Impunidade e vulnerabilidade alimentam trabalho escravo no Brasil, diz presidente do TST
O presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), Lelio Bentes Corrêa, afirma que o trabalho escravo ainda é uma realidade muito presente no país e que exploradores se nutrem da vulnerabilidade social e econômica de parcela importante da população.
O garçom Maurício de Jesus Luz, 44, que trabalha na presidência do TST descobriu ter sido vítima de trabalho escravo dos 4 aos 18 anos, em fazendas no interior do Maranhão, assistindo a palestras no órgão.
O despertar começou em 2022, quando ele ouviu a fala da empresária Simone André Diniz. Ela denunciou ter sido vítima de racismo ao ser rejeitada para uma vaga de empregada doméstica. O caso foi arquivado por falta de provas, mas gerou a responsabilização do país por violação aos direitos humanos.
O ministro diz que os que cometem este tipo de crime acreditam que jamais serão punidos e que ainda há dificuldade em reconhecer a exploração, num processo de desumanização da mão de obra.
Bentes Corrêa diz que o garçom Maurício de Jesus Luz já havia lhe contado a sua história e que ficou feliz que ele tenha se disposto a falar. Também afirma que o tribunal ficou surpreso ao saber que tinha essa realidade tão próxima à corte e que o depoimento é importante para chamar a atenção das pessoas que passam pelo mesmo e mostrar que não estão sozinhas.
“A maior contribuição do depoimento do Maurício é demonstrar, com toda a clareza, que o trabalho escravo é uma realidade do nosso país e que muitas vezes vem associado ao trabalho infantil. Ele perdeu a oportunidade de ter uma infância de formação lúdica e educacional”, diz.
O ministro acrescenta que o caso demonstra a importância da conscientização e da disseminação de informações, porque muitas vezes essas pessoas acabam sendo vítimas do trabalho escravo também por falta de informação.
“Não podemos consentir essa situação em pleno século 21. O combate precisa ser muito intenso para que as pessoas entendam de uma vez por todas que o ser humano não é uma mercadoria, um objeto, ele tem que ser tratado com dignidade. Há como combater esse mal”, afirma à reportagem.
O ministro diz que a Justiça do Trabalho tem atuado com muito rigor no tema e que as sentenças têm sido rigorosas, “como devem ser, com consequências criminais e trabalhistas”. Além de indenizações por danos morais, quando o Ministério Público identifica os casos e ajuíza ações.
Ele acrescenta que a Constituição da República prevê a possibilidade de perda da propriedade onde se explora o trabalho escravo.
“Temos condenações bastante expressivas, na casa dos milhões de reais, quando há exploração do trabalho escravo. Além disso, criamos um programa com o objetivo de capacitar nossos juízes a lidarem com esses casos e trazer a mensagem para a sociedade de que nós não vamos tolerar mais isso”, diz.
Segundo dados do MPT (Ministério Público do Trabalho), no ano passado 3.190 pessoas foram resgatadas de condições de trabalho análogas à escravidão no Brasil, o maior número registrado em 14 anos. Entre 2021 e 2023, os 24 tribunais regionais do trabalho do país receberam 2.786 processos sobre o tema.
No caso do garçom do tribunal, o ministro afirma que o Poder Judiciário não pode agir por iniciativa própria, mas que o Ministério Público de Trabalho será informado da situação e poderá adotar as providências necessárias.
“O crime de exploração do trabalho escravo, segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, é imprescritível. Vamos conversar com o Maurício para ter a aquiescência dele, mas é fundamental que o Ministério Público de Trabalho seja oficialmente informado para que se possa ter uma atuação em razão do caso dele”, afirma.
O ministro também defende mais efetividade das instituições públicas na fiscalização do trabalho e na conscientização social. Segundo ele, as pessoas não podem ficar indiferentes a essa realidade e têm o dever de denunciar e comunicar à fiscalização do trabalho e à polícia para reverter essa cultura.
“As pessoas que exploram não podem passar despercebidas como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, elas têm que ser punidas, estão cometendo um crime e têm que sofrer as consequências”, afirma.
Já a palestrante Simone André Diniz diz que se emocionou com a repercussão de sua palestra no caso de Luz e que isso significa que sua luta de 26 anos não é em vão.
“Quando acabou a minha palestra no TST, ele [Luz] veio me oferecer um copo d’água e comentou que gostou muito de ver a minha fala porque ia encorajar ele a algo. Ele disse que tinha passado por uma situação difícil na vida e que aquilo lhe fazia lembrar de algo, uma situação que tinha vivido, porém não entrou em detalhes”, afirma.
A empresária diz que, na ocasião, defendeu ao garçom a importância de lutar por direitos, se valorizar e não deixar ninguém pisar em cima do trabalhador.
“Na palestra, bati muito na tecla que nós temos direito de ir e vir e de lutar pelos nossos ideais porque nós não somos diferentes de ninguém. O que pesou ali para o Maurício foi a cor da pele. No meu caso, vi um anúncio que dizia ‘procura-se empregada doméstica de preferência branca’ e percebi que tinha coisa errada. Até hoje, presto muita atenção se estou sendo tratada diferente pela minha cor”, diz.
Constança Rezende/Folhapress