Pressão de Lula por petróleo ignora mangues sensíveis e explosão de vida que sustenta pescadores

 

Existe uma explosão de vida onde começa o litoral do Brasil. O relógio marca 5h58 e o silêncio no rio Oiapoque é quebrado por uma revoada de milhares de papagaios, de quatro espécies distintas, que deixam a ilha do Papagaio —um dormitório das aves— atrás de comida.

Mais adiante, na ponta do Parque Nacional do Cabo Orange, o ponto extremo do Amapá que invade o oceano Atlântico, bandos de maçaricos estão em sua primeira parada em território brasileiro, após voarem a América para o cumprimento de impressionantes ciclos biológicos. Nas margens de mangues ricos em sedimentos, eles esperam a maré baixar para comer crustáceos e insetos.

O barco do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação e Biodiversidade) ancora em um ponto no rio para que dois técnicos prossigam em caiaques para contagem de maçaricos, garças-brancas, guarás, colhereiros e batuíras. É possível avistar uma fila de barcos pesqueiros na foz do rio Oiapoque. Há dezenas no caminho, rumo ao mar aberto para jornadas de 15 dias.

Os 590 km de litoral por onde se estende o Cabo Orange são um gigante berçário de peixes, uma área de mangue e floresta que garante a sobrevivência de milhares de pescadores. Eles trafegam o tempo todo por água doce e salgada. É uma cadeia em que tudo se conecta, e que desconhece fronteiras. A margem do país do outro lado do rio, a Guiana Francesa, também é berçário de peixes.

Duas certezas e uma dúvida martelam na cabeça de quem monitora, conhece de perto, vivencia ou depende dessa explosão de vida para a sobrevivência.

A primeira certeza compartilhada na região: a exploração de petróleo na bacia Foz do Amazonas, a 160 km do Cabo Orange, vai ocorrer, e não há mais expectativa de que o projeto do chamado bloco 59 seja barrado de alguma forma, diante da pressão feita pela Petrobras e pelo presidente Lula (PT).

A segunda: um derramamento de óleo e um toque na costa seriam desastrosos, com danos irreversíveis à vida no lugar, tamanha a sensibilidade e a conexão de sistemas biológicos e cadeias produtivas.

A dúvida ainda sem resposta é sobre o tamanho do risco de um vazamento chegar à costa brasileira, mais especificamente à costa amazônica, onde começa o litoral.

A Petrobras usa modelagens feitas em 2015 e em 2022 e diz que esse toque não ocorreria no Brasil, mas em outros oito países, pois o óleo seguiria rumo a ilhas do Caribe -embora algum toque possa ocorrer na vizinha Guiana Francesa.

As discordâncias sobre o que diz a Petrobras são múltiplas. Estudos científicos independentes, MPF (Ministério Público Federal), lideranças indígenas e de pescadores da região e gestores do ICMBio que cuidam do Cabo Orange afirmam que, em caso de vazamentos, pode haver transporte de óleo até a costa brasileira.

Seria um movimento semelhante ao de objetos perdidos no mar, arrastados para a costa, na altura de Oiapoque (AP), pela dinâmica das correntezas. Isso já ocorreu com restos de um foguete e de um barco.

“Já apareceram um foguete e um barco no parque, depois de percorrerem mais do que o dobro da distância do que seria o ponto da plataforma [do bloco 59]”, afirma Ricardo Motta, analista ambiental do ICMBio, responsável pela gestão do Parque Nacional do Cabo Orange. A relação de Motta com o Cabo Orange já dura mais de 20 anos.

“O litoral aqui é totalmente plano, com bastante sedimento dos rios. Quando a maré entra, ela adentra quilômetros. A sensibilidade desse litoral é máxima, não há nada mais sensível do que isso, e milhares de famílias dependem dessa dinâmica”, diz o gestor ambiental. “Se tiver manchas de óleo, isso vai grudar [nas áreas de mangues], não vai escorrer.”

Não há estudos e modelagens definitivos que permitam dizer que, em caso de um vazamento de óleo, a costa brasileira estaria a salvo.

Mesmo assim, a Petrobras e o governo Lula pressionam para que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) conceda a licença necessária para a pesquisa de petróleo.

Em maio de 2023, o órgão ambiental negou a licença, e a estatal recorreu. Desde então, Lula já deu declarações diversas que apontam o desejo de explorar esse ponto da margem equatorial.

No último dia 2, numa tentativa de destravar a licença, a Petrobras comunicou ao Ibama uma revisão do plano de proteção à fauna na costa amazônica, em caso de vazamentos. A estatal incluiu uma “unidade de estabilização e despetrolização” de animais em Oiapoque, cidade mais próxima do bloco 59 do que Belém, onde já existe uma base de apoio.

Isso dará mais “robustez à capacidade de resposta em emergências”, disse a empresa, em nota. “A Petrobras já perfurou mais de 3.000 poços em águas profundas sem ocorrência de qualquer acidente com danos ambientais. A possibilidade de haver um evento de vazamento é remotíssima.”

