Devoção e preceito no caruru do Mercado das Sete Portas

O 27 de setembro é o dia para comemorar o dia dos santos gêmeos

Por: Gilson Jorge

O sacerdote faz a iguaria em  reverência aos santos gêmeos (Ibeji, no candomblé), no dia 27, e conta com o apoio de 15 filhos de santo na preparação
O sacerdote faz a iguaria em reverência aos santos gêmeos (Ibeji, no candomblé), no dia 27, e conta com o apoio de 15 filhos de santo na preparação – 

Os primeiros pratos do caruru de Cosme e Damião que o comerciante e babalorixá André Nery faz, há 25 anos, no dia 27 de setembro, vai para crianças e adolescentes que transitam pela área do Mercado de Sete Portas, onde ele mantém a loja Chapéu de Couro, um box voltado à venda de artigos ligados ao candomblé, à umbanda e ao catolicismo.

“Tem que tirar o caruru da rua primeiro, o dos erês, daqueles que a gente não enxerga”, declara o comerciante, cujo nome espiritual é Babá André de Ogum.

O ritual no lado de fora do Mercado das Sete Portas tem um quê de responsabilidade espiritual.  “Os espíritos tomam conta desses meninos na rua. Se a gente não cuidar deles, eles podem se transformar em adolescentes que vão para outros caminhos”, explica.

André acredita que o ritual do 27 de setembro é uma troca. “A gente oferece o caruru para ter saúde, para que nossos caminhos se abram, para trazer clientes para cá”, diz ele, que desde o ano passado deixa a Chapéu de Couro sob os cuidados de seu irmão, Adailton Nery, enquanto ele se dedica ao terreiro.

Feita a oferenda aos erês, já dentro da loja, André oferece o caruru de sete meninos, que em seu caso inclui meninas. Somente depois, ele inicia a distribuição da comida para a fila de clientes, por volta do meio-dia.

A jovem tradição comandada pelo comerciante começou quando ele assumiu o controle do box, que antes era administrado por um tio, em 1998, mesma época em que André entrou para o candomblé no terreiro  Ilê Asé   Isegun, em Lauro de Freitas.

A oferenda é uma retomada do caruru que a sua mãe fazia quando ele era criança, em sua terra natal, Itapema, distrito de Santo Amaro. “Quando minha mãe estava grávida de mim, ela teve uma dor de barriga no dia 27 de setembro. E eu nasci no dia 28. Então, quando eu cresci mais, tomei a frente e passei a fazer”, explica o comerciante, que mexe pessoalmente a panela.

“O caruru quem faz sou eu”, diz ele, engrossando a voz no fim da frase, como quem quer atestar a qualidade da comida. Mas, para o preparo, ele conta com o apoio de 15 filhos de santo do terreiro para comprar os ingredientes, bater o camarão, limpar o feijão e separar o milho branco.

O trabalho começou neste fim de semana na roça do terreiro, em Lauro de Freitas.  “Só o quiabo que eu deixo para pegar mais perto do dia”, conta André.  São cerca de dois mil quiabos adquiridos a cada ano, que rendem aproximadamente 500 pratos de caruru.

Na manhã de quarta-feira, antes de sair do terreiro com o caruru em seu automóvel em direção ao Mercado das Sete Portas, deixa em casa um prato caprichado para São Cosme e São Damião.

Na próxima quinta, o dia seguinte ao evento, André completa 50 anos de vida, o que significa que na metade do seu tempo de existência ele se encarrega de promover a mais baiana das festas gastronômicas.

Mudança 

Aos 12 anos, André catava siri na praia em Itapema, para ajudar em casa. Um ano depois, já saía em barco pra pescar. Era a única atividade econômica no horizonte de um adolescente que precisava trabalhar. Mas aos 14 decidiu mudar com parentes para Salvador em busca de mais oportunidades. Com o tempo, parte da família alugou boxes no Mercado das Sete Portas.

Um de seus tios montou a Chapéu de Couro, que vende imagens de Cosme e Damião, ciganas, caboclos, velas, cachaça, charutos e compostos místicos, como o pó da atração sexual e o pó ‘agarra homem’. Quando chegou ao Mercado, há 36 anos, André trabalhava juntamente com seu tio, que 11 anos depois deixou o negócio para o sobrinho e abriu um box para comercializar camarão com Adailton, que estava chegando de Itapema.No ano passado, o negócio Camarões fechou. “Há um ano e seis meses eu vim para cá, para ajudar André”, afirma o mais novo, que tem 45 anos.

Mas mesmo quando tinha seu negócio com o tio, Adailton sempre esteve presente na Chapéu de Couro no dia 27 de setembro.  “Eu fico desembolando a fila. Eu boto uma barreira aqui na entrada do box e travo tudo. Se não, ninguém come o caruru”, diz Adailton sorrindo, sobre sua função no dia de Cosme e Damião.

A distribuição de comida feita por André e seus filhos de santo não se limita ao 27 de setembro. Uma vez por mês, o babalorixá prepara uma feijoada que é dada a pessoas em situação de rua no bairro da Calçada. Enquanto explica essa outra ação, mensal, André pega o celular no bolso e começa a mostrar imagens da distribuição na Cidade Baixa. “Ali tem pedinte, tem cheirador, e isso da feijoada é muito bom, no sentido de proteção, de prosperidade”, afirma André, que esporadicamente também distribui comida em comunidades carentes de Lauro de Freitas.

O babalorixá e comerciante diz que procura ajudar como pode e mostra no celular a foto de uma mulher.  “Ela tem 28 anos e seis filhos. Tem gente em Itinga que mora na invasão, em.barraca de lona. Não tem telhado, meu irmão”, enfatiza o comerciante, enquanto rola o dedo na tela do celular, repassando fotografias.  Haja caruru para abrir caminhos para tanta gente necessitada.

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