‘Toca Raul’: o ‘maluco beleza’ que misturou rock americano com baião
Dois dias depois do lançamento de seu décimo-quinto disco, A Panela do Diabo, Raul Seixas foi encontrado morto sobre sua cama, por volta das 8h da manhã, em seu apartamento em São Paulo.
Era 21 de agosto de 1989 e o músico, um dos maiores da história do Brasil, tinha apenas 44 anos. Alcoólatra e diabético, não havia tomado insulina na véspera. Oficialmente, morreu de parada cardíaca após uma pancreatite fulminante.
Com músicas como Capinteiro do Universo e Pastor João e a Igreja Invisível, o disco vendeu 150 mil cópias e rendeu ao artista um póstumo disco de ouro.
Debilitado, Raul Seixas estava longe do auge experimentado na década anterior — mas já havia conquistado seu lugar na música.
Trinta e cinco anos depois, suas composições ainda embalam festas e rodinhas de violão, fazem a cabeça de jovens e o “toca Raul” virou um sonoro pedido com contornos de meme.
Para especialistas no cancioneiro seixeano, a eternidade do artista é decorrente da capacidade poética que ele tinha de se fazer entendido por todo tipo de pessoa, trafegando por gêneros, estilos e temas.
“Raul tinha uma proximidade legítima com as ruas, com o povo, com as aflições brasileiras”, analisa o jornalista e crítico musical Jotabê Medeiros, autor da biografia Raul Seixas: Não Diga Que a Canção Está Perdida.
“Isso dotou sua música de uma característica de diagnóstico das mazelas nacionais, assim como carregou para as letras uma linguagem que é imediatamente compreendida por todo o espectro da população, seja por garis, playboys, hippies, sambistas, dodecafonistas, cirurgiões do [hospital Albert] Einstein e seguranças de inferninho.”
Para Medeiros, estas condições se tornaram o “passaporte para a eternidade” do músico.
“Combinar o rock de Elvis com o baião foi a fórmula certa para ele chamar a atenção do público e da mídia”, comenta o escritor e tradutor Vitor Cei, professor de literatura na Universidade Federal do Espírito Santo e autor do livro Novo Aeon: Raul Seixas no Torvelinho do Seu Tempo.
“Esse sincretismo, que não é exclusividade dele, pois já existia no Tropicalismo, é um legado estético. O legado ético de Raul Seixas para as gerações futuras foi registrado por ele na canção-testamento Geração da Luz [de 1984], escrita em parceria com Kika Seixas [que foi sua quarta companheira, com quem esteve junto de 1979 a 1984]: ‘Meu testamento deixo minha lucidez/ Vocês vão ter um mundo bem melhor que o meu!’.
“A obra de Raul Seixas permanece importante por sua força imaginativa, utópica, por sua expressão e percepção das possibilidades que permeiam a vida contemporânea”, completa Cei.
Autor de, entre outros livros, ‘História da Música Popular Brasileira Sem Preconceitos’, o jornalista, escritor e historiador da música Rodrigo Faour define Raul Seixas como “um de nossos roqueiros mais interessantes e originais”.
“Ele foi, mesmo sem querer sê-lo com esse rótulo, um roqueiro ‘tropicalista’. Porém menos conceitual e mais popular do que Os Mutantes e aquela turma. Tropicalista porque misturou brega e chique, rock com baião, xaxado, embolada, bolero, twist, sons de terreiros e outras levadas”, contextualiza.
“Às vezes foi paródico, além de costurar letras bastante ousadas e vanguardistas. A diferença é que o fez com uma linguagem musical e poética menos rebuscada e mais popular, mesmo que com alguns experimentalismos e fusões, com mensagens diretas e bem humoradas.”
Para o músico, compositor e diretor de arte Bruno Leo Ribeiro, do podcast Silêncio no Estúdio, a genialidade de Raul está materializada no fato de que “qualquer disco” dele “parece uma coletânea”, de tantos hits.
“São músicas simples, com melodias memoráveis e letras que são o puro suco da brasilidade. Acho que soma tudo isso com um certo ar misterioso. De um artista que, infelizmente, não está mais por aqui há muito tempo. E ele passa esse carisma leve e divertido que muita gente busca na música.”