Em Oiapoque, no extremo norte brasileiro, funcionários da Petrobras com o tradicional uniforme laranja lembram aos moradores que um empreendimento de petróleo está em curso na região.

O local de trabalho de um grupo de cinco homens uniformizados –incluídos terceirizados– é o aeroporto da cidade, onde uma base foi montada para dar suporte ao que pode ser a futura plataforma em alto-mar.

Desde 2022, um grupo bem maior esteve mobilizado na cidade, pronto para ações relacionadas à perfuração, como uma simulação de vazamentos. Depois que a licença foi negada pelo Ibama, os voos diários ao local do bloco 59 foram praticamente interrompidos.

O pequeno grupo permanece em Oiapoque, para cuidar da base montada. Entre eles, há a expectativa de que a prospecção de óleo não vai tardar. Têm sido frequentes reuniões na base montada no aeroporto, o que envolve militares nessa área de fronteira.

Técnicos da Petrobras percorrem os pontos em terra mais próximos da área a ser explorada, como o Cabo Orange, em busca de respostas sobre a dinâmica do lugar, em caso de derramamento de óleo. Até agora, não encontraram respostas suficientes, nem ouviram quem está acostumado aos ciclos diários de marés e a um movimento de expansão –de até 2 m por ano– dos mangues.

As paisagens mudam muito rápido. Em um caiaque, usado para aproximação da margem onde não é possível caminhar e onde estão milhares de aves se alimentando, a bióloga Vivian Rosana da Silva, 36, e o médico veterinário Alexandre Bastos Fernandes, 54, iniciam a contagem dos animais. Em minutos, o caiaque atola na lama, com a descida da maré.

É necessário resgatar os dois profissionais, trabalho conduzido pelo gestor do parque Cabo Orange, que está no barco principal. Três horas depois, todos conseguem regressar ao barco, com lama dos pés à cabeça. A maré já iniciava sua subida.

“O perigo dessa maré subindo são as arraias voltando”, diz Vivian, aliviada de estar de volta ao barco. Ela afirma ter identificado quatro espécies de maçarico e três de batuíra. “Todos esses registros de aves são novos para mim.”

Os ciclos das marés influenciam a vida de boa parte dos 12 mil indígenas, de quatro etnias, que vivem em três territórios demarcados na região de Oiapoque. Esses indígenas foram ignorados pela Petrobras e não houve um processo de consulta às comunidades –são 66 aldeias ao todo.

“É como se nem existíssemos”, diz Edmilson dos Santos Oliveira, 45, coordenador do conselho de caciques dos povos indígenas de Oiapoque. “No começo do ano passado, técnicos da Petrobras fizeram uma reunião com caciques e disseram que uma pesquisa seria feita para constatar a existência de petróleo. Foram muitas palavras técnicas. Não entendemos quase nada.”

Os karipunas, palikurs, galibis marworno e galibis kali’na têm um protocolo de consulta pronto desde 2019. “Eles repetem que o impacto será zero. E batemos o pé. Os rios são ditados pelas marés, que chegam até as aldeias. E nossa costa é mangue. Se entrar petróleo, não tem como limpar”, diz o coordenador do conselho de caciques.

Segundo a Petrobras, a consulta não se aplica na fase de perfuração de poços para pesquisa e identificação de petróleo.

O rio Curipi não deságua no oceano. Antes ele encontra o rio Uaçá, que segue para o mar. Em aldeias da região do Curipi, estão 900 famílias, que se adaptam aos ciclos de marés, especialmente na seca, quando são mais intensas.

A paisagem ao longo do Curipi é distinta do caudaloso Oiapoque. Têm planícies alagadas, igarapés que conectam as aldeias, horizontes de buritizais e açaizais.

Na seca, os igarapés desaparecem, e os efeitos das marés são mais danosos. A água fica salgada e barrenta a partir de outubro.

“Às vezes, o peixe fica ‘bêbado’ ou morre. Só se acostuma a partir de janeiro”, diz o karipuna Martinho Júnior dos Santos, 38, cacique da aldeia Açaizal, no caminho do Curipi rumo ao Uaçá.

O manejo do açaí, a pesca e a caça são as principais fontes de sustento das comunidades. O efeito das marés salga até a água do poço usado pela aldeia.

“Se tiver a exploração de petróleo, a gente sabe que vai sentir o impacto, porque todo dia voava helicóptero aqui”, afirma Santos.

“E se algo der errado, eu penso que vamos ser a segunda comunidade a sentir os efeitos. A primeira vai ser o Encruzo.”

O Encruzo é um lugar de uma família só. São 11 galibis marworno, que se mudaram para a área há três anos. É onde o Curipi encontra o Uaçá, que corre para o mar -o Atlântico está a 30 minutos do Encruzo, num barco de potência média.

