‘A campanha trouxe o pior da política para o universo da OAB’

Presidente reeleita da OAB-BA aborda, em entrevista ao A TARDE, os principais desafios para o próximo triênio

Por Divo Araújo

Daniela Borges, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Bahia (OAB-BA)
Daniela Borges, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Bahia (OAB-BA) – 
Reeleita presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA) para o triênio 2025-2027, Daniela Borges enfrentou uma campanha marcada por acusações, fake news e outros elementos que trouxeram à tona o pior das práticas comuns nas campanhas políticas partidárias. “Foi algo realmente muito lamentável”, afirma, nesta entrevista ao A TARDE.

Agora, Daniela tem pela frente uma série de desafios, como combater a persistente morosidade processual, a falta de juízes no interior, a ausência de um piso salarial para os advogados e até mesmo a crescente criminalização da advocacia.

Para ela, contudo, o maior desafio é atender a uma advocacia marcada por realidades muito diferentes. “Mesmo em Salvador, temos uma advocacia muito diversa. Mas, sem dúvida, a OAB precisa fazer mais por quem mais necessita do apoio da instituição”, destaca. Confira mais na entrevista a seguir.

A diversidade é uma característica da advocacia. A realidade do advogado em Salvador, por exemplo, é muito diferente do interior do Estado. Diante de situações tão diversas, quais são as prioridades dessa sua nova gestão?

A gente realmente tem esse desafio de atuar por toda essa advocacia diversa e plural e que, às vezes, vive em realidades diferentes mesmo em Salvador. Mas, sem dúvida, a gente tem que fazer mais por quem precisa mais do apoio da instituição. Por isso, a gente procura dar uma atenção com projetos específicos para quem a gente antecipadamente sabe que tem demandas maiores. Por exemplo, a jovem advocacia. Começar é muito difícil. A advocacia do interior, porque os problemas hoje do Judiciário afetam de forma mais grave essa região. A gente tem a advocacia idosa com outro tipo de vulnerabilidade, que é diferente da jovem advocacia. As mulheres advogadas também enfrentam desafios próprios. Por exemplo, quando vão conciliar maternidade e advocacia. Tem o tema do assédio. A gente procura identificar demandas que afetam de uma maneira mais intensa a advocacia para desenvolver projetos e fazer com que eles cheguem a toda advocacia e com mais força junto àqueles que precisam mais.

Nesses últimos três anos a senhora viajou muito pelo interior. Li, numa entrevista recente, a senhora dizer que em algumas comarcas a situação está melhorando. Está otimista com o que tem visto?

Quando a gente ingressou na OAB, a gente tinha um déficit muito maior de juízes e de servidores. Com a nomeação dos 62 juízes, a gente passou a ter magistrados onde antes não tinha. Mas esse déficit ainda existe. Por isso, a gente tem trabalhado tanto para que o Tribunal de Justiça faça um novo concurso. E, ao que tudo indica, já está em andamento esse novo concurso. Se nós tivermos um juiz em cada comarca da Bahia, a gente já vai ter uma realidade diferente. Isso será suficiente? Não. Porque a gente também precisa ter servidores treinados e capacitados. Esses dois cenários impactam muito na advocacia. Não só na advocacia, mas na vida do cidadão do interior. Realmente, eu passei em comarcas sem juízes e retornei depois já com a presença dos magistrados. É outra a realidade quando o magistrado chega. Diante desse cenário do tribunal, do novo concurso e da nomeação de mais servidores do concurso que já foi realizado, e que tem um cadastro reserva, nós podemos sim, na minha avaliação, sermos otimistas.

Esse déficit de juízes é muito grande ainda?

O déficit é de 77 magistrados. Além desse déficit, existem comarcas que têm um acervo muito maior do que o juiz consegue suportar. Na verdade, tem demanda para dividir aquela unidade, aquela vara. Tem uma vara cível, mas aquele lugar precisa de duas varas cíveis. Ou tem duas varas, e precisa de uma terceira. O déficit termina sendo maior dentro desse cenário. Mas se a gente tiver, nos próximos anos, a nomeação de, por exemplo, 100 juízes substitutos, isso já vai ser uma mudança na realidade baiana. É importante perceber que, quando falta um juiz na comarca, isso também prejudica a comarca que tem juiz. Como é que o tribunal lida com essa comarca que não tem juiz? Ele designa um juiz que é titular em outra comarca para atuar em substituição naquela. Às vezes esse juiz atua em substituição em duas comarcas. Por mais que ele se dedique, que trabalhe, não vai conseguir atender três varas com a mesma qualidade, porque o dia dele continua tendo 24 horas.

