Da Revista Piauí – Quem chega à sede da fazenda do empresário Mario Bernardo Garnero no distrito de Sousas, em Campinas (SP), não sabe para onde olhar primeiro. A biblioteca guarda milhares de volumes, além de fotografias do anfitrião ao lado de personalidades tão ilustres quanto o ex-presidente dos Estados Unidos George H. Bush, o Bush Pai, e os papas João Paulo II e Bento XVI. Apreciadores das artes plásticas miram as paredes e logo reconhecem A Caminhada do Penhasco em Pourville, do impressionista francês Claude Monet, e Cariátide, do modernista italiano Amedeo Modigliani.
Alguns cômodos adiante, nas paredes da sala de jantar, o impacto de quatro telas do espanhol Pablo Picasso. Um quinto quadro do pintor cubista fica próximo ao jardim dos fundos.
Não foi sem motivo, portanto, que os advogados do banco BTG estavam em polvorosa na manhã de 21 de março deste ano. Naquela data, a Justiça cumpriu mandado de penhora na fazenda de Garnero na tentativa de localizar bens que cobrissem os 27 milhões de reais decorrentes de um empréstimo bancário não pago pelo empresário.
Os advogados do BTG já suspeitavam haver bens de alto valor dentro do imóvel, uma vez que, por determinação judicial, foi anexada na ação de cobrança da dívida, que tramita na 11ª Vara Cível de São Paulo, cópia da declaração do imposto de renda de Mario Garnero relativa ao ano de 2021 (o processo, que é público, foi consultado pela piauí). Nela, o empresário declara patrimônio de 1,6 bilhão de reais, incluindo 137 milhões em “quadros, joias carros e outros bens”, sem especificar nenhum deles.
Devido ao suposto acervo de obras de arte, o BTG solicitou à Justiça mandado para penhorar bens de valor na casa de Garnero, o que foi deferido pela 11ª Vara em novembro de 2022.
A penhora, no entanto, só ocorreria naquele dia 21 de março. O oficial de Justiça listou sessenta bens de valor, entre quadros, esculturas, móveis e até uma carruagem antiga. Para os advogados do BTG, saltaram aos olhos as sete obras de Monet, Picasso e Modigliani. Como todos os bens penhorados ficaram na posse de Garnero, dois dias depois, em 23 de março, diante da alegação de que as obras de arte pudessem sumir do imóvel, o banco solicitou ao juiz que os sete quadros fossem retirados da fazenda e levados para São Paulo, onde ficariam sob a guarda de uma empresa de segurança. Também solicitou que as sete obras fossem periciadas quanto à autenticidade. A Justiça concordou com os dois pedidos.
Na tarde de 25 de março, um sábado, o perito Douglas Quintale, acompanhado do oficial de Justiça, avaliou os sete quadros – Garnero, que estava no imóvel, não apresentou documentação (certificado de autenticidade ou recibo de compra) de nenhum deles, o que seria natural para um colecionador de telas tão valiosas. Em seguida, as obras foram levadas a São Paulo por homens armados da empresa de segurança Brinks, contratada pelo BTG. Dias depois, o laudo de Quintale trouxe conclusão surpreendente, válida para todos os sete quadros: “Não resta qualquer dúvida que não se trata de obra de arte feita por mão de artista qualquer, tão somente uma reprodução […] sem valor comercial de obra de arte.” A tela original de Monet, por exemplo, está atualmente no Instituto de Arte de Chicago, Estados Unidos. O que o banco julgava ser um patrimônio milionário não passava de falsificações, com valor total de 1,2 mil reais. Os quadros foram devolvidos a Garnero.
Para o BTG, porém, restou o mistério: se o empresário incluiu obras de arte na declaração à Receita no valor de 137 milhões de reais, onde estão essas preciosidades?
Nos últimos dez anos, Mario Bernardo Garnero vem acumulando sucessivas dívidas decorrentes de calotes em empréstimos bancários. Levantamento da piauí no Tribunal de Justiça de São Paulo encontrou doze cobranças judiciais de dívidas contra o empresário, totalizando 236 milhões de reais, em valores não atualizados. A própria fazenda onde ele mora, em Campinas, está penhorada em razão de dívidas.
É a segunda derrocada na carreira de Garnero, filho de um engenheiro agrônomo italiano e de uma campineira que enriqueceu graças ao talento em fazer amizades com as pessoas certas, a começar por Juscelino Kubitschek, nos anos 1960 – foi um dos coordenadores da campanha presidencial de JK em 1964, interrompida com o golpe militar. Formado em direito, foi diretor do departamento jurídico da Volkswagen e presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), no início da década de 1970. Nessa época, aproximou-se de figuras ilustres da política norte-americana, como o ex-presidente Lyndon Johnson e o diplomata Henry Kissinger.
