‘Estamos vendo uma aceleração das mudanças climáticas globais’

Físico alerta para os fortíssimos impactos que a aceleração do aquecimento global trará para a sociedade

Por: Divo Araújo

Paulo Artaxo, físico e professor da USP
Paulo Artaxo, físico e professor da USP – 

A intensidade dos eventos climáticos que estamos vendo hoje, com recordes após o recordes de temperatura, vem surpreendendo cientistas pelo mundo, a exemplo do físico e professor da USP, Paulo Artaxo. “De certa maneira, a natureza reagiu mais forte do que os modelos climáticos previam”, afirmou ele, que estará em Salvador durante esta semana para participar do XXXVII Encontro de Física do Norte e Nordeste, que começa hoje no Fiesta Convention Center (Itaigara).

Em entrevista exclusiva ao A TARDE, Artaxo alerta para os fortíssimos impactos que a aceleração do aquecimento global trará para a sociedade, tanto em áreas urbanas quanto em rurais. O semiárido, por exemplo, será uma das regiões transformadas pela elevação das temperaturas. “Não há a menor dúvida que o semiárido nordestino já está passando por um processo de desertificação. Temos que pensar seriamente o que vamos fazer com os milhões de brasileiros que moram nessa região”.

Artaxo é um dos membros do IPCC, o Painel Internacional para Mudanças Climáticas da ONU que elabora há 20 anos relatórios sobre os efeitos do aquecimento global e das mudanças climáticas no mundo. Para ele, o único caminho é mudar o sistema econômico que  temos hoje, baseado na exploração predatória dos recursos naturais e na concentração de renda. “Não há nenhum plano B possível”. Saiba mais sobre as mudanças climáticas na entrevista que segue.

A temperatura do planeta ultrapassou a marca de 2ªC acima do nível pré-industrial na sexta-feira (dia 18) passada,  considerada limite pelos cientistas . Quais as consequências para o planeta?

O que nós estamos vendo é uma aceleração das mudanças climáticas globais.  Estamos cada vez mais atingindo recordes após o recordes de temperatura, de eventos climáticos extremos e assim por diante, com fortíssimos impactos na sociedade, tanto em áreas urbanas quanto em rurais. E isso é causado pelo aumento da concentração de gás de efeito estufa. Já faz 50 anos que a ciência alerta os governos e as empresas, principalmente as empresas de petróleo, que isso pode levar a um colapso do sistema climático e absolutamente nada foi feito até o momento.

Falta muito para afirmar que os esforços para limitar o aquecimento global falharam?

Não há a menor dúvida que eles falharam, tanto é que nós estamos observando esse enorme aumento dos eventos climáticos extremos em 2023. E o recorde de aumento de temperatura no planeta como um todo.

A ONU também alertou que o mundo caminha para um aumento da temperatura média entre 2,5ºC e 2,9ºC neste século, quase o dobro da meta ideal. O que os líderes mundiais precisam fazer diante desta informação?

Na verdade, não são só os líderes mundiais, mas a sociedade como um todo. É muito fácil passar a responsabilidade  para  o presidente dos Estados Unidos, a presidência da União Europeia. Na verdade não é bem isso. A culpa desse estado é principalmente das empresas de petróleo. Não é nem dos governos como um todo. Nós temos hoje uma emissão de 62 bilhões de toneladas a cada ano de gases de efeito de estufa. E temos um conjunto de 20 ou 30 empresas que ganham trilhões de dólares a cada ano com essas emissões. A indústria do petróleo é certamente o principal problema que nós temos hoje no nosso planeta. E também o desmatamento de florestas tropicais como a da Amazônia, que são responsáveis por cerca de 13% do total das emissões de gases de efeito de estufa. Então, nós temos que parar o desmatamento de florestas tropicais, e temos também que parar a exploração e o consumo de petróleo para ter alguma chance de estabilizar a temperatura do nosso planeta.

Essa onda de calor recorde, vista inclusive em boa parte do Brasil, desafiou as expectativas de parte dos cientistas em relação à rapidez com que as temperaturas se aceleraram. O senhor também se surpreendeu?