A morosidade processual ainda é o maior problema enfrentado pelos advogados?

Sem dúvida nenhuma. Esse é o maior problema junto com a violação de prerrogativas de quem precisa de um advogado. Nós temos um projeto, que é o MovimentAção. É um projeto que lida com a urgência. Porque a gente sabe que a mudança precisa ser estrutural. Por isso, a gente defende tanto a importância de se ter juízes,dos servidores, estrutura. Através do projeto MovimentAção, quando um processo está parado há mais de 180 dias, o advogado aciona a OAB e a OAB oficia o juiz. Quando a gente oficia o juiz, o processo anda. Nós temos uma taxa de retorno positivo em 60% dos casos. Já é uma taxa relativamente boa. E os outros 40%, a gente também dá um tratamento. Ou encaminha para Corregedoria, ou demanda no Tribunal um mutirão, porque às vezes é uma dessas varas que não tem juiz. Esse projeto é uma prioridade da OAB hoje. Porque a gente não pode esperar um ano, dois anos. A gente teve o caso de um advogado que estava há seis meses aguardando para expedir um alvará. Ele provocou a OAB, a OAB oficiou e em 24 horas o alvará foi expedido. Aquele alvará não é só para o advogado. Ele é para parte e para o advogado.

Todas essas questões dependem do Poder Judiciário como um todo. Como é a relação hoje da advocacia, da OAB, com o Tribunal de Justiça da Bahia?

A gente procura sempre ter uma relação cordial de civilidade, de cooperação, no sentido de entender que temos o mesmo propósito de oferecer a melhor prestação jurisdicional. Mas, ao mesmo tempo, também de independência. Se nós tivermos uma demanda específica e o interesse da advocacia não estiver sendo observado, a gente vai com firmeza fazer os enfrentamentos. Mas o diálogo é sempre a primeira opção, a forma de a gente encontrar e encaminhar as soluções. É muito importante que a gente também compreenda que esses problemas estruturais, muitas vezes, demandam soluções externas. Por exemplo, a presidente do Tribunal já encaminhou à Assembleia Legislativa um pedido de suplementação orçamentária para nomear mais servidores. Ela quer nomear mais servidores, mas depende da aprovação da ALBA. Numa situação como essa, a OAB vem e se coloca a favor, também demandando a aprovação dessa complementação orçamentária, porque a gente sabe da importância dos recursos para a nomeação desses servidores. Acredito que todos os atores do sistema de Justiça precisam compreender que têm o mesmo propósito – um sistema de justiça que funcione de forma célere e que entregue uma boa prestação jurisdicional. Em alguma medida, isso nos une. Agora, eventualmente, podemos ter visões diferentes, pontos e demandas específicas com interesses conflitantes. Nessa hora é muito importante que a OAB seja independente e que a gente possa atuar com firmeza na defesa dos direitos e dos interesses da advocacia.

A gente sabe que o uso de novas tecnologias, sobretudo da inteligência artificial, vem causando disrupção em muitas atividades. A senhora tem uma visão mais otimista ou pessimista do uso da IA na advocacia?