Em 1975, aproveitou sua rede de contatos pelo mundo para fundar o Brasilinvest, banco de investimentos estrangeiros no Brasil. Na metade dos anos 1980, Garnero vivia o auge da fama, com presença constante nas colunas sociais da mídia brasileira, quando tudo ruiu: em março de 1985, o Banco Central decretou a liquidação extrajudicial do Brasilinvest, por suspeitas de desvio de recursos do banco para empresas fantasmas. O empresário foi indiciado pela Polícia Federal por estelionato, formação de quadrilha e operações fraudulentas no mercado financeiro. A Justiça Federal chegou a condená-lo a cinco anos de prisão, mas a sentença acabou anulada em 1999 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), depois de ministros da corte participarem de viagem a Mônaco e de um seminário em Buenos Aires, ambos patrocinados pelo próprio Garnero, segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo.
O empresário conseguiu anular a liquidação do Brasilinvest e retomou as atividades do banco, sediado em um imponente edifício batizado de “Centro Empresarial Mario Garnero”, na esquina das avenidas Rebouças e Faria Lima, no coração do mercado financeiro de São Paulo. Entre seus patrimônios mais valiosos está a participação na empresa imobiliária francesa Sci Le Lac e aplicação em um trust nas Ilhas Virgens Britânicas. Após declarar patrimônio de 1,6 bilhão de reais no IR, Garnero fez uma retificação com alteração radical nos próprios bens: os investimentos milionários na França e na trust do Caribe, além da vultosa coleção de arte, simplesmente desapareceram, e suas posses despencaram 97%, para 39,7 milhões de reais. “Vultosos prejuízos financeiros com operações malsucedidas consumiram aqueles recursos outrora existentes”, alegou o advogado de Garnero, Nelson Fatte Real Amadeo, na ação movida pelo BTG. “Retificação do IR serve para corrigir erros, não atualizar patrimônio”, afirmou à piauí o advogado tributarista e professor da FGV Edison Fernandes.
Há mais detalhes obscuros no patrimônio de Garnero. A piauí encontrou na base de dados do projeto Pandora Papers, do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), três offshores em que Garnero aparece como um dos beneficiários: LJ Maple Kensington e LJ Maple St Johns Wood, criadas em 2017 nas Ilhas Virgens Britânicas, e Garnet Investors Inc, de 2013, sediada no Panamá. Contrariando as leis brasileiras, nenhuma delas foi declarada pelo empresário no imposto de renda em 2021. À reportagem, Garnero negou relação com as três offshores, em que pesem os registros documentais. “Não tenho essas offshores e vou processar [na Justiça] quem disser que eu tenho”, afirmou.
Ao BTG, restavam mistérios sobre as obras de arte declaradas por Garnero à Receita: “Os fatos recentes são indicativos de possíveis condutas ilegais por parte do executado Mario Garnero, que nos conduzem a inúmeras perguntas: para quem e quando foram alienadas as obras de arte? Esse fato foi comunicado à Receita? Onde se encontra o fruto dessa venda tão expressiva?”, questionaram os advogados do banco credor.
Em um novo laudo solicitado pelo BTG, o perito Douglas Quintale constatou que o nome de Garnero não consta no Cadastro de Negociantes de Obras de Arte (Cnart), criado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) para prevenir a lavagem de dinheiro por meio do comércio de obras de arte no Brasil, nem em listas de colecionadores de obras de arte, como a do Getty Museum. Além disso, segundo Quintale, obras de arte devem ser declaradas individualmente no imposto de renda, e não genericamente, como foi feito. “As informações contidas nas declarações [de renda de Garnero] são completamente vagas, imprecisas – decerto, não constituem finalidade nenhuma para comprovar uma provenance [origem de uma obra de arte, na expressão em francês] segura quanto à linha sucessória das obras de arte em questão”, disse o perito no laudo.
Para os advogados do BTG, “a conduta de Mario Garnero precisa ser mais bem investigada, porquanto estamos diante de provável fraude à execução, de um lado, e de possível sonegação fiscal ou prática de ilícito penal, por outro”. A reportagem apurou que, apesar dos indícios de crimes no caso, o BTG não formalizou denúncia à Polícia Federal ou à Polícia Civil paulista.
À piauí, Amadeo, advogado de Garnero, disse apenas que os quadros apreendidos na casa do empresário em Campinas são “réplicas utilizadas exclusivamente para decoração interna da residência, que nunca foram declaradas autênticas por meu cliente, nem tampouco oferecidas a qualquer negociação nem mesmo garantia”.
Na tentativa de encontrar as obras de arte verdadeiras de Garnero, o BTG solicitou à Justiça a penhora “porta adentro” tanto no Centro Empresarial Mario Garnero, na Faria Lima, quanto nos endereços dos quatro filhos do empresário, que também são réus na ação de cobrança da dívida. “Os executados debocham do exequente [BTG] e deste Juízo, escondendo o valioso patrimônio declarado à Receita e assistindo os esforços infrutíferos para sua localização”, criticam os advogados do banco. A 11ª Vara Cível de São Paulo rejeitou o pedido, mas o banco recorreu ao Tribunal de Justiça e aguarda o julgamento da apelação. Nas contas bancárias dos Garnero, foram bloqueados 286 mil reais, o equivalente a 1% da dívida do clã com o BTG.