De fato, os modelos climáticos não previam esse enorme aumento de eventos climáticos que a gente está observando. De certa maneira, a natureza reagiu mais forte do que os modelos climáticos previam. Então, nós estamos, sim, observando fortíssimos aumentos da temperatura e isso mostra que a emergência climática e a necessidade de atuar o mais rápido possível são ações fundamentais para nossa sociedade.

Qual é a influência das mudanças climáticas no espalhamento de queimadas no Pantanal e na seca dos rios no Amazonas?

Nós estamos vivendo em 2023 duas questões importantes associadas com o clima. A primeira delas é o aquecimento global, com o aumento da temperatura. E a segunda é a ocorrência do El Niño, que estamos tendo  no Pacífico. Estamos observando um El Niño ultraforte e é importante frisar que ele é um fenômeno natural,  sempre ocorreu e vai continuar ocorrendo. Só que tem um detalhe muito importante: o El Niño é causado por um aquecimento anômalo das águas do Pacífico tropical. Acontece que o aquecimento global está aumentando a temperatura dos oceanos em torno de 1ºC., comparado há 50 anos. O que acontece? O aquecimento global está realimentando positivamente os El Niños e os tornando mais fortes. Você vê que há uma conjunção entre aquecimento do oceano, El Niño e a intensificação dos fenômenos climáticos extremos. Mas a parte mais fundamental desta questão é que o aquecimento está acelerando tanto o aumento global de temperatura e de eventos climáticos extremos, como também provocando El Niños mais intensos.

Relatório divulgado pela Organização Mundial de Meteorologia neste mês aponta que o El Niño deve perdurar até abril. Devemos nos preparar para, além das altas temperaturas, convivermos com mais eventos climáticos atípicos, como ciclones e alagamentos?

É muito difícil fazer uma previsão quantitativa da ocorrência de eventos climáticos extremos. Tem uma natureza caótica muito forte.  Ninguém vai dizer que vai ocorrer um tornado semana que vem, ou uma chuva torrencial em Petrópolis, daqui a dois meses. Isso não existe. O que nós olhamos é a média estatística desses eventos. E na média estatística desses eventos, eles aumentam quando temos um El Niño forte. Como o El Niño vai durar até abril é bom a gente se preparar para o aumento até abril da intensidade de eventos climáticos extremos.

Estamos vendo uma série de  ocorrências climáticas por aqui. O Brasil está mais vulnerável do que outros países aos efeitos do aumento da temperatura global?

É  difícil você comparar a realidade de países que são muito diferentes.  Não se pode comparar o Brasil com os Estados Unidos, com algum  país da África,  com a China. Nós temos que olhar para nós. E, olhando para nós, fica muito claro que o Brasil está totalmente despreparado para lidar com eventos climáticos extremos. Nós temos que reforçar nossa Defesa Civil em todos os estados, em todos os municípios. Temos que ter uma coordenação cada vez mais forte no governo federal para ações rápidas que possam diminuir a mortalidade nas regiões afetadas pelos eventos climáticos extremos e assim por diante. Então, nós estamos muito longe efetivamente de estar preparados para enfrentar estes eventos climáticos ao extremo.

Por um lado, tem a questão da vulnerabilidade que o senhor fala. Por outro, o Brasil tem vantagens estratégicas enormes na questão das mudanças climáticas. O que falta para aproveitarmos essas vantagens?

Não há a menor dúvida que o Brasil tem vantagens estratégicas que poucos países do nosso planeta possuem. Primeiro, nós temos a possibilidade de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em pelo menos 50% até 2030 de uma maneira barata, rápida e fácil, com um monte de benefícios adicionais. O Brasil tem o maior potencial mundial de geração de energia solar e de energia eólica. Nós aproveitamos muito pouco desse potencial ainda. O Brasil  pode se tornar uma potência energética verde que nenhum outro país sonha nem chegar perto da nossa possibilidade. Mas nós precisamos estruturar, como sociedade, políticas públicas para aproveitar as nossas vantagens estratégicas. E acho que o governo deveria prestar muito mais atenção nestas questões

A gente sabe que a população mundial está aumentando muito e com isso, a produção de alimentos vai precisar aumentar também. Isso torna o fim das emissões dos gases de efeito estufa cientificamente impossível?