“Da foz até aqui, somos os primeiros”, afirma Gleison dos Santos Silva, 25, que vive no Encruzo com os pais, quatro dos sete irmãos, mulher e filhos. “Quando surgiu essa conversa de petróleo, a gente ficou preocupado. Se o petróleo vier até aqui, como a gente fica? Não vamos poder jogar uma rede. E vai afetar nosso açaí.”

Defendido por Lula e por políticos de diferentes matizes, dentro e fora do Amapá, o petróleo na costa amazônica provoca ondas migratórias antes mesmo de existir uma prospecção do poço. Oiapoque não é a mesma cidade de antes: há as ocupações que cresceram de forma desordenada nas imediações do aeroporto.

A ocupação Areia Branca está na estrada de terra que leva ao aeródromo, a poucos minutos da entrada principal. Expandiu como nunca em 2023 e em 2024, na esteira da expectativa sobre o petróleo.

“Meu irmão foi na minha cidade, no Pará, e me chamou. “Bora lá, porque Oiapoque vai ser bom de ganhar dinheiro, a Petrobras está indo para lá”. Aí a gente veio”, diz Ednalva Feliciano, 53, recém-chegada ao Areia Branca com o marido e uma filha. Eles repetem o movimento de outras 300 famílias do Areia Branca. Ao lado, outra ocupação, Nova Conquista, se confunde com a floresta.

Até bem pouco tempo atrás, esse fluxo de gente de outros lugares na região de Oiapoque, nessa intensidade, se dava apenas no mar e nos rios. Pescadores de diferentes estados, principalmente do Pará, buscam a região para a pesca de uritinga, gurijuba, pescada-amarela e pescada-gó.

São comuns os conflitos com pescadores locais e invasões de espaços proibidos para pesca no parque Cabo Orange e na Guiana Francesa. Barcos de diferentes portes, dos mais simples aos mais equipados, cruzam o rio Oiapoque o tempo todo. O principal destino do peixe é o Pará.

“Para o município, o petróleo pode gerar renda com royalties. Para os pescadores, pode ser um risco muito grande. Nossa sobrevivência depende do oceano”, afirma Joelso Mendonça, 48, que integra a colônia de pescadores de Oiapoque.

Dois de cinco filhos seguiram o mesmo caminho e passam longas jornadas em alto-mar. Cerca de 300 pescadores estão vinculados à colônia. Outros milhares, direta e indiretamente, atuam na atividade.

Em dezembro de 2011, quando a Petrobras tentava prospectar petróleo em um poço vizinho do atual empreendimento, um acidente interrompeu a iniciativa. Houve danos em equipamentos e vazamento de óleo hidráulico. O projeto foi abandonado de vez em 2016.

Não houve transparência por parte da estatal sobre o que ocorreu. A gestão do parque Cabo Orange foi avisada do acidente pela França. A Petrobras deu detalhes aos gestores em janeiro de 2013, mais de um ano depois do acidente e em resposta a uma cobrança por explicações.

“No dia 23/12/2011, a perfuração do poço Oiapoque foi interrompida devido ao rompimento da junta flexível posicionada acima do ‘riser’ (tubulação que liga o poço à plataforma de perfuração)”, afirmou a Petrobras no ofício. “Imediatamente após o rompimento, o dispositivo de prevenção de descontrole foi acionado, fechando completamente o poço.”

A estatal afirmou, em nota, que não houve dano ao meio ambiente ou acidente com pessoas, e que a sonda escolhida para operar no bloco 59 é de última geração.

A empresa disse que mapeou todas as áreas sensíveis e protegidas, o que inclui o Parque Nacional do Cabo Orange. “A Petrobras opera na região amazônica desde 1986, com o polo de produção de óleo e gás em Urucu, a 600 km de Manaus. A empresa fomenta estudos e mapeamentos socioambientais na região desde antes de iniciar suas operações.”

Técnicos da Petrobras buscam comunidades influenciadas pelas marés para convencê-las sobre a viabilidade do projeto.

Em Taparabu, a comunidade de pescadores mais próxima da foz do rio Oiapoque, moradores dizem que funcionários da estatal prometeram transformar o lugar num entreposto para a plataforma de petróleo. E trocar os postes, fiação e casas de força. O local, tradicionalmente, é um ponto de parada de barcos de pesca, que buscam ali água potável.

A comunidade está no meio do caminho entre o parque Cabo Orange e Oiapoque. No percurso de volta para a cidade, com a noite se avizinhando, o barco do ICMBio faz uma parada numa das áreas de mangue. Espera a maré subir mais um pouco, o suficiente para a embarcação conseguir chegar até uma siriúba, espécie de planta dominante no parque.

Motta, o gestor da unidade de conservação, quer mostrar a sensibilidade da siriúba e dos seus pneumatóforos, que crescem na vertical, a partir das raízes, para a troca de gases.

“Daqui para dentro é tudo siriúba, que forma tapetes de pneumatóforos”, diz o técnico do ICMBio. “Se tiver mancha de óleo, isso aqui sufoca tudo. E acaba.”

 

Vinicius Sassine e Lalo de Almeida/Folhapress

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