O novo sempre vem, só que ele nunca veio tão rápido. A inteligência artificial dificilmente deixará de ser utilizada. Agora, acredito que a gente tem que saber usar o que vem de bom e separar efetivamente os problemas que podem decorrer do uso da inteligência artificial. A gente está vivendo, enquanto sociedade e na área jurídica não é diferente, um aprender como utilizar essa inteligência artificial. Não tem, na minha avaliação, como proibir. Mas é importante a gente saber como utilizar para fazer o melhor proveito dela. Por exemplo, a responsabilidade do advogado é sempre pessoal. Na hora que o advogado assina uma peça, que profere ali a palavra dita, a responsabilidade sobre aquele documento que ele assina, sobre aquilo que ele sustenta oralmente, é dele e é pessoal. Inclusive, a gente tem um código de ética. Essa compreensão é importante para a gente entender os limites do uso da inteligência artificial. Ainda que a gente encontre um suporte na inteligência artificial para nos auxiliar no dia a dia da profissão, é importante saber – e aí a importância dos marcos regulatórios – que a responsabilidade é sempre do ser humano. É daquela pessoa que utilizou a ferramenta. A gente sabe que a inteligência artificial inventa. Na área jurídica, a gente tem algumas inteligências artificiais que inventam jurisprudência, livros, nome do autor, artigos. A gente está falando de advogado, mas também vale para os tribunais de Justiça. Os tribunais também vêm utilizando suas inteligências artificiais. Mas você não pode assinar e depois dizer, ‘ah, não fui eu’.

A senhora não teme que isso possa afetar também, de alguma forma, o mercado de trabalho?

Já está afetando. E aí, a advocacia precisa, dentro desse contexto, também ver novos nichos e oportunidades de trabalho. Da mesma maneira que a gente tem hoje problemas decorrentes do uso da inteligência artificial, eu também vejo crescendo outros nichos de atuação profissionais na área jurídica, em razão também do uso dessas tecnologias. É importante, inclusive, não só o advogado, mas a OAB, está muito atenta a isso. Pensando cursos de capacitação, tentando mostrar para a advocacia outros horizontes de atuação em áreas que, antes, não se imaginava, com demandas e problemas jurídicos, no tema de LGPD (Lei geral de Proteção dos Dados), no tema da própria responsabilização da utilização dessa inteligência. Você vai poder ter a prática de crimes e responsabilizações que não tinham antes. E aí, com isso, novas demandas serão criadas. Mas entendo que a gente tem, de fato, um problema de mercado em razão do uso da inteligência artificial, mas ela não vai deixar de ser utilizada. A gente precisa, enquanto a advocacia e a OAB tem um papel importante em tentar trazer faróis de perspectiva, incentivar o bom uso da inteligência artificial e, ao mesmo tempo, a criação de novos mercados.

Os honorários aviltantes são uma das grandes preocupações da advocacia. Em 2016, a OAB já tinha sugerido ao governo do Estado a apresentação de um projeto de lei para criar um piso salarial do advogado. Depois de todo esse tempo, a senhora acredita ainda que essa proposta pode ser viabilizada?

Acredito e estou bem otimista, porque é importante a gente, de fato, trazer isso para a realidade da advocacia. O piso salarial é uma prioridade nossa. Nós já tivemos duas reuniões com o governador Jerônimo Rodrigues e com o secretário de Justiça. A lei estadual é o que realmente vai obrigar os empregadores a pagar o piso para a advocacia. Além do piso, a gente tem o tema dos honorários. A gente tem o Código de Processo Civil fixando os honorários de sucumbência que muitas vezes não são cumpridos. E a gente tem uma atuação também nesses processos. A gente entra junto com o advogado contra aquela decisão que fixou os honorários abaixo do CPC (Código de Processo Civil) e também os honorários contratuais, porque muitas vezes o juiz quer invalidar contratos. E também com a criação de uma câmara de mediação de honorários, que já existe. Porque ela ajuda muitas vezes o advogado a receber os honorários que estão pendentes de pagamento. São várias frentes de atuação pensando na valorização da remuneração, mas sem dúvida nenhuma o piso salarial é o tema da maior relevância, porque afeta e diz respeito ao interesse de muitos advogados, especialmente da jovem advocacia.

O Brasil é conhecido por ser o país que tem o maior número de advogados do mundo. São cerca de milhão e 400 mil advogados. A gente tem também muitas faculdades de Direito que têm um ensino com qualidade questionável. Como a OAB vê essa questão?