“Misturar rock com blues, folk, country e ritmos nordestinos foi uma grande sacada. Ele sabia que precisa se diferenciar. Não bastava pra ele só pegar as referências dos […] Estados Unidos, ele queria mais. Por isso ele foi um inovador”, completa Ribeiro.
Biografia
Raul Santos Seixas nasceu em 28 de junho de 1945 em uma família de classe média de Salvador. Seu pai era engenheiro e a mãe, dona de casa. Na adolescência, era um mau aluno, mesclando sofrível desempenho escolar com queixas por comportamento.
Aos 11 anos, por exemplo, fundou com os amigos um grupinho batizado de Club dos Cigarros. Era comum que ele matasse aulas para ficar ouvindo rock em uma loja de discos que frequentava na cidade.
Em 1959, com um amigo, criou uma gangue chamada Elvis Rock Club. O grupo fazia arruaças pela cidade, quebrando vidros de casas e arrumando encrencas. O visual dos membros incluía um topete à Elvis Presley (1935-1977) e mascar chicletes era um hábito constante.
A rebeldia escolar não se refletia na ojeriza à leitura. Ao contrário, a vasta biblioteca mantida por seu pai era uma válvula de escape. O garoto crescia e sonhava um dia ser um escritor, mirando no sucesso do também baiano Jorge Amado (1912-2001).
Mas a música acabou falando mais alto. Se na hora de ouvir ele era eclético — era difícil o dia que não escutasse o baião de Luiz Gonzaga (1912-1989), por exemplo —, sua inspiração era o rock americano.
Caprichava no rebolado e gastava o inglês em tentativas de imitação. Até que em 1963 fundou com amigos a banda Relâmpagos do Rock, depois rebatizada como The Panthers.
“Raul era nordestino. Tinha a formação musical do Nordeste, ouviu Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Cego Aderaldo nas feiras e nas ruas. Mas tinha também uma vontade feladaputa de ser americano, como cantou Caetano”, comenta o biógrafo Medeiros. “Sabia que não havia impedimento em ser as duas coisas.”
Na canção ‘Rock ’n’ Roll’, ele cantaria que “há muito tempo atrás, na velha Bahia/ eu imitava Little Richard e me contorcia/ as pessoas se afastavam pensando/ que eu tava tendo um ataque de epilepsia”.
“Acredito que ele foi o mais bem-sucedido em sua transposição do rock preto norte-americano para o ‘sertão’ urbano das metrópoles brasileiras”, acrescenta o jornalista. “Ele descobriu que só faria isso se tivesse autoridade, se vestisse essa personalidade. E assim foi.”
Em 1968 saiu o único disco dessa formação inicial, chamado Raulzito e os Panteras. O LP foi um fracasso e, já morando no Rio e precisando se manter, Raul Seixas passou a trabalhar como produtor musical na gravadora CBS Discos.
Mais próximo do universo musical, ele passou a ser conhecido por colegas. Teve canções gravadas por ídolos da Jovem Guarda, como Jerry Adriani, Odair José e Renato e Seus Blues Caps.
“Muito se fala das suas músicas e discos, mas o Raul foi um grande produtor. Ele fez parte e ajudou discos de artistas como Jerry Adriani, Leno e Lílian, Zé Roberto, Renato e Seus Blue Caps, Balthazar, Diana e muitos outros”, pontua Ribeiro.
“Muitos falam em tom de deboche que ele copiava trechos de músicas, mas todo mundo faz isso. Só que ele não deixava isso em segredo. Ele foi um dos roqueiros que mais souberam a arte de copiar como um artista.”
Em 1971, engrenaria em outro projeto autoral — mal-sucedido —, em parceria com o músico e amigo Sérgio Sampaio (1947-1994): o caótico disco Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10, um misto de Frank Zappa (1940-1993) com o cultuado Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles.
