Foi mais ou menos assim que as cartas da princesa Leopoldina e do ministro José Bonifácio, entregues ao príncipe D. Pedro, em Sete de Setembro de 1822, percorreram centenas de quilômetros no lombo de cavalos, devidamente guardadas na bolsa do correio-geral Paulo Emílio Bregaro, escoltado pelo major Antônio Ramos Cordeiro. Ao menos, é nesse ritmo de roadtrip com tração nas quatro patas equinas, que a ficção imagina aquilo que a história oficial nem sempre consegue dar conta.
A Independência do Brasil e todo o contexto político, social e cultural do período em que nos separamos de Portugal, oferece um farto material para escritores, tanto nas publicações que o senso comum chama de ‘técnicas’, ou seja, os livros de História que apresentam os fatos sob a luz do conhecimento acadêmico; quanto para os autores de ficção, que tecem suas tramas a partir do cenário desenhado pelos eventos históricos.
A descrição da viagem que abre esse texto remete ao romance “Sete Dias em Setembro” (P55, 2023), do escritor e roteirista baiano Victor Mascarenhas. Para contar os sete dias que antecedem a declaração de ”independência ou morte”, o escritor se debruçou sobre uma vasta bibliografia da história oficial, mas com um olhar treinado para ler nas entrelinhas e nas crônicas de costumes do século XIX.
Trata-se de uma obra de ficção, mas com base em fatos reais e que mistura personagens inventados pelo autor com os protagonistas e coadjuvantes reais da luta pela independência. E é desse miudinho cotidiano e, muitas vezes, invisível para as questões maiores da História, que os escritores de romances retiram a matéria-prima que vai encorpar o molho da ficção. Os personagens inventados se assemelham aos tipos que formavam a sociedade brasileira no século XIX.
No caso do seu romance, Victor queria contar uma história que todo mundo já conhecia a partir dos seus atores coadjuvantes, como o correio-geral e o major que correm léguas para entregar as cartas a D. Pedro. Além deles, queria representar o povo brasileiro e seus anseios a partir dos personagens fictícios inseridos na narrativa.
“Quando escrevi o Sete Dias em Setembro, eu queria focar no lado humano, no lado dos personagens. Em princípio, no impacto de uma personalidade tão pitoresca quanto D. Pedro nas pessoas […] Eu já tinha a ideia do livro na cabeça, do que fazer, que era contar essa história através dos coadjuvantes, e as grandes descobertas eram esses coadjuvantes. Alguns eu conhecia e outros eu encontrei no processo”, revela o autor.
Reescrevendo a história
A própria História com agá maiúsculo vem passando a limpo diversos fatos e contextos, reanalisando dados e descobrindo novos ângulos para questões que pareciam pacificadas quando se fala na Independência, no Grito do Ipiranga e nas lutas posteriores à proclamação do príncipe.
Pesquisadores e autores de não-ficção também já perceberam que amenizar a linguagem e trazer um pouco do inusitado ajuda a tornar o conteúdo histórico mais estimulante, principalmente para as gerações mais novas, o que reflete na própria disseminação de conhecimento entre a população.
O jornalista e escritor Laurentino Gomes, autor de “1822” (Globolivros, 2010), livro-reportagem já considerado um clássico nacional que une fatos históricos e texto literário, lança mão dos recursos da narrativa ficcional para apresentar aos leitores de todas as idades os principais eventos ligados à Independência.
Em edição mais recente, revista e ampliada do livro, o autor atualiza os resultados da exumação dos restos mortais de D. Pedro e das imperatrizes Leopoldina e Amélia, ocorrida em 2012, a partir de pesquisa da arqueóloga e historiadora Valdirene do Carmo Ambiel, da Universidade de São Paulo (USP).
Após o sucesso de “1822”, o escritor seguiu na linha investigativa da História do país e lançou as continuações “1889”, sobre o reino de D. Pedro II, filho de D. Pedro e Leopoldina; e, “1808”, que narra a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Ou seja, a chegada do pai de Pedro e avô de Pedro II ao país nos anos que antecedem a separação da antiga colônia de sua metrópole.
Esse desembarque tumultuado, que aliás aconteceu aqui em Salvador, antes da mudança definitiva da Corte para o Rio de Janeiro, já rendeu bastante resenha tanto para a ficção quanto para a historiografia oficial.
Basta dizer que os pouco mais de 40 dias que a Corte portuguesa passou hospedada na Bahia resultaram até em famílias da aristocracia da época desalojadas de seus casarões coloniais, todos marcados com o selo do rei e requisitados para hospedar a enorme comitiva de nobres que fugiram para o Brasil com D. João, Carlota Joaquina e os filhos pequenos, após a invasão de Napoleão Bonaparte a Portugal. Só na Bahia se vê um grupo de barões sem-teto em nome do rei. Uma história de bastidor dessas, na mão de um autor de ficção, renderia, no mínimo, um ótimo conto.
