Por que universidades e empresas disputam matemáticos no Brasil
Quatro anos depois de se formar em matemática aplicada, Fernanda Scovino ainda frequenta a faculdade onde estudou, a Fundação Getúlio Vargas (FGV), mas não como aluna — ela vai agora em busca de novos talentos para suas equipes.
Ela lidera aos 25 anos uma equipe de seis analistas de dados na Prefeitura do Rio de Janeiro, e tem uma ONG, a Base de Dados, que reúne e facilita o acesso a uma série de informações.
“A disputa pelos matemáticos é muito grande”, diz Fernanda.
“Quando eu estudava, as empresas promoviam visitas aos seus escritórios, éramos muito abordados por bancos, consultorias, startups e empresas de tecnologia“, ela acrescenta.
A professora Maria Soledad Aronna diz que esse tipo de movimento é bem comum.
Ela dá aulas no curso de Ciências de Dados e Inteligência Artificial da FGV desde 2012 e conta que já viu vários ex-alunos voltarem alguns anos depois em cargos de chefia e atrás de estagiários.
A professora conta que as empresas chegam a recrutar estudantes até mesmo do segundo ano, quando eles nem sabem o básico da profissão.
“O índice de empregabilidade dos alunos é 100%, e o crescimento na carreira tem sido aceleradíssimo”, diz Aronna.
O mercado está mesmo aquecido para quem domina matemática e em áreas afins — como estatística, ciência de dados, computação e algoritmos.
Essas pessoas são valorizadas porque têm habilidades que vão muito além de fazer cálculos e contas difíceis.
Elas desenvolvem também uma capacidade de pensar problemas de forma abstrata e sair em busca de soluções.
Mas o número de pessoas que formam nestas áreas no Brasil não parece estar dando conta da demanda.
A Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação, um setor onde vão trabalhar muitos destes profissionais, calcula, por exemplo, que são criadas quase 160 mil novas vagas por ano.
Mas só se formam a cada ano 53 mil com as habilidades que as empresas buscam, pelas contas da associação — ou seja, há em torno de três vagas para cada novo profissional.
O salário gira na casa de R$ 6 mil por mês, quase quatro vezes a média nacional, de R$ 1,6 mil.
Mas há empregos no mercado que pagam o dobro, triplo ou mais para profissionais mais experientes e qualificados.
“A era dos matemáticos chegou”, cravou Keith McNulty, diretor global de ciências, tecnologia e digital da consultoria McKinsey & Company, em um post na rede social LinkedIn em outubro do ano passado.
McNulty explica à BBC News Brasil que a procura começou a aumentar nos últimos dez anos graças a popularização de novas tecnologias.
“Multiplicaram-se as oportunidades para matemáticos”, diz McNulty.
“Muitas empresas e organizações passaram a trabalhar com grandes quantidades de dados, sendo que antes costumavam se restringir a pequenas planilhas.”
‘Achei que era golpe’
Essa alta demanda por profissionais da matemática e áreas correlatas produz um efeito em cascata em que as universidades saem à caça de jovens promissores nas salas de aula das escolas.
“Quando recebi o e-mail, não acreditei. Achei que era golpe”, diz Paula Eduarda de Lima, de 18 anos, que recebeu um convite da FGV para participar de uma preparação para o vestibular.
Caso fosse aprovada, ela tinha a garantia de que receberia uma ajuda financeira para se mudar de Jaboti, no interior do Paraná, para estudar sobre ciência de dados e inteligência artificial no Rio.
Ela não foi o único caso. A FGV tem oferecido uma série de benefícios a estudantes de todo o Brasil que sejam medalhistas da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP).
Paula Eduarda havia chamado a atenção ao ganhar a prata em 2021. Por dois anos seguidos, ela também foi ouro na Olimpíada Brasileira de Astronomia (OBA).
Filha de pequenos agricultores, Paula Eduarda aceitou o convite. Hoje, está no segundo ano do curso.
“Moro com os outros bolsistas em um hotel e recebo R$ 2,4 mil por mês de apoio”, conta a estudante, que vê na matemática uma forma de “crescer na vida”.
No futuro, ela diz se vê trabalhando com análise de dados em uma grande empresa ou como pesquisadora em uma universidade.
Como a matemática movimenta a economia
Os rendimentos de empregos ligados à Matemática compõem 4,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil, segundo um estudo do instituto Itaú Social feito em parceria com o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).
De acordo com o estudo, homem e pessoas brancas ocupam a maioria dos empregos intensivos em matemática, com participação de 69% e 62%, respectivamente, embora sejam minoria na população em geral, com uma representação de 48,5% e 43,5% entre os brasileiros como um todo.
Divulgado no final do ano passado, esse foi o primeiro levantamento feito para estimar como estas profissões movimentam a economia do país.
Em outros países essa participação é ainda maior, diz Marcelo Viana, presidente do Impa.
Na Inglaterra, 15% do PIB é representado pela matemática e suas aplicações, aponta Viana. Na França, são 18%.
“Algoritmos, a ciência de dados e campos relacionados progridem rapidamente por serem cada vez mais presentes no dia a dia, nos produtos e softwares que usamos, com grande peso na economia”, explica Viana.
Nos Estados Unidos, o governo estima que o número de vagas para matemáticos e estatísticos no mercado vai crescer 30% entre 2022 e 2032.
A média salarial está hoje na faixa dos US$ 100 mil por ano (quase R$ 500 mil) — aproximadamente o dobro do ganho médio de um americano.
