A imunidade fiscal de juízes e parlamentares

Por Márcio de Freitas*

Executivo, parlamento e judiciário dão os toques finais, em dezembro, nos seus orçamentos do ano seguinte, a peça legal onde se podem visualizar graficamente os privilégios da elite corporativa nacional empoleirada nos altos cargos públicos federais. Muitos números, ações programáticas e planilhas são preenchidas para dar valor ao dispêndio estatal no país onde alguns são muito mais iguais do que outros. É também o retrato da ficção que desvela a mística da responsabilidade fiscal brasileira, onde lei específica para botar ordem na casa foi sancionada no ano 2000, um divisor do tempo que nos separou do século passado.

O tempo passou e o Brasil ficou no século anterior no quesito de controle de contas, racionalização dos gastos públicos e controle fiscal (a prometida métrica de se gastar o que se arrecada). Esse passado mal resolvido é uma ameaça ao futuro, ainda hoje. Aboletados nas entrelinhas legais, ou nas omissões de conveniência, a casta de ontem se mantém como os supimpas de amanhã, como magistrados que recebem bem acima do limite do teto de gastos. Os guardiões da lei são os primeiros a não respeitar as leis, nem as liberdades, como a tal liberdade de expressão ou imprensa.

A Lei Complementar 101 foi assinada por Fernando Henrique Cardoso. Vinha no bojo de um projeto de reorganização do Estado brasileiro, que havia conquistado a estabilidade da moeda em 1994, ao controlar a inflação. Lindo no papel, mas a folha em branco aceita qualquer coisa, mesmo letras mortas. A legislação passou a exigir que se autorizasse geração de despesa somente mediante estimativa de impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deveria entrar em vigor e nos dois subsequentes, além de declaração do ordenador de despesa de que o aumento estaria ajustado com a lei orçamentária anual, plano plurianual e lei de diretrizes orçamentárias.

Esse desenho é mais irônico do que discutir meta fiscal zero quando o presidente da República já anunciou que o Tesouro Nacional não conseguirá cumprir a meta anunciada por seu subordinado da Fazenda. Retirando o chefe, os deputados, senadores, operadores de mercado e a torcida do Ibis, todos fingem que a Roupa Fiscal do Rei é magnífica, linda, bem costurada e amarrada, à prova de rompimento, desfiamento ou rasgos.

A coisa do descontrole de contas, na verdade, tem um vício de origem. Com o tempo, foi incorporada ao cotidiano orçamentário pela ampla classe dirigente nacional, mas surgiu da boca torta pelo uso do charuto cubano ou baiano dos tempos inflacionários. Exemplo já citado: o teto de vencimentos do funcionalismo público é o de um ministro do Supremo Tribunal Federal, R$ 41,6 mil. Mas em diversos estados, desembargadores e juízes recebem mais do que isso. R$ 100 mil em alguns casos. Farinha pouca, meu imenso pirão primeiro.

Os auxílios se proliferam para catapultar as contas bancárias de Suas Excelências, como gostam de ser tratados em audiências presenciais ou virtuais. Tratamento que exigem em nome da urbanidade. Aliás, um auxílio que poderia ser criado para atender alguns integrantes necessitados da classe magistral que desse adjetivo desconhecem o sentido vernáculo por completo.

Não há fiscal que consiga encontrar o insustentável equilíbrio das contas públicas com essa receita. Como os Poderes são autônomos… bem, um não se mete em outro, até por medo de retaliações. E não se cobra essa coerência do Judiciário, que poderia ajudar, mas prefere entrar em rota própria de voo de carreira, preferencialmente em classe executiva.

O exemplo vem de cima, e do lado. O Legislativo segue o líder, com gastos de gabinete que jogam para cima as despesas de custeio de mandato. É uma rachadinha a mais no orçamento fiscal, de fazer corar até Janones. Além disso, há também as emendas impositivas. Deputados e senadores cada vez mais obrigam o Executivo a gastar para garantir seu futuro político. É o programa “Meu Mandato, Minha Vida” (eternamente no Congresso). Direcionam recursos para suas bases, e a conta passa pelo cofre do Executivo, depois de retirar o dinheiro do bolso do contribuinte. Tudo com limite sempre expandido a cada ano, mesmo com queda de receita.

A Lei de Responsabilidade Fiscal aponta punições para todos os Poderes, mas cobra a conta mais salgada do Executivo, que é quem tem que apertar a boca do cofre. E as maiores sanções também recaem sobre o mesmo Executivo. Legislativo e Judiciário são beneficiados, de certa forma, com uma certa isenção fiscal – isenção de punição fiscal, numa isonomia muito tropical. Tudo bem, afinal, num país em que somente o Papai Noel e a Fada do Dente acreditam na meta de déficit zero, todos continuam se enganando e todos acreditam na outra vida fiscal: um paraíso onde o dinheiro cai do céu toda noite e os amanheceres são plenos de fatura.

*Analista político da FSB Comunicação

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