Investigação da Apex aponta “graves desvios” na gestão do general Lourena Cid durante o governo Bolsonaro

Entre as irregularidades apontadas estão o afastamento das atividades inerentes ao cargo e o uso da estrutura da agência para negociações de joias e defesa de pautas golpistas

Mauro Cid, Jair Bolsonaro e Lourena Cid
Mauro Cid, Jair Bolsonaro e Lourena Cid (Foto: Alan Santos/PR/Divulgação | Divulgação/Polícia Federal | Divulgação/Alesp)
A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) concluiu uma investigação interna sobre a atuação do general Mauro Lourena Cid, indicado por Jair Bolsonaro (PL) para o comando do escritório da agência em Miami, identificando uma série de desvios que teriam sido praticados por ele. Segundo o jornalista Aguirre Talento, do UOL, entre as irregularidades apontadas estão o afastamento das atividades inerentes ao cargo e o uso da estrutura da agência para negociações de joias que deveriam ter sido incorporadas ao patrimônio do Estado brasileiro, mas que Bolsonaro tentou se apropriar, além da defesa de pautas golpistas.

A investigação, baseada em depoimentos de 16 funcionários e ex-funcionários, além da análise de documentos, revelou que o general utilizou a estrutura da agência para visitar o acampamento golpista no quartel-general do Exército, em Brasília, no final de 2022. Lourena Cid manifestava aos funcionários sua convicção de que Jair Bolsonaro continuaria no poder mesmo após a derrota nas eleições.

Nomeado por Bolsonaro para chefiar o escritório da Apex em Miami em 2019, Lourena Cid, colega de turma do ex-mandatário na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), foi demitido em 3 de janeiro de 2023. Ele também está sob investigação da Polícia Federal (PF) por participar de negociações, nos Estados Unidos, para a venda de joias desviadas da Presidência da República. O general é pai do tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, que firmou um acordo de delação premiada com a PF.

A apuração da Apex revelou que o general usou o celular corporativo da agência para fotografar e compartilhar as joias por WhatsApp após sua demissão. As fotos foram tiradas nas dependências físicas da agência, mas não foi possível determinar se as joias foram levadas ao local. Lourena Cid demorou a devolver os equipamentos corporativos, como o celular e o notebook, com a devolução do celular ocorrendo somente em 7 de fevereiro.

A Apex concluiu que o general adotou um “comportamento desviante” na sua agenda de trabalho, sem realizar atividades para a captação de investimentos ou promoção de exportações. Foi também identificada a falta de controle sobre o trabalho dos funcionários e o desempenho do escritório.

As conclusões da comissão serão enviadas à Polícia Federal e ao Tribunal de Contas da União (TCU), que pode abrir processo para solicitar a devolução de valores caso identifique desvios. A defesa do general Cid não se manifestou sobre o assunto.

Com um orçamento de R$ 1,3 bilhão em 2022, a Apex, apesar de ser uma entidade de direito privado abastecida com recursos do sistema S, é auditada pelo TCU e precisa prestar contas à corte.

Leia a íntegra da nota emitida pela Apex:

Nota sobre as conclusões da Comissão Extraordinária que apurou irregularidades funcionais no Escritório da ApexBrasil em Miami

A Comissão Extraordinária designada para apurar irregularidades funcionais no âmbito do escritório da ApexBrasil em Miami, tendo como objetivo salvaguardar a instituição e reafirmar seus padrões de boa conduta, concluiu os trabalhos após 16 oitivas individuais e o exame de ampla documentação. Os resultados apontam a prática de delitos e graves desvios de conduta durante a gestão do general Mauro Lourena Cid à frente do escritório. Por decisão da Diretoria Executiva da ApexBrasil (Direx), as conclusões dessa apuração e os elementos reunidos serão encaminhados à Polícia Federal, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal de Contas da União (TCU), sem prejuízo de outras medidas a serem tomadas no âmbito interno. Por seus mecanismos permanentes de compliance e processos de controle de integridade, as apurações da ApexBrasil prosseguem no âmbito funcional, visando a futuras responsabilizações.

Criada em 2 de abril por resolução da Direx, a Comissão Extraordinária iniciou seus trabalhos a partir de informações que vieram à luz em reportagens da imprensa e dados de investigações da PF

tornados públicos. Boa parte dessas informações referentes à movimentação de Lourena Cid foram confirmadas e detalhadas por documentos examinados e depoimentos tomados pela Comissão. Entre as principais conclusões, destacam-se:

Uso da estrutura do escritório (EA) da Apex Miami pelo general Mauro Lourena Cid para negociação de joias e presentes de Estado.