A História e a literatura nem sempre andaram separadas e só começaram a se apartar no século XIX, mas por um breve período. Entre o final do século XX e no advento dos anos 2000, com historiadores/autores que viraram ícones pop, as duas firmaram um novo enlace sacramentado pela agilidade da linguagem da internet e das redes sociais. Um exemplo de historiadora/autora pop é Mary del Priori, pós-doutora e professora de instituições como a Universidade de São Paulo (USP) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Mary, entre outros livros, é autora de “A Carne e o Sangue. A Imperatriz D. Leopoldina, D. Pedro I e Domitila, a Marquesa de Santos;’ (Rocco, 2012).
O livro é uma acurada análise sobre a vida privada do primeiro casal imperial brasileiro e a amante mais famosa de Pedro I, que além de trazer os fatos confirmados pela História oficial, também pode ser lido como um belo novelão de época pontuado por intrigas palacianas, segredos de alcova e reviravoltas dramáticas.
Jornalismo literário
Quase um século antes de Victor Mascarenhas ficcionalizar a entrega das cartas que levaram Pedro a proclamar a independência ou Laurentino Gomes a detalhar a saga dos Bragança em sua trilogia iniciada com “1822”, o jornalismo dava sua contribuição para resguardar a memória da importância do Sete de Setembro. E, muitas vezes, também lançava mão de recursos literários e mesmo de escritores para essa tarefa.
No centenário da Independência, em 07 de setembro de 1922, A TARDE publicou um especial com 18 páginas com artigos de escritores e intelectuais da época sobre a data histórica. Entre os autores dos textos estavam Arthur de Salles, poeta e autor dos versos do Hino ao Senhor do Bonfim; e o engenheiro, geógrafo, escritor e historiador Theodoro Sampaio. A edição teve a sua capa, colorida e com uma ilustração artística, impressa nos Estados Unidos especialmente para a data. O exemplar é um dos itens do acervo do Cedoc – Centro de Documentação e Memória do jornal A TARDE.
No seu artigo para a edição histórica, Theodoro Sampaio escreve uma crônica, um dos gêneros jornalísticos que mais flertam com a literatura e a História presente, ou seja, enquanto ela acontece. E enfatiza que a independência aconteceu pelas aspirações do povo brasileiro em “governar a si mesmo”.
Mais adiante, ele lembra que além das celebrações oficiais, houve comemorações espontâneas do povo baiano e brasileiro pelos 100 anos de libertação: “O principe portuguez concretizou e concentrou na sua figura varonil as aspirações ardentes de todo um povo, há muito ansioso e cioso de se governar a si mesmo. […] As grandiosas solemnidades muito acertadamente decretadas pelo governo da república, a todas as comemorações officiaes que hoje se celebram, deverá juntar-se as manifestações expontâneas de todos os cidadãos”, escreveu.
Nos 150 anos da Independência, A TARDE traz na sua edição de 08 de setembro de 1972, a adesão da população aos desfiles cívicos e descreve que sob um “calor de 28 graus, dois mil integrantes das Forças Armadas, desfilaram para um público de 20 mil pessoas, na Avenida Centenário”.
O público assistiu ao desfile sentado no gramado que margeia a avenida, como registram as fotografias da época. Naquele dia, houve Te Deum na Catedral Basílica, no Centro Histórico, engarrafamento na Avenida Sete de Setembro, inaugurada em 1916, e os vendedores ambulantes ficaram satisfeitos com as boas vendas graças ao grande fluxo de gente participando da festa.
Com a pandemia de covid-19, os desfiles do Sete de Setembro ficaram dois anos sem ocorrer, já que todos os eventos com aglomeração pública estavam suspensos. Em 2022, A TARDE registrou a volta dos desfiles para o bicentenário da Independência e, mais uma vez, a presença da população nas ruas foi destaque na cobertura.
Para Victor Mascarenhas, que recheia seu romance com tipos populares que faziam parte da sociedade oitocentista brasileira, o Sete de Setembro de fato deveria ser uma data mais celebrada pelo povo, como já ocorre com o Dois de Julho. “Eu acho que a gente deveria tornar essa data popular, porque é uma conquista do povo brasileiro. Houve resistência na Bahia, no Rio de Janeiro, no Piauí, em vários lugares do Brasil e de brasileiros lutando para se tornarem um país independente de Portugal”, lembra.