Sua sorte começa a mudar a partir de 1972. Nesse ano, ele participou do Festival Internacional da Canção, chegando à final. O sucesso lhe rendeu um contrato com a gravadora Philips. No ano seguinte, ele lançaria seu primeiro disco com boa repercussão e vendagem: Krig-ha, Bandolo!, com hits como Ouro de Tolo, Metamorfose Ambulante, Mosca na Sopa e Al Capone.
Nessa mesma época ele começou a se interessar por ufologia e ficou amigo do escritor Paulo Coelho, que se tornaria seu mais importante parceiro. Ambos fundariam em 1974 a Sociedade Alternativa, baseada nos preceitos do ocultista britânico Aleister Crowley (1875-1947).
Cei conta que, encantado desde a infância por essa fase de Raul Seixas, ele decidiu “estudar filosofia e cursar uma graduação na área”. “Nas aulas de Filosofia da Ciência, quando estudamos o período em que a ciência passou a dividir seu espaço com práticas esotéricas, como magia, tarô e astrologia, percebi que coincidia com a época e a proposta de Aleister Crowley, o autor que mais influenciou Raul”, diz.
Esse foi o mote de seu mestrado, defendido em 2009, que se tornaria livro depois lançado por ele: uma pesquisa cruzando as letras das músicas de Raul com a obra de Crowley, contextualizando na história, na filosofia e na teoria literária.
Voltando a Raul, os princípios dessa estranha filosofia passaram a nortear o dia a dia do músico, com mensagens nas letras, em seus shows e o divulgado plano de comprar um terreno em Minas Gerais para construir a sede de uma pretensa comunidade de adeptos.
Mas eram tempos de ditadura no Brasil. Tais mensagens passaram a chamar a atenção da censura. Raul Seixas e Paulo Coelho foram presos e torturados pelo Departamento de Ordem Política e Social (Dops). Eles acabaram se exilando nos Estados Unidos.
Voltaram ao país ainda em 1974, no embalo do sucesso do LP Gita que, com 600 mil unidades vendidas, foi o maior sucesso comercial de sua carreira. Nos anos seguintes sairiam os discos Novo Aeon e o Há Dez Mil Anos Atrás — com isso, encerraram-se tanto o contrato dele com a Phillips como a parceria com Coelho.
O fim da década de 1970 coincide com a decadência musical e física de Raul, cada vez mais afundado no alcoolismo. Ele chegou a perder um terço do pâncreas e suas crises com a bebida se tornaram cada vez mais recorrentes.
O quadro se agravou ainda mais com o diagnóstico da depressão e o envolvimento com outras drogas. Até o fim da vida, o músico alternaria altos e baixos.
“Raul Seixas conhecia bem a indústria fonográfica e a indústria cultural como um todo, consciente da necessidade de apropriação desse instrumento para expressar a sua mensagem de uma Sociedade Alternativa. No meu livro, eu argumento que a fama levou ao fascínio, convertendo o Raul em guru da Sociedade Alternativa, profeta, messias, redentor e quase fundador de uma nova religião, o raulseixismo”, comenta Cei.
“Tal como os santos-mártires, seu sofrimento nos últimos anos de vida e sua morte repentina geraram a idolatria póstuma. Nesse sentido, os fãs de Raul tornaram-se órfãos de utopia. Foi-se o messias, horizonte desde onde se articulavam os ideais que prometiam uma Sociedade Alternativa.”
Legado
Trinta e cinco anos depois, a música de Raul segue viva. Ele deixou sua marca.
“Raul criou a música conceitual, híbrida de gêneros, nacional e planetária ao mesmo tempo, dessacralizadora e contestadora em amplitude filosófica, existencial. E não só para si, mas para toda a sua geração”, avalia Medeiros.
“É curioso notar que, hoje, tantos anos depois, ainda tem gente que não compreende Raul em sua dimensão libertária, emancipadora”, acrescenta o biógrafo.
“Tem muito fã de Raul reacionário, burro, de extrema direita, furibundo. É uma contradição bizarra. Mais ou menos como gente que lê a Bíblia e acredita que ela lhe confere autoridade para ser opressor, egoísta, careta e covarde. Um fenômeno típico dos nossos dias: cada um compreende as coisas conforme elas lhe convém, não conforme as coisas são.”