Novo pacote antifeminicídio divide opiniões e ativista questiona aumento da punição como única via de combate

Por Camila São José

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Do BN

Em vigor desde o dia 10 de outubro, a Lei 14.994 — conhecida como Pacote Antifeminicídio — endureceu as penas aplicadas nos casos de violência doméstica e de gênero. Quem cometer feminicídio agora poderá ser condenado a até 40 anos de prisão e não mais 20 anos, se tornando maior do que a pena dos crimes de homicídio (12 a 30 anos). 

 

 

Anteriormente, o feminicídio era classificado como um crime de homicídio qualificado e com a nova legislação, o feminicídio se tornou um tipo penal independente. As penas para outros crimes também aumentaram caso cometidos em contexto de violência contra a mulher, a exemplo de lesão corporal, injúria, calúnia, difamação, ameaça e descumprimento de medidas protetivas. 

 

A proposta para a efetivação do Pacote Antifeminicídio é da senadora Margareth Buzetti (PSD-MT), e estabelece também circunstâncias agravantes para o crime, com o aumento da pena de um terço até a metade nos casos de feminicídio cometido durante a gestação, nos três meses após parto ou se a vítima é mãe ou responsável por criança; contra menor de 14 anos, ou maior de 60 anos, ou mulher com deficiência ou doença degenerativa; cometido na presença de pais ou dos filhos da vítima; quando é cometido em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha e no caso de uso de veneno, tortura, emboscada ou arma de uso restrito contra a vítima.

 

O maior rigor ainda foi aplicado em cima das saídas temporárias da prisão, as famosas “saidinhas”, já que a lei obriga aos condenados por crime contra mulher usar tornozeleira eletrônica. Os condenados também podem perder o direito a visitas íntimas e após a sentença proclamada, perder o poder familiar e a tutela dos filhos. 

Os agressores também são proibidos de serem nomeados, designados ou diplomados em qualquer cargo público ou mandato eletivo entre o trânsito julgado da condenação e o efetivo cumprimento da pena.

Mas o que tudo isso representa? Para o advogado Matheus Biset, especialista em Ciências Criminais e Direito Penal Econômico, é um sinal positivo. “Com toda certeza, a mudança na lei representa um avanço, considerável, ao combate do feminicídio”, afirma. 


Matheus Biset. Foto: Divulgação

Por outro lado, a advogada e diretora da Tamo Juntas, Letícia Ferreira, classifica o Pacote Antifeminicídio como preocupante. A recém-criada lei fez alterações nos Códigos Penal e Processual Civil, e na própria Lei Maria da Penha. 

“Ele é preocupante não somente por essa avaliação de que o punitivismo, o aumento das penas, esse uso do direito penal de forma a se tornar exemplar e simbólica, a gente percebe que não surte efeito, principalmente na prevenção do feminicídio, que é o quê nós devemos atuar, no enfrentamento à violência doméstica, na intervenção precoce do Estado antes que tenha feminicídio, que é um crime fatal, e que nós só vamos ter a punição como uma resposta do Estado”, reflete Ferreira. Ela trabalha na ONG fundada em Salvador em 2016, com atuação direta na proteção de mulheres vítimas de violência e com ações preventivas, numa perspectiva multidisciplinar. 

 

A advogada e ativista reforça a importância do suporte do poder público para que mulheres vítimas consigam romper o ciclo de violência. Isso, segundo Letícia Ferreira, não significa defender a impunibilidade. Ela destaca que os agressores precisam responder pelos crimes, porém a atuação do Estado não deve se restringir apenas ao aumento das penas. 

 

“Porque existe toda uma demanda e toda uma precariedade de uma rede de atenção às pessoas em situação de violência. Isso digo no campo não só policial, judicial, como também assistencial. Então, o reforço da punibilidade ao tempo que a gente tem desmonte, precarização dos serviços de atendimento a mulheres vítimas de violência, nós entendemos que são ações que não se complementam, que elas se contradizem”, pontua. 

 

Dados do boletim Elas Vivem, da Rede de Observatórios da Segurança, confirmam que em 2023 a Bahia registrou um caso de violência contra mulher por dia. Segundo os números, Salvador concentra o maior percentual das violências, com 110 mulheres vitimadas.

 

No ano passado, segundo o levantamento, em todo o estado foram 70 feminicídios, sendo 20 deles na capital baiana. Conforme o boletim Elas Vivem, a Bahia é líder entre os estados monitorados nos homicídios de mulheres, com 129 ocorrências (mortes não classificadas como feminicídios).

