter o ápice neste fim de semana, com os termômetros podendo marcar até 43°C.
O alerta é válido até as 18h de domingo (24/9).
Segundo a Climatempo, as áreas mais afetadas serão Centro-Oeste, Norte e interior do Nordeste.
Em São Paulo (SP), maior cidade da América Latina, os termômetros podem chegar a 37,1 °C, de acordo com o Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), da Defesa Civil do estado.
Mas o calor não deve ser experimentado da mesma maneira por todos os moradores da capital paulista.
Além da diferença entre a temperatura marcada pelos termômetros, a sensação térmica pode variar muito conforme as condições de moradia, áreas de sombra, número de prédios e arborização dos diferentes bairros, afirmam especialistas.
Na comunidade do Jardim Colombo, no complexo de Paraisópolis, Zona Oeste de São Paulo, moradores têm sofrido mais do que em outras regiões mais nobres devido à falta de áreas verdes e das casas precárias, com pouquíssima ventilação.
A casa de Maria do Carmo da Silva, apelidada no bairro de Rosinha, é coberta por um telhado de fibrocimento, instalado sem forro e com pouca altura.
Ela conta que, nos dias de calor, a cobertura contribui para esquentar os cômodos significativamente.
Aos 53 anos, ela está desempregada e mora com outras três pessoas em dois quartos.
“No dia a dia, não conseguimos ficar no segundo andar da casa, porque fica muito quente”, conta.
“Não tem quase ventilação nenhuma e tenho que improvisar para conseguirmos dormir à noite.”
Rosinha usa dois ventiladores para refrescar os quartos, um deles sem a grade plástica de proteção.
“Eu tirei a tampa para tentar ventilar mais”, diz.
Ela coloca também uma bacia com água todas as noites ao lado da cama da filha Lorena, de 2 anos, que sofre com asma e bronquite.
“Está sendo muito difícil com ela assim. Semana passada tive que correr com ela [para o hospital] porque ela estava com febre e chegando lá já estava com falta de ar”, diz Rosinha, que está tratando a menina com anti-inflamatórios e um aparelho de inalação emprestado de uma vizinha.
De modo geral, um alerta vermelho, segundo o Inmet, é emitido quando é esperado um fenômeno meteorológico de “intensidade excepcional, com grande probabilidade de ocorrência de grandes danos e acidentes, com riscos para a integridade física ou mesmo à vida humana”.
Segundo Denise Duarte, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), assentamentos urbanos informais como as favelas tendem a ser densamente povoados e pouco arborizados, o que os torna mais quentes e vulneráveis em momentos de alertas.
A falta de espaço para escoamento do ar quente, decorrente das construções estreitas coladas umas nas outras, ainda impede o resfriamento rápido durante a noite.
E se o entorno não favorece, as condições internas das moradias também são prejudiciais para a saúde dos moradores, de acordo com Duarte.
“Casas nessas zonas tendem a ter telhados metálicos e poucas e pequenas janelas. Nesses casos, não têm passagem do calor ou ventilação cruzada para ajudar a refrescar e a casa vira uma estufa”, diz a especialista, que realiza pesquisas sobre microclimas urbanos e conforto climático.
“Em assentamentos informais, como as favelas, moram por vezes mais de 1.000 habitantes por hectare — e não há espaço para abrigar as pessoas. As casas são grudadas e cai muito a qualidade de vida e a qualidade ambiental.”
‘Só percebo o quanto está quente quando saio na rua’
Às 15h de quinta-feira, 21 de setembro, a temperatura marcada pelo Centro de Gerenciamento de Emergências Climáticas da Prefeitura de São Paulo (CGESP) na subprefeitura do Butantã, onde Rosinha mora, era de 31,9 ºC.
Enquanto isso, os termômetros da subprefeitura da Sé, no centro de SP, marcavam dois graus a menos.
A região central da cidade também tende a reter mais calor, por conta do excesso de asfalto e dos prédios altos. Mas em bairros específicos, especialmente em áreas nobres com maior quantidade de vegetação e uma arquitetura melhor planejada, a sensação térmica costuma ser de menos calor, diz Denise Duarte.
É o caso de Higienópolis, zona rica da cidade que faz parte da subprefeitura da Sé. Muitas das moradias de classe alta do bairro têm janelas grandes e estruturas que facilitam a ventilação, além de aparelhos de ar condicionado e ventiladores de boa potência.
Os próprios moradores da região admitem usufruir de um conforto climático proporcionado pela intensa arborização e distribuição dos prédios.
A aposentada Olga González, de 79 anos, conta que aproveita a proximidade entre sua casa e o Parque Buenos Aires para caminhar e se refrescar pelo menos duas vezes ao dia.
“Está realmente muito calor, mas dá para aguentar. Felizmente, o prédio é bem arborizado e meu apartamento bastante arejado”, diz a espanhola, que mora no Brasil desde os 13 anos de idade.
“Basicamente não tivemos inverno esse ano. Mas gosto desse clima.”
No mesmo bairro, na rua Maranhão, um casarão histórico construído no início do século 20, onde hoje funciona uma das sedes da FAU/USP, sequer precisa de ar condicionado ou ventiladores para manter alunos e funcionários refrescados.
O pé direito alto do edifício, o jardim no entorno e as janelas amplas fazem com que o ambiente fique naturalmente fresco.
“A onda de calor tem sido relativamente tranquila aqui no casarão, porque o pé direito é alto, quase 6 metros, e o ar circula muito”, diz Paulo Cesar dos Santos, técnico de documentação que trabalha no local.
“Só percebo o quanto está quente quando saio para andar na rua. Ou então na minha casa, que é mais abafada.”
‘A conta não fecha’
A professora da FAU explica que fatores como dimensionamento correto dos espaços, orientação solar adequada e ventilação cruzada tornam as casas e apartamentos mais frescos.
Além disso, segundo ela, solos gramados e árvores no entorno fazem grande diferença.
As árvores absorvem uma parte do calor do sol e atuam como uma espécie de barreira entre os raios solares e as construções, impedindo o aquecimento de pisos, paredes e telhados.
Para efeito de comparação, o distrito da Consolação, onde fica Higienópolis, tem uma média de quase 1.300 árvores por km², plantadas nas calçadas e canteiros.
A média da cidade toda é de 670 árvores por km², segundo o Mapa da Desigualdade de 2019, o último a trazer dados sobre o tema.
Já no distrito da Vila Sônia, que engloba a comunidade onde Rosinha mora, existem cerca de 760 árvores por km².
A vegetação, porém, se concentra mais em outras áreas do bairro do que no Jardim Colombo, que tem uma urbanização deficitária e é formado por habitações precárias e nenhuma zona de lazer.
A realidade se repete em outras áreas menos favorecidas da cidade, como Parelheiros, Grajaú e Brasilândia, que estão entre os distritos menos arborizados, e Itaim Paulista, considerado por muitos como o bairro mais quente de São Paulo.
Prédios e casas mais afastados uns dos outros também evitam a formação das chamadas ilhas de calor urbanas, quando a aglomeração de edifícios e o excesso de ruas asfaltadas nas grandes cidades levam à retenção de calor.
“A distribuição do adensamento na cidade é muito desigual. Enquanto em algumas zonas se vive em casas onde não há espaço ou conforto suficientes, em áreas mais nobres se constroem apartamentos enormes onde moram apenas duas pessoas”, afirma Denise Duarte. “A conta não fecha.”