Redes sociais impulsionam casos de crimes reais a um tribunal perigoso
Por Gabriel Barnabé e Isadora Laviola | Folhapress
Uma jovem descobre que foi enganada por anos pela mãe e planeja seu assassinato. Irmãos matam os pais após anos de abuso. Um menino desaparece abruptamente em uma cidade do interior e reaparece morto. Todas são histórias reais de crimes que chocaram o público e despertaram, em parte dele, um ímpeto de justiça.
Nas redes sociais, escândalos como esses tomam proporções infladas e alcançam públicos antes inatingíveis. Nesse sentido, o interesse por esses casos aponta para um ambiente de reflexão coletiva. Segundo o psiquiatra Kaled El Sahli, da Faculdade de Medicina da USP, “a oportunidade de ouvir as histórias das vítimas e compreender essas experiências acaba produzindo uma ligação emocional que pode inspirar até um debate maior”.
O médico indica que a força dessas histórias nas redes sociais representa, para grande parte do público, uma oportunidade de explorar questões complexas, como justiça, doenças mentais e problemas sociais. “Os ‘true crimes’ vão satisfazer esses interesses, proporcionando uma experiência mais controlada de medo, de conflitos, de intrigas, que refletem questões do mundo real”, afirma.
Para além do fator coletivo, crimes violentos e controversos também despertam movimentação nas redes devido a possíveis lacunas entre as decisões judiciais e as resoluções popularmente consideradas ideais. Para Ivan Mizanzuk, jornalista e professor da FAAP, o interesse surge “por casos que podem até ter sido resolvidos na Justiça, mas que ainda são bem esquisitos e que a resolução não satisfez todo mundo”.
Mizanzuk é criador e produtor do podcast “O Caso Evandro”, no qual revisita uma história de assassinato que a Justiça dava por resolvido. Sete pessoas da cidade de Guaratuba, no Paraná, haviam sido sentenciadas após confessarem o assassinato de Evandro Ramos Caetano, um menino de 6 anos, que morreu em 1992.
Quase 30 anos depois, o podcaster descobriu, por meio das gravações de áudio das confissões, que aquelas pessoas haviam sido torturadas para realizá-las e que eram inocentes. Foram os questionamentos de Mizanzuk que levaram à absolvição dos envolvidos décadas depois de serem considerado culpados. “Meu trabalho acaba preenchendo um pouco da lacuna que existe entre o mundo jurídico, a imprensa e a memória das pessoas”, diz.
Jaqueline Guerreiro, 29, trabalha nessa mesma lacuna como produtora de conteúdos sobre crimes reais. No YouTube, acumula 3,7 milhões de incritos, além de 1,3 milhão no TikTok. Em seus vídeos, relata casos criminais e provoca seus seguidores a refletirem sobre possíveis resoluções, caso a decisão da Justiça não lhes pareça conclusiva ou satisfatória.
Newsletter Lá Fora Receba no seu email uma seleção semanal com o que de mais importante aconteceu no mundo *** Ela diz que começou a se interessar pelo tema e trabalhar com criminologia para “saber os porquês” por trás dos casos que conhecia. Para ela, a existência de uma razão leva a um entendimento maior do crime. “É por isso que as pessoas [às vezes] acabam abraçando e perdoando [o criminoso], por entender que [o crime] teve um motivo”, diz.
Os irmãos Menendez, que mataram os pais em 1989, conquistaram fãs após serem retratados em duas produções da Netflix. Gypsy Rose Blanchard ganhou milhões de seguidores após cumprir pena na prisão pelo assassinato da própria mãe. Os três são criminosos condenados que compartilham motivações semelhantes.
Os Menendez relatam que sofriam abusos sexuais dentro de casa e que o crime teria ocorrido em reação a suspostas ameaças de morte. Blanchard, por sua vez, vivia em uma cadeira de rodas e não sabia sua idade real porque sua mãe a convencia de que ela era doente.
“As pessoas têm uma curiosidade em saber mais sobre como foi possível, quais foram as condições para chegar naquele ponto”, diz Mizanzuk. Ele pondera, porém, que a linha entre essa curiosidade e a ânsia por justiça delimita um ambiente arriscado, já que a tentativa de pessoas leigas em buscar soluções investigativas pelas redes sociais tem uma “chance de gerar injustiças e estigmas” em pessoas inocentes.
Como exemplo, Mizanzuk cita o caso de Fabiane Maria de Jesus, do Guarujá (SP), que foi espancada e morta em 2014 após ser falsamente identificada como uma sequestradora de crianças. O boato começou no WhatsApp e reuniu pessoas que tinham a intenção de fazer justiça com as próprias mãos.
Sahli, da USP, aponta ainda outra preocupação com a repercussão de crimes em redes sociais: uma simpatização exacerbada com pessoas que cometeram crimes. “Em alguns grupos pode haver uma narrativa distorcida que enquadra esses criminosos como mártires e figuras incompreendidas. Isso pode ser problemático e destaca a necessidade de uma comunicação mais responsável nas redes”, afirma o psiquiatra.