O general, que segundo as investigações da PF atuou como suporte do filho, coronel Mauro Barbosa Cid, e do ex- presidente Jair Bolsonaro na negociação desses bens, utilizou a estrutura do EA para atividades não relacionadas à função de General Manager (GM). Isso ocorreu antes e depois de sua demissão do cargo, em 3 de janeiro de 2023. A partir de trecho de relatório da PF com imagens de mensagens de WhatsApp enviadas por Lourena Cid com identificação de data, foi possível concluir que, às 10:39 da manhã de 4 de janeiro de 2023, já demitido mas ainda nas dependências do escritório da Apex, ele usou o celular funcional para compartilhar fotos das joias e objetos de arte do acervo atribuído ao ex-presidente. Segundo depoimentos colhidos, nesse momento ele se encontrava no gabinete que ocupara como GM. As fotos, amplamente conhecidas, foram produzidas também pelo mesmo celular corporativo. Foi demonstrada ainda, com base nos mesmos relatos, a resistência do general em devolver à ApexBrasil o

aparelho celular, que continuou usando até o dia 7 de fevereiro, inclusive para conversas com o filho, coronel Mauro Barbosa Cid, principal acusado da negociação das joias – conforme fartamente documentado em relatório da PF. Na devolução do celular, seus dados foram apagados, de forma irregular, por um servidor do EA Miami na presença de outros. Lourena Cid também relutou em devolver o notebook funcional, o que ocorreu apenas em 17 de janeiro. Em ambos os casos, foi contrariado o procedimento padrão de devolução e apagamento dos dados de equipamentos da ApexBrasil, que devem ter sua integridade atestada e seus dados apagados por uma empresa prestadora de serviços de tecnologia contratada da Agência. Seu passaporte oficial com visto de trabalho vinculado à ApexBrasil jamais foi devolvido. Os depoimentos também informam que o general continuou frequentando a sede do escritório nas semanas seguintes à sua demissão. Manteve o crachá de acesso ao prédio até dia 9 de janeiro. Em 6 de janeiro, ainda nas dependências do EA, Lourena Cid recebeu uma senha de wi-fi do escritório em seu e-mail pessoal – já que o corporativo, conforme procedimento de rotina, teve bloqueio automático no dia da exoneração. Esses eventos indicam que o ex-GM do escritório de Miami contou com algum tipo de apoio ou omissão de funcionários. O relatório da Comissão concluiu que ficou comprovada a presença de Mauro

Cid no EA semanas após a sua demissão, tempo suficiente para agir conforme seus interesses e afastar qualquer evidência.

Lourena Cid recebeu em seu gabinete corretor que transportou joias de Bolsonaro.

O exame da agenda do general mostra que, em 1 de agosto de 2022, uma segunda-feira, ele recebeu em seu gabinete o corretor de imóveis Cristiano Piquet, da Piquet Realty. Piquet confessou à Polícia Federal que, em janeiro de 2023, transportou uma mala de joias do ex-presidente Jair Bolsonaro de Orlando para Miami, a fim de entregá-la ao general Cid. Na mala, segundo a investigação da PF, havia um kit composto por um barco e uma palmeira, supostamente folheados a ouro, que posteriormente seriam oferecidos para venda. A mala, sob os cuidados do coronel Mauro Barbosa Cid, havia chegado aos Estados unidos no avião presidencial no qual Bolsonaro seguiu para Orlando no dia 31 de dezembro de 2022. Depoimentos revelaram ainda a frequência de pessoas alheias aos negócios da ApexBrasil no gabinete do GM, sem registro em agenda. Em meados de janeiro, já exonerado, o general esteve no escritório acompanhado da mulher e do filho Mauro Barbosa Cid (principal acusado de operar a venda das joias), tendo ficado trancados em sua antiga sala por algumas horas.

Resistência explícita de Cid ao resultado eleitoral e visita ao acampamento golpista na companhia de servidores da ApexBrasil.