Todos os países têm planos de zerar as emissões de gases de efeito estufa em alguma escala temporal. A Alemanha, por exemplo, quer zerar as emissões em  2040. Os Estados Unidos em 2050 e assim por diante. Acontece que hoje atualmente as emissões de gases de efeito estufa associados à produção de alimentos correspondem basicamente a cerca de 25%. Isso com a população de oito bilhões de pessoas atualmente e seremos dez bilhões em 2050. Não há  nenhum método conhecido pela ciência ainda de sequestrar 25% das nossas emissões atuais. Isto faz com que a previsão dos países se tornar ‘march zero’, do ponto de vista de emissões de efeito de estufa fica praticamente impossível. Essa é uma dificuldade importante na estratégia energética mundial, porque ela significa que continuaremos a piorar a situação climática bem além de 2050. Isto é uma preocupação que a ciência e a sociedade têm que enfrentar rigorosamente

A gente que mora aqui no Nordeste e convive com o semiárido teme muito os efeitos do aumento da temperatura na  caatinga. Estamos perto de um processo de desertificação?

Não há a menor dúvida que o semiárido nordestino já está passando por um processo de desertificação.  Com redução da taxa de precipitação de chuva que já é pouca. Mas ela está sendo reduzida em muitas regiões. E com o aumento pronunciado de temperatura. Isso vai fazer com que uma região semiárida passe a ser uma região árida, ou seja uma região desértica. E o Brasil tem que pensar seriamente o que é que nós vamos fazer com os milhões de brasileiros que moram numa região semiárida hoje e que não vão ter condições de sobrevivência nessa região já nas próximas décadas. Nós temos que efetivamente ter um plano de adaptação para população nordestina que vive na região do semiárido. E isto tem que ser feito mais rápido possível em conjunto com os governos municipais, os governos estados do nordeste brasileiro e governo federal.

As populações de baixa renda acabam sendo as mais afetadas pelo aumento da temperatura global, o que gera uma cruel contradição?

Não é contradição no sentido de que todo sistema econômico do nosso planeta é baseado na concentração de renda na mão de quem já é mais rico. Este modelo econômico precisa ser modificado para que a gente possa atingir os 17 objetivos de desenvolvimento sustentável da ONU.

O senhor acredita que o potencial energético eólico e solar, sobretudo do Nordeste, pode gerar ganhos econômicos através do mercado de carbono? As energias renováveis são o caminho para conter o aquecimento?

Não há a menor dúvida que nós temos que parar de  explorar petróleos e de queimar petróleo . E temos que substituir a geração de eletricidade por geração de eletricidade sustentável, como energia solar e eólica, na maior parte das ocasiões. É claro que existem problemas técnicos na questão da geração solar e eólica que é a intermitência. Não tem sol de noite e tem muito menos vento durante a noite. Mas até nisso o Brasil é um país muito sortudo porque nós temos potencial hidrelétrico enorme e uma malha de eletricidade interligada, o que faz com que seja possível, durante o dia, alimentar a rede brasileira com energia solar e eólica e, durante a noite, alimentar a rede com energia hidroelétrica. Nenhum outro país no nosso planeta tem uma possibilidade tão boa quanto o Brasil nesse sentido.

Professor, para concluir, diante de tudo que o senhor falou, dá para ter um olhar positivo em relação ao futuro?

É evidente que dá para ter um olhar positivo, porque não temos outra alternativa. Mas  precisamos mudar o sistema econômico que nós temos hoje, que é baseado na exploração predatória dos recursos naturais e na concentração de renda, ou seja, fazer os ricos ficarem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres. É um modelo social insustentável a curto prazo. Nós vamos construir uma sociedade alinhada com os 17 objetivos de desenvolvimentos sustentáveis da ONU que seja muito mais sustentável socialmente, economicamente e ambientalmente. Essa é uma tarefa e nós vamos ter que executar ao longo das próximas décadas, porque não há nenhum plano B possível, a não ser construir uma sociedade sustentável.

Raio-X

Paulo Artaxo professor do Instituto de Física da USP. É vice-presidente da Academia de Ciências do Estado de São Paulo e vice-presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). É membro do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas da ONU (IPCC) e da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Desenvolveu toda sua carreira trabalhando com Amazônia e mudanças climáticas globais.

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