A OAB participa do processo de autorização, reconhecimento e revalidação dos cursos de Direito. A gente faz apenas um parecer opinativo, mas a gente participa. É muito triste a gente ver cursos que a gente visita e que dá um parecer não recomendando – seja a autorização, reconhecimento ou revalidação – e ver aquele curso sendo efetivamente autorizado a funcionar. Nós já temos uma atuação dentro desse campo e existe uma luta para que o nosso parecer seja vinculativo. Além disso, a gente também tem tratado muito do assunto no Ministério da Educação. E aí eu já me refiro à OAB Nacional, ao presidente Beto Simonetti, que inclusive conseguiu suspender os cursos EAD (Educação à Distância). Em alguma medida, isso já é uma conquista no sentido de tentar pelo menos impedir que haja uma expansão dos cursos EAD. Mas, sem dúvida, existem cursos hoje que não teriam condições de funcionar, e ainda assim estão com a autorização do Ministério da Educação. A OAB, claro, tem que continuar cobrando do Ministério da Educação as providências para que esses cursos não tenham a revalidação, que venham a ter a redução das vagas e que tenham, inclusive, a possibilidade de serem fechados mesmo. Ou seja, terem as suas autorizações canceladas, porque a qualidade da educação jurídica não é importante só para a advocacia. Esse recorte é importante, mas o principal é a gente perceber que saem dos cursos de Direito todos os atores do sistema de Justiça. Zelar para uma educação jurídica de qualidade é, na verdade, zelar pela qualidade do sistema de Justiça. Advogados, juízes, promotores, Ministério Público, Defensoria Pública, todos os atores, inclusive muitos servidores públicos. Ter esse cuidado, na minha avaliação, é algo primordial. A gente tem uma atuação aqui da OAB, inclusive, dialogando com outras instituições, discutindo os métodos de avaliação.

A senhora vê essa grande quantidade de advogados como um problema?

A gente tem profissionais que passaram pelo curso de Direito, se formaram, passaram no exame da Ordem e têm autorização para exercer a advocacia. De fato, o número de profissionais, em razão da demanda que existe, termina trazendo dificuldades que não havia há 20 anos, 30 anos. Esse é um elemento sim, mas a gente tem essa quantidade de profissionais autorizados a exercer a profissão. E cabe a OAB buscar garantir a esses advogados a condição do exercício pleno da advocacia.

Há três anos, a senhora foi a primeira mulher a ser eleita presidente da OAB-BA em cerca de 90 anos. Nessa última eleição, agora foram duas mulheres disputando o cargo. A OAB mudou?

Sem dúvida nenhuma, a gente vê a maior transformação nos últimos 92 anos da OAB. Eu presidi a Comissão Nacional da Mulher Advogada no triênio passado e a gente liderou o processo de mudança das regras eleitorais. Nesse triênio, todas as seccionais já tinham paridade de gênero e cotas raciais. Você vai à OAB e as mulheres já estão nesses espaços. Aqui na Bahia, foi a primeira vez no Brasil que presidente e vice são mulheres. A gente procurou fortalecer muito a participação das mulheres no sistema OAB e das advogadas de maneira geral. Estou muito feliz que, nessa eleição, mais da metade dos presidentes do interior são mulheres. Isso é disruptivo e gera um efeito em cascata. Hoje na Bahia, a seccional tem 37 subseções. Dessas 37, nesse triênio, 10 são presididas por mulheres. No próximo triênio, 20 serão presididas por mulheres. Isso é fruto desse trabalho que a gente fez ao longo desse triênio. Não apenas eu, mas todas as mulheres do sistema, inspirando outras mulheres. A maioria dessas mulheres que chegam presidentes eram diretoras durante esse triênio.

Falando um pouco dessa última eleição também. Qual o balanço que a senhora faz da campanha?

A campanha trouxe, a gente pode dizer, o pior que a gente vê nas campanhas de políticas partidárias, para o universo da OAB. Fake news, criação de sites só para difundir fake news. Foi algo realmente muito lamentável. A gente procurou fazer uma campanha ética, uma campanha limpa. Eu, pessoalmente, fiquei muito feliz com o resultado. A gente teve quase 2.200 votos de frente. E, sobretudo, fico feliz pela campanha que a gente fez. Eu acho que é importante ganhar no voto e na forma como a gente fez a campanha. Trazendo para a advocacia propostas, mostrando o que foi feito. Tenho certeza que, nos próximos três anos, a gente vai conseguir trazer ainda mais avanços.