 


Letícia Ferreira. Foto: Gabriel Lopes / Bahia Notícias

 

A advogada criminalista, atuante em defesa de mulheres em situações de violência, Milena Pinheiro, destaca que a lei, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 10 de outubro, não será aplicada nos casos de feminicídio e violência contra mulher já sob investigação e julgamento. 

 

Pinheiro acredita que a alteração soma na luta contra a violência, no entanto, ainda não é possível medir quais impactos tamanho rigor das penas poderá provocar nas estatísticas e combate ao feminicídio. 

 

“Toda mudança, por mais que seja positiva, traz um friozinho na barriga, um certo medo porque você não sabe o que pode acontecer ainda que tenha perspectivas positivas, ainda que essa mudança seja uma mudança para melhor. Então, quando nós falamos a título de violência, a título de legislação e de rigor dessa legislação, de aumento de pena, do novo crime de feminicídio que agora é um crime autônomo, a gente também tem essa dúvida: será que realmente vai mudar? Será que realmente essa situação vai fazer com que os crimes de feminicídio diminuam? Eu quero acreditar que sim. Porque o direito penal, a sociedade e o Direito Processual Penal caminham juntos, eles precisam se ajustar. Inclusive o Direito Penal tem essas alterações legislativas, de acordo com a sociedade, com a sua evolução e os seus novos costumes. Então, tenho certeza que breve, vamos colocar de uma forma bem positiva, daqui a um ano nós tenhamos uma diminuição, ainda que não seja drástica, mas significativa no sentido da violência doméstica familiar, da violência de gênero contra a mulher e principalmente de feminicídio”. 

 


Milena Pinheiro. Foto: Divulgação

 

Do ponto de vista do processo penal, Letícia Ferreira acredita que tornar o feminicídio um crime autônomo não cumpre a função, visto que ele já era considerado uma qualificadora em razão da violência cometida contra as mulheres. Para a diretora da Tamo Juntas, o aumento da pena, inclusive, pode trazer outras consequências como a sobrecarga do sistema prisional. 

 

“Esse pacote demonstra uma política que continua baseada no que a gente chama de direito penal simbólico, que traz essa preocupação do Estado com a prevenção da violência de gênero contra mulheres a partir da punição e não a partir da prevenção, tirando que esse Pacote de Antifeminicídio também vai trazer diferenças no cumprimento dessa sentença que pode vir a inflar ainda mais o sistema prisional, o sistema de Justiça que nós já temos aí questões graves a enfrentar nesse ponto. Ao passo que não previne que menos feminicídios aconteçam”, reforça. 

 

“Mas a análise que eu faço é que esse aumento do número de feminicídio se dá principalmente pelo desmantelo dessas políticas sociais, das políticas de assistência e principalmente da rede de assistência a mulheres em situação de violência”, diz. “Que esses agressores possam ser punidos, mas não é a quantidade da pena, a quantidade de anos que inibe o crime. Tanto é que nós temos aí vários crimes punidos severamente, que nem por isso existe uma menor ocorrência deles. Eu acho que essa mudança é preocupante, ela continua investindo no punitivismo que não tem se mostrado eficaz para fazer enfrentamento dessa forma de violência”, pondera Letícia Ferreira. 

 

Já o advogado Matheus Biset aposta que severidade da punição pode ter reflexo direto nos registros de casos de feminicídio. “As políticas de prevenção continuam sendo muito importantes, contudo o endurecimento nas penas pode causar uma grande diminuição nos casos de feminicídio. A certeza de uma punição mais severa e duradoura poderá servir tanto com prevenção de novos casos como para a redução do número de reincidência”, defende. 

 

RETRATO NACIONAL
Números trazidos pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) confirmam que no ano passado o país teve 1.463 vítimas de feminicídio, ou seja, 1,4 mulheres mortas para cada grupo de 100 mil habitantes. Isso significa também cerca de um caso a cada 6 horas. 

 

Esse é o maior número já registrado pelo FBSP desde quando a lei contra o feminicídio foi criada, em 2015. 

 

Quando comparado com 2022 (total de 1.440), o ano de 2023 teve um aumento de 1,6% dos casos. 

 

Sobre quem comete a violência, o levantamento aponta que 73% dos crimes foram cometidos por um parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima; 10,7% das vítimas foram assassinadas por familiares; 8,3% dos autores são desconhecidos; e 8% dos casos foram perpetrados por outros conhecidos.

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