Um profissional da área tem, em geral, mestrado em matemática ou estatística, segundo o levantamento do governo americano, mas algumas vagas aceitam apenas diploma em graduação.
É uma realidade bem diferente do que a que Keith McNulty, diretor da McKinsey, encontrou no passado.
“Quando me formei no doutorado, há 25 anos, saí perdido porque, naquela época, a única opção para matemáticos parecia ser ir para o meio acadêmico, algo que eu não achava gratificante”, comenta McNulty.
Quanto ganha um matemático no Brasil?
O levantamento do Itaú Social e do Impa apontou que, no Brasil, os salários mais baixos são justamente os de professores de matemática do ensino fundamental, em torno de R$ 2,5 mil.
Já as vagas nas áreas de pesquisa e engenharia giram em torno de R$ 8,3 mil por mês.
Os executivos em empresas públicas, categoria com o maior salário médio do estudo, recebem cerca de R$ 14,4 mil reais.
Os salários no mercado privado podem ir ainda mais além. Uma empresa de inteligência artificial de São Paulo, por exemplo, paga entre R$ 15 mil e R$ 20 mil para profissionais mais experientes, com doutorado e alguma experiência corporativa, segundo apurou a reportagem.
Mas, de acordo com um executivo da empresa, esses valores ainda assim ficam “abaixo da média” do setor, e é preciso sinalizar que isso será compensado por futuros bônus e opções de ações para conseguir recrutar os melhores.
Isso ajuda a entender porque a grande maioria dos colegas de Fernanda Escovino que também estudaram matemática trabalham na área de dados de grandes empresas e do mercado financeiro.
“São pouquíssimos os que viram professores e pesquisadores”, diz ela.
Ela conta que, antes de entrar na faculdade, pensava cursar engenharia “justamente pelo preconceito que se tem de achar que a única opção para matemáticos é se tornar professor”.
Mas Fernanda diz que se apaixonou pela matemática depois de assistir a uma aula na faculdade.
“O ponto de vista da matemática ensina sobre um tipo de raciocínio lógico que é importante em muitas carreiras, ainda mais nos dias atuais, com a popularidade da ciência de dados”, diz Fernanda, que é diretora de dados e inovação.
“As pessoas ao redor estranham, mas os cargos nos quais estão os matemáticos têm títulos que para alguns não lembram a nossa disciplina.”
Os gargalos para o Brasil se tornar potência da Matemática
Se por um lado as novas profissões viraram um chamariz para a matemática, isso virou um problema para a formação de novos professores.
Os baixos salários pagos para quem dá expediente na sala de aula faz com que menos matemáticos procurem a licenciatura, diz Marcelo Viana, do Impa.
Isso cria um gargalo importante no Brasil e em outros países.
Em 2022, o matemático Christophe Besse, presidente do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, na sigla em francês), apontou para uma tendência paralela.
“Há uma diminuição no número de professores e pesquisadores e, assim, uma menor capacidade de ensino”, alertou Besse.
Outro problema, diz Viana, é que o Brasil “não tem acompanhado a demanda” na formação dos estudantes.
Uma evidência disso, aponta o presidente do Impa, são os resultados do Pisa, a principal avaliação de educação básica no mundo.
Enquanto os 38 países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), apelidada de “clube dos ricos”, tem em média 31% dos alunos com baixo desempenho em matemática, o índice é de 73% no Brasil.
Isso quer dizer que sete em cada dez jovens do país não conseguem fazer os cálculos mais simples.
“Se considerar aqueles que alcançaram um nível mínimo de conhecimento para ambicionar ingressar em profissões que exigem o domínio da Matemática, aí a porcentagem é ínfima, de 4%”, diz Viana.
“O Brasil tem uma carência enorme, por consequência de problemas estruturais de nosso ensino, que inclusive faz com que a matemática seja vista como um bicho-papão pelos estudantes.”
A bióloga Cristina Caldas, diretora de ciência do Instituto Serrapilheira, dedicado à valorização do conhecimento científico, defende ser preciso mais estímulo público e privado para ampliar a formação na área.
“Iniciativas que mostrem como modelos matemáticos, algoritmos e afins estão por trás de grandes avanços que atendem demandas atuais, como o combate a epidemias e o progresso da computação”, diz Caldas.
O Brasil pode com isso se tornar “um país rico em ideias que possam solucionar problemas urgentes da sociedade atual”, defende a bióloga.
O Serrapilheira está agora em sua 7ª Chamada Pública de Apoio à Ciência, destinada ao financiamento de pesquisadores nas áreas de ciências naturais, computação e matemática em início de carreira interessados em resolver grandes questões nos campos em que atuam.
Desde 2018, 24 projetos foram aprovados na área da matemática, com um total de investimentos na casa de R$ 7,5 milhões.
Em ciências da computação, foram outros 15 projetos, com investimento de R$ 3,1 milhões.
Keith McNulty, da McKinsey, ressalta, para quem quer ganhar a vida com a Matemática, que o mercado mudou bastante nos últimos 25 anos.
“A diferença agora está na grande quantidade de dados com a qual temos de trabalhar e na complexidade dos problemas matemáticos enfrentados”, diz o executivo.
McNulty ressalta, no entanto, que no contexto atual de alta procura pela indústria da tecnologia, não basta ter formação na área.
Por isso, ele aconselha: “Torne-se competente em linguagem de programação, caso queira tirar o melhor de suas habilidades matemáticas em sua futura carreira”.