Vai dar muito trabalho para unir a categoria, já que teve toda essa turbulência na campanha?

Eu sou presidente de toda a advocacia. Durante, inclusive, o período eleitoral, pessoas que, eventualmente, estavam concorrendo contra, tiveram todo o apoio da instituição. Passada a eleição, então nem se fala. A OAB é a casa de toda a advocacia. Nós sempre nos comportamos dessa forma. Eu fico muito tranquila ao falar sobre isso porque tenho a demonstração do que foram esses últimos três anos. Quando tomei posse, dia 1º de janeiro de 2022, tomei posse como presidente de toda a advocacia baiana. Independente de quem tinha ou não tinha votado na nossa chapa. Inclusive, muitas pessoas que chegaram a estar em outras chapas, efetivamente ocuparam espaços conosco. As portas aqui estão mais do que abertas para toda a advocacia, porque é assim que a gente, de fato, consegue avançar. Os problemas que a advocacia enfrenta não são causados dentro da advocacia. Eles decorrem da falta de estrutura do tribunal, de autoridades que violam nossas prerrogativas, de honorários que são aviltados. Por isso, inclusive, o nome da nossa chapa foi União pela Advocacia. É a compreensão de que, de fato, a gente, enquanto classe, tem que estar unida, trabalhando em prol da valorização da nossa profissão.

Voltando um pouco à questão de gênero, cerca de um terço das mulheres advogadas já sofreram algum tipo de assédio durante o trabalho. Por que esse número continua tão alto?

Nós temos algumas pesquisas feitas aqui na Bahia. O número que a gente encontra, infelizmente, é um número diretamente ligado aos problemas que temos de violência contra a mulher no Brasil. O Brasil é o quinto país do mundo em maior número de feminicídios. E o feminicídio é a ponta de um iceberg, que envolve diversas formas de violência, de preconceitos e de discriminações. O assédio é uma das formas dessa violência. Aqui na OAB, a gente criou uma ouvidoria da mulher advogada para atuar, além de uma campanha específica de combate ao assédio, com cartilhas. A gente tem a comissão da mulher advogada que faz o acolhimento e uma primeira análise e encaminhamento do caso. E a gente também criou uma procuradoria adjunta especializada em gênero e raça. Porque na hora de adotar as medidas judiciais, a gente também tem um olhar especial, pensando gênero e raça para que a pessoa possa, de fato, fazer o tratamento adequado, da maneira melhor, em face desses enfrentamentos.

A questão da maternidade para quem é profissional liberal é um desafio ainda para as mulheres. O sistema de Justiça tem evoluído nesse sentido também?

Nós conseguimos, em 2015, prerrogativas da mulher advogada no exercício da profissão, praticamente todas ligadas à maternidade. A mulher gestante ou lactante tem direito à preferência na sustentação oral. Nas audiências, a gestante tem direito a não se submeter a detector de metais, à vaga preferencial de estacionamento. E a suspensão do prazo. Essa suspensão do prazo é muito importante. Quando a mulher é a única advogada no processo e tem um bebê, ela tem uma suspensão de prazos de 30 dias. São prerrogativas que vieram com a mudança da lei, mas a gente ainda tem desafios de efetividade. Existem ainda juízes que não respeitam a preferência. E aí negam direito à preferência de sustentação oral nas audiências. A gente tem atuado em diversos casos em que isso ocorre, porque hoje a nossa luta é uma luta por efetividade. A maternidade é um momento decisivo na vida da mulher. Quando elas escolhem ser mães, muitas das vezes terminam desistindo, quando não conseguem conciliar. Quando tive meu segundo filho, eu fiz uma cesariana, e com sete dias fiz uma sustentação oral. Eu sou um profissional liberal, e até poderia ter pedido a outra pessoa para fazer. Mas é um pouco o que é a profissão liberal. Eu queria fazer aquela sustentação oral, porque era um processo muito importante para mim. São desafios realmente que a gente enfrenta no exercício da profissão, e a OAB, além da busca de efetividade dessas prerrogativas, a gente tem a isenção da anuidade no ano do parto. A gente tem como proposta, para esse triênio agora, a criação de um kit maternidade para chegar junto da mulher advogada nesse momento. E também um apoio com relação a creches. Algo que vai ajudar não apenas as mulheres advogadas, mas também os homens. Porque é importante a gente observar que cada vez mais os pais têm se envolvido. Esse projeto nosso para o próximo triênio que a gente pretende implementar na creche é algo que vai beneficiar muito as mulheres advogadas, mas também vai beneficiar, não tenho dúvida, os homens.

