Auxiliar de Alexandre Moraes sugere em áudios estratégia para evitar uso descarado do TSE
O juiz instrutor Airton Vieira, principal assessor de Alexandre de Moraes no Supremo Tribunal Federal, demonstrou em áudios a preocupação com a forma de atuação dos gabinetes do ministro no STF e no TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Ele se refere ao modelo que vinha sendo usado para a solicitação e produção de relatórios que depois embasavam decisões do ministro contra bolsonaristas no inquérito das fake news durante e depois da campanha eleitoral de 2022.
Duas mensagens enviadas em 10 de outubro de 2022 por Airton Vieira a Eduardo Tagliaferro, perito forense e então chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação do TSE, mostram o receio de que algo viesse a público.
“Formalmente, se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada, digamos assim. Como um juiz instrutor do Supremo manda [um pedido] pra alguém lotado no TSE e esse alguém, sem mais nem menos, obedece e manda um relatório, entendeu? Ficaria chato”.
Mensagens trocadas entre Airton Vieira e Tagliaferro mostram que o ministro transformou o setor de combate à desinformação do tribunal eleitoral durante sua presidência em um braço investigativo de seu gabinete no Supremo.
O material obtido pela reportagem tem origem em fontes com acesso legal a dados de um telefone que contém as mensagens, não decorrendo de interceptação ilegal ou acesso hacker.
Procurados por meio da assessoria do STF, o ministro Alexandre de Moraes, os juízes Airton Vieira e Marco Antônio Vargas e a chefe de gabinete Cristina Gomes não responderam.
Tagliaferro afirmou que não se manifestará, mas que “cumpria todas as ordens que me eram dadas e não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade”.
No áudio de 10 de outubro de 2022, entre o primeiro e o segundo turnos das eleições, Airton Vieira cita a necessidade de passar a dizer que o pedido de produção do relatório tinha como origem o TSE e não o gabinete do STF.
Na ocasião, Airton Vieira já havia feito alguns pedidos para Tagliaferro, atendidos com a produção de relatórios em que constavam o timbre do STF. Ele, então, encaminha uma mensagem pedindo um relatório solicitado dias antes.
Como resposta, Tagliaferro envia um relatório sobre um vídeo postado pelo “Grupo Brasil Conservador” com ataques à lisura das urnas eletrônicas.
O documento tem como timbre o nome do “Supremo Tribunal Federal”, seguido da descrição: “Relatório Técnico 10/10/2022”. Ele replica prints do vídeo e do grupo onde foi compartilhado. “Por favor, veja se está ok”, diz Tagliaferro.
Na resposta ao assessor do TSE, dividida em dois áudios, Airton Vieira pede a mudança da autoria do documento, como forma de esconder a origem da sua produção.
No primeiro áudio, de 1 min e 40 segundos, o juiz instrutor afirma ter conversado com a “Cristina” sobre a necessidade de substituição de “Supremo Tribunal Federal” por “Tribunal Superior Eleitoral” no timbre dos documentos.
Ele prossegue dizendo que a produção deveria ser atribuída a “ordem do dr. Marco Antônio”, com a indicação do processo 4.781, o número do inquérito das fake news no STF.
A menção é a Cristina Yukiko Kusahara Gomes, chefe de gabinete de Moraes no STF, e a Marco Antônio Martins Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE.
“Atualmente, o ministro passa por uma fase difícil, qualquer detalhe, qualquer peninha pode virar amanhã ou depois mais um objeto de dor de cabeça para ele”, diz Airton Vieira no áudio enviado a Tagliaferro.
“Para todos os fins, fica de ordem dele, do dr. Marco [do TSE], que ele manda enviar pra gente [no STF] e ai, tudo bem. Ninguém vai poder questionar nada, etc, falar de onde surgiu isso, caiu do céu, a pedido de quem, etc.”, prossegue o juiz instrutor de Moraes.
Cerca de dois minutos depois, o juiz Airton Vieira manda outro áudio, de 1 minuto e 20 segundos, em que dá mais detalhes sobre as orientações.
Segundo ele, o modelo a ser seguido a partir de então fora debatido entre a chefe de gabinete Cristina Gomes e outro assessor de Moraes no STF, Jefferson Silva.
“Em um primeiro momento pensei em colocar o meu nome, de ordem do juiz Airton Vieira, etc etc. Mas, pensando melhor, fica estranho. Porque eu não tenho como mandar pra você [Tagliaferro], que é lotado no TSE, um ofício ou pedir alguma coisa e você me atender sem mais nem menos”, afirma.
A seguir, Airton Vieira detalha como seria o formato correto para solicitar relatórios e monitoramentos para a assessoria comandada por Tagliaferro. “Eu teria que mandar um ofício ao presidente do TSE, pedindo para que ele repassasse essa ordem para você, para que você, aí, me atendesse”, diz.
Em seguida, o juiz instrutor de Moraes indica ter ciência da irregularidade dos pedidos diretos que fazia a Tagliaferro para envio dos relatórios posteriormente utilizados para embasar medidas cautelares contra bolsonaristas.
“Ficaria chato”, diz o juiz instrutor, se descobrissem a forma como os dois estavam atuando.
“Embora saibamos que entre nós as coisas são muito mais fáceis justamente porque temos um mínimo múltiplo comum na pessoa do ministro [Alexandre de Moraes], mas eu não tenho como, formalmente… Se alguém for questionar, vai ficar uma coisa muito descarada, digamos assim”, afirma.
“Como um juiz instrutor do Supremo manda pra alguém lotado no TSE, esse alguém sem mais nem menos obedece e manda um relatório, entendeu? Ficaria chato”.
Três dias depois, em 13 de outubro, os dois voltam a falar sobre relatórios e o juiz instrutor cita novamente o receio de “questionamentos futuros” ao solicitar o envio das informações por ofícios assinados pelo juiz Marco Antonio Vargas, que atuava no gabinete de Moraes no TSE.
“O ministro pediu que daqui pra frente todos os relatórios, ele quer que venham acompanhados dos respectivos ofícios de encaminhamento. Especialmente esses mais delicados, para que se evite qualquer questionamento futuro. Ele quer procedimentalmente tudo em ordem”, diz Airton Vieira.
Também dias depois, em 19 de outubro, Airton faz um novo pedido para produção de um relatório sobre o pastor André Valadão. “Como combinamos? De origem do Dr Marco?”, questiona Tagliaferro.
Em seguida, o juiz instrutor de Moraes no STF reforça o modelo a ser seguido e cita a chefe de gabinete de Moraes, Cristina Yukiko Kusahara Gomes, como autora da sugestão de seguir o formato que esconde a real origem do pedido para produção do relatório.
“Sim. Enviando o setor de [combate à] desinformação para nós. Em razão da situação atual, a Cristina entende melhor que as nossas PETS [petições por meio das quais Moraes ordena medidas via STF] surjam por provocação, com algum documento”, afirma Airton Vieira.
De outubro de 2022, data dos áudios, até de abril de 2023, o principal assessor de Moraes continuou a solicitar diretamente a Tagliaferro o monitoramento de redes e produção de relatórios contra bolsonaristas.
Em todos os casos, Tagliaferro, de acordo com as mensagens obtidas pelo jornal Folha de S.Paulo, seguiu as ordens do juiz instrutor e encaminhou os relatórios, com seus respectivos ofícios, como se tivessem sido produzidos a pedido do juiz auxiliar Marco Antônio Vargas e com o timbre do TSE.
Fabio Serapião/Glenn Greenwald/Folhapress