Diversas das oitivas realizadas convergiram num ponto: então General Manager do escritório de Miami, o general Lourena Cid manifestava repetidamente aos funcionários sua convicção de que, mesmo depois de eleito, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não tomaria posse e de que ele, Cid, continuaria em seu cargo à frente do EA. Na avaliação da Comissão, tal expectativa pode ser lida a partir da ruptura institucional que, na ocasião, articulava-se em setores militares e que culminou na tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023. A reforçar essa constatação, está a visita de Cid ao acampamento golpista situado em frente ao QG do Exército, em Brasília, em 3 de dezembro de 2022, acompanhado de dois funcionários do escritório de Miami. Esses funcionários – um deles já demitido da ApexBrasil – são apontados como os servidores mais próximos do general no EA Miami, destacados para prestar serviços pessoais, inclusive na residência de Lourena Cid na cidade, em claro desvio de função. Segundo a Comissão, com o desvio de função e a presença em local onde se articulava um movimento golpista, esses funcionários também feriram normativos da Apex, como o Código de Ética, que consagra os princípios de impessoalidade, moralidade e legalidade como pilares.

Exame da atuação do general Mauro Cid na chefia do escritório de Miami denota afastamento das atividades de negócios.

A análise da agenda de trabalho, dos depoimentos e documentos levou os integrantes da Comissão a apontar um “comportamento desviante” do general Mauro Cid em relação às atribuições inerentes à função de General Manager de um escritório da ApexBrasil no exterior. Além de apontar “baixo perfil” da agenda de Mauro Cid, as oitivas confirmam afastamento das atividades de negócios – missão precípua da representação da Agência em Miami. Jamais fez proposições voltadas à exportação ou captação de investimentos. Não solicitou relatórios, tampouco avaliou resultados. Segundo relatos unânimes, o general aprovava todas as propostas levadas a ele, sem aprofundar conteúdos, sugestões ou reparos. Os relatos apontaram indícios de que teriam sido recebidos por ele, fora da agenda oficial e repetidas vezes, empresários e representantes de empresas que jamais passaram a ser clientes da Apex dentro dos processos normais do portfólio do escritório.

Agravante: a condição de “anexo consular” do escritório da Apex em Miami na gestão de Lourena Cid.

De forma inédita em relação aos demais escritórios da Apex no exterior, o EA Miami recebeu, após negociação do governo Bolsonaro com o Departamento de Estado dos EUA, a condição diplomática de “anexo consular”. Ela dá aos dirigentes do escritório benefícios e imunidades concedidas a diplomatas, como por exemplo maiores facilidades para obtenção de vistos. A Direção da ApexBrasil já iniciou tratativas junto ao Ministério das Relações Exteriores para rever esse status.

Médico de Bolsonaro, Ricardo Camarinha, era funcionário fantasma.

As apurações da Comissão confirmaram notícias publicadas na mídia sobre a contratação, pelo EA Miami, do médico de Jair Bolsonaro, que segundo relatos colhidos, foi imposto à equipe, contratado pela sede em Brasília e expatriado por meio de instrumentos de excepcionalidade (memorando, portaria e carta oferta) em abril de 2022. O médico não desenvolvia qualquer atividade profissional que mantivesse ligação com o cargo de assessor, e nem frequentava as dependências do escritório. O fato configura uma contratação fraudulenta.

Impacto da gestão Lourena Cid no EA Miami.

As apurações apontam ainda que a negligência do general Lourena Cid em suas funções à frente do EA Miami, com a ausência de instrumentos de controle do trabalho da equipe, de reuniões de avaliação e de relatórios qualitativos, acabou por instaurar no local um padrão de desídia e disfuncionalidade. Foram identificados, entre outros fatos, a desobediência às Instruções Normativas da Agência sobre home office e teletrabalho, a falta de controle de frequência ou acesso ao escritório. Também a gestão, o relacionamento e a fiscalização sobre empresas brasileiras incubadas no EA Miami foram negligenciados.

Além de fornecer elementos que podem auxiliar em investigações e processos em curso, as conclusões do trabalho da Comissão Extraordinária serão enviadas às autoridades competentes (STF, TCU e PF) para análise das evidências do cometimento de eventuais ilegalidades, entre desvios de função, condutas desidiosas, crime de peculato e outros delitos.

Em nome do zelo pela boa governança e do respeito à institucionalidade, a Diretoria da ApexBrasil prossegue na apuração e no exame de desdobramentos, desvios e eventuais irregularidades relacionados ao escritório de Miami. Novas providências poderão ser tomadas após a continuidade do processo de apuração e responsabilização, inclusive o desligamento de colaboradores.

A Direx decidiu ainda fazer uma intervenção no escritório de Miami, designando temporariamente para seu comando servidora da Agência qualificada e experiente, com a missão de avaliar todos os aspectos de sua funcionalidade operacional e negocial e propor completa reestruturação. Este trabalho encontra-se em fase de conclusão.

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