A questão racial ainda precisa ser muito trabalhada dentro do Judiciário?

Hoje nós tivemos a manifestação de uma desembargadora no julgamento, não sei se acompanhou. Ela disse que as cotas só levaram a uma piora na qualidade dos serviços. No final das contas, o que a gente observa é que o sistema de Justiça é formado por pessoas que integram a sociedade. O sistema de Justiça que deve garantir a igualdade de gênero e a igualdade racial, muitas vezes reproduz as violências de gênero e as violências de raça. É um dever nosso adotar ações para efetivamente mudar essa realidade. E é muito importante que essa mudança ocorra dentro do sistema de Justiça com urgência, porque é a ele que cabe a correção das injustiças e das violências. Aqui na OAB, a gente tem a representatividade da advocacia negra. Para esse próximo triênio, a obrigatoriedade seria 30%. A gente tem um pouquinho mais de 40% da chapa de pessoas pardas e negras. É um compromisso nosso ter a advocacia que vive a advocacia de diferentes formas, podendo contribuir na gestão e, claro, tentando trazer uma promoção da igualdade também dentro do nosso sistema.

A criminalização da advocacia, sobretudo da advocacia criminal, é uma grande preocupação?

Imensa, porque, no final das contas, a criminalização da advocacia atenta contra a própria democracia, contra o próprio Estado Democrático de Direito. Porque o direito de defesa é uma pedra fundamental do Estado Democrático de Direito. Se eu sou um cidadão e eu tenho direitos e esses meus direitos são violados, eu tenho o direito de me defender. Ou, no caso de um processo criminal, ainda que eu seja acusado da prática de um crime, eu tenho um direito amplo à defesa ou contraditório. Criminalizar a figura do advogado criminal é tentar tirar do indivíduo o direito dele se defender. Mesmo o réu confesso tem direito a um advogado, que garanta a ele o tratamento justo e a aplicação correta, adequada e proporcional da pena. Por isso, a nossa defesa é tão intransigente da advocacia, do direito de defesa e contra qualquer tentativa de criminalização da advocacia. A gente tem atuado em alguns processos que chegaram a nós em que isso ocorreu. Eu, inclusive, já despachei pessoalmente com magistrados em casos em que o advogado estava sendo criminalizado. Tem um caso recente de um colega que advogava pelos autos do processo e, ao ter uma ação de busca e apreensão, ela foi feita contra o cliente e contra ele. Isso é criminalizar o exercício da profissão, porque o cliente tinha ali feito a transferência dos honorários. Nesse processo eu fui despachar pessoalmente com o magistrado. A gente teve êxito nessa ação. Estivemos também no Ministério da Justiça e junto aqui com o procurador-geral de Justiça. Estivemos também com a Gaeco. Porque a gente tem o compromisso de atuar no caso concreto, mas também transformar essas estruturas. Esse trabalho é muito importante porque, no fundo, a gente não quer resolver o problema do advogado. A gente quer é que não haja criminalização da advocacia.

Raio-X

Daniela Borges é graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e mestre em Direito Tributário pela mesma instituição. Atualmente, é doutoranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia (Ufba). Atua como professora de Direito Tributário e Direito Financeiro na Ufba, na Faculdade Baiana de Direito (FBD) e nos cursos de pós-graduação da Universidade Católica de Salvador. Ela presidiu a Comissão da Mulher Advogada da OAB Nacional e foi reeleita para um segundo mandato como presidente da OAB-BA. Com ampla experiência na advocacia tributária, é sócia do escritório Didier Sodré & Rosa Advocacia e Consultoria, onde também exerce sua profissão.

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