Por Abraji – A Abraji lançou o Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas no Brasil na noite desta quarta-feira (24.abr.2024), com o objetivo de sistematizar as ações judiciais movidas contra jornalistas que visam intimidar, fragilizar e silenciar o trabalho jornalístico. A pesquisa revelou a existência de 654 processos que tramitam em varas de todo o país, focalizando 84 casos de assédio judicial. O lançamento foi feito em evento na Faculdade de Direito da USP, em São Paulo.
Os resultados da pesquisa que conceituou, mapeou e sistematizou os dados sobre o fenômeno do assédio judicial no Brasil foram compilados em um relatório, disponível ao público em três idiomas – Português, Inglês e Espanhol. ACESSE O RELATÓRIO AQUI
O relatório define assédio judicial como “o uso de medidas judiciais de efeitos intimidatórios contra o jornalista, em reação desproporcional à atuação jornalística lícita sobre temas de interesse público”. Trata de processos movidos por pessoa física ou jurídica, em contexto de desequilíbrio entre as partes, em desfavor de pessoa jornalista, e que possam causar consequências judiciais intimidatórias à vítima. O estudo destaca que a ação judicial precisa ser evidentemente infundada ou que as estratégias processuais utilizadas sejam abusivas, causando exaustão à vítima e prejuízo no exercício de seu direito de defesa.
Os dados foram coletados pelo registro de casos notórios, denúncias compartilhadas por jornalistas e organizações parceiras e a extração de processos por meio do acervo de jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo. Um banco de dados foi estruturado, contando com a análise de 45 variáveis quantitativas, resumidas em 14 segmentos. A planilha de dados com a catalogação dos casos utilizados na pesquisa é pública e pode ser acessada no site do Monitor. Outra ferramenta importante, encontrada no site, é o canal de denúncias, voltado a jornalistas e comunicadores que foram alvos de ações judiciais abusivas, acessando aqui.
Entre as informações coletadas e analisadas pela equipe, que foi comandada pela coordenadora jurídica da Abraji, Letícia Kleim, estão as características de quem ingressa com essas ações e seus advogados, quem são os réus, onde o processo tramita, data e informações sobre o conteúdo do processo: a argumentação e os pedidos apresentados, o teor e o veículo da publicação jornalística que deu origem à demanda judicial, o número de processos relacionados a um mesmo caso, assim como os resultados em cada uma das instâncias até o trânsito em julgado, se houver.
“Abuso do direito de ação”
O evento realizado pela Abraji na USP teve o jurista e professor da universidade Rafael Mafei como mediador. Ele é um dos responsáveis pelo Monitor, ao lado da pesquisadora Bianca Villas Bôas, que apresentou ao público os dados do relatório. Foram convidados para o debate a advogada especialista na defesa da imprensa Taís Gasparian, fundadora do instituto Tornavoz, que, como lembrou Mafei, foi quem cunhou há mais de 15 anos o termo “assédio judicial”, e o jornalista Allan de Abreu, da revista piauí.
“Esses processos, sem qualquer surpresa, estão fadados a um ‘fracasso bem-sucedido’. É um fracasso porque a grande maioria é julgada improcedente ou extinta sem julgamento de mérito. Mas é bem-sucedido porque ações desse tipo prescindem de um resultado positivo. O ataque à imprensa já está dado”, afirmou a pesquisadora Bianca Villas Bôas, que atua com Mafei no projeto.
Taís Gasparian, que criou o termo “assédio judicial” há mais de 15 anos, quando se deram os ataques à jornalista Elvira Lobato por parte de pastores da Igreja Universal do Reino de Deus, explicou que o assédio é o “abuso do direito de ação” na Justiça. “A parte mais perversa é que muitos se utilizam do Juizado Especial Cível (JEC)”, afirmou ela, destacando que JEC é um meio de facilitar o acesso à Justiça por parte de pessoas hipossuficientes, mas que, no caso do assédio judicial, esse mecanismo é subvertido. “Nos casos de assédio, o autor não é o hipossuficiente. Pelo contrário, é o réu [o jornalista] que é o hipossuficiente”.
Taís Gasparian explicou que, para tentar coibir o assédio por meio dos JECs, a Abraji ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) para que os processos em série movidos contra jornalistas sejam reunidos no domicílio do réu. A advogada representa a Abraji na ação impetrada no STF, que ainda está sob julgamento, mas já recebeu um voto desfavorável por parte da ministra Rosa Weber.
Defensora da jornalista Elvira Lobato, Taís Gasparian contou que a repórter, então repórter da Folha de S. Paulo, venceu todos os processos impetrados por membros da igreja em diversos estados do país. Mas isso engessou por dois anos a agenda da advogada e de Elvira, que tiveram de viajar pelo Brasil para participar das audiências. Nessa situação, ficou clara a intenção da igreja de acossar Elvira Lobato e inviabilizar seu trabalho.
O jornalista Allan de Abreu figura como um dos casos de assédio judicial do Monitor e, recentemente, fez uma profunda reportagem sobre os jornalistas vítimas desse tipo de intimidação. Ele fez um depoimento sobre o impacto dessa agressão na vida dos profissionais de imprensa e saudou a criação do Monitor. “Eu acho que é um marco no jornalismo brasileiro. Porque, pela primeira vez, se sistematizou, se tem uma sistemática científica para monitorar esse assédio. E esperamos que o Judiciário se sensibilize com a práxis jornalística e que seja o início de um debate público que chegue às instâncias devidas.”
Poderes mobilizados
De 2008 até março de 2024, o Monitor reuniu um total de 654 processos enquadrados como assédio judicial contra jornalistas, distribuídos em 84 casos de assédio judicial. Do total, 57,4% decorreram da mobilização de poder associativo, 19.8% de poder político, 13,7% de poder econômico e 8,1% de poder jurídico.
Tipos de assédio
Há quatro tipos de assédio que podem ser empregados como meio de intimidação à imprensa: (i) processos que têm um mesmo jornalista como vítima de ações coordenadas, (ii) processos ajuizados por um mesmo autor litigante contumaz, (iii) processos com pedidos de indenização exorbitantes ou (iv) processos que se valem do uso do sistema criminal. A partir da análise dos dados, o tipo de assédio mais frequente (450) foi o de processos que têm um mesmo jornalista como vítima de ações coordenadas.
Litigantes mais recorrentes contra jornalistas
O maior autor de ataques foi o empresário Luciano Hang (53 processos), seguido por Guilherme Henrique Branco de Oliveira (47), Associação Nacional Movimento Pró-Armas (17), Daniel Valente Dantas (15), Julia Pedroso Zanatta (12), Médicos Pela Vida (12), Kim Patroca Kataguiri (8) e Orlando Morando Jr (8).
Natureza das publicações-alvo
Quanto à natureza predominante da publicação (reportagem ou opinião), chama a atenção a grande quantidade de casos (49%) de assédio ocorridos a pretexto de matérias predominantemente informativas, que reportam ou apuram fatos relativos a pessoas de interesse público. A divisão entre fatos e opiniões, que deveria ser relevante para atribuição de responsabilidades em ilícitos contra a honra, parece não ter grande impacto no Brasil: mesmo reportagens predominantemente factuais expõem as jornalistas e os jornalistas que as publicam a riscos jurídicos relevantes.
Quando deferido algum pedido contra o jornalista ou o veículo jornalístico, o mais frequente era que se tratasse do pagamento de indenização. Isso ocorreu em 62 casos (que podem ou não ter sido reformados em instâncias superiores). O número mostra que, mesmo no caso da providência mais comum, o número de deferimentos é baixo, o que sugere que o assédio se consuma mais pela importunação processual do que propriamente pela gravidade das consequências jurídicas que ele traz.
Destino das ações
O Monitor identificou que o destino da maior parte das ações de assédio é o fracasso, já que a maioria dos processos resulta como “Extinto sem resolução de mérito” e “Improcedente em todas as instâncias”. Isto reforça que a prática do assédio é indiferente ao resultado do processo. Assim como entendido internacionalmente no caso de SLAPP (Strategic Lawsuit Against Public Participation), o objetivo dessas ações não é a concessão judicial do seu pedido, mas o ônus que o simples fato de ser processado trará ao jornalista – custos processuais investidos na defesa, tempo e energia não direcionados ao exercício profissional da atividade jornalística, abalo à reputação e sofrimento psicológico.
Recomendações da Abraji
→ Seja ajustada a taxonomia dos processos adotada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para facilitar a identificação de casos que discutem a liberdade de imprensa, colocando em prática um mecanismo unificado de consulta processual que seja acessível ao público em geral;
→ Seja adotada pelo Poder Judiciário a possibilidade de reunião dos processos em foro único e no domicílio do réu quando se tratar de litígios em série contra um mesmo alvo, conforme a argumentação apresentada na ADI 7055;
→ Seja assegurado pelo Estado brasileiro que os integrantes do Poder Judiciário estejam sensibilizados em relação à liberdade de imprensa, de modo que suas decisões estejam em conformidade com a jurisprudência e os padrões internacionais de direitos humanos, a fim de reconhecer o assédio judicial contra jornalistas como uma ameaça às liberdades democráticas.
→ Haja a uniformização dos parâmetros adotados pela jurisprudência acerca da liberdade de imprensa no país, a fim de evitar a insegurança jurídica nos casos de assédio judicial contra jornalistas, garantindo a efetivação dos direitos constitucionais e dos padrões internacionais de direitos humanos.
O projeto contou com o apoio do Global Media Defence Fund da UNESCO* e recebeu a colaboração de diversas organizações da sociedade civil como Tornavoz, Ajor, FMMSA, RSF, Instituto Palavra Aberta, Jeduca, Intervozes e Instituto Vladimir Herzog.
Para assistir a discussão sobre o lançamento do relatório, clique aqui
O projeto foi criado e desenvolvido com o apoio da UNESCO, por meio do Global Media Defense Fund. As designações empregadas e a apresentação do material no website não significam a expressão de qualquer opinião por parte da UNESCO com relação à situação legal de qualquer país, território, cidade ou área ou de suas autoridades, ou com relação à delimitação de suas fronteiras ou limites. A ABRAJI é responsável pela escolha e apresentação dos fatos contidos e pelas opiniões nele expressas, que não são necessariamente as da UNESCO e não comprometem a Organização.