Os vaqueiros e a inventiva dos sertões
Por: Robson Rodrigues de Souza
Para o Ação Popular (AP)
Tão antigo quanto a própria ocupação colonial portuguesa, o ofício de vaqueiro remonta aos anos de 1550, quando os primeiros cascos de gado pisaram o solo sul-americano sob o céu das Terras Brasilis. No governo de Tomé de Souza, o gado era solto nos engenhos de cana-de-açúcar do litoral, confundindo-se com a doçura da riqueza colonial. Contudo, a multiplicação desenfreada dos animais logo transformou a bênção em tormento, os canaviais, sufocados pelo tropel de cascos, tomavam graves prejuízos. A Coroa Portuguesa, então, decreta a proibição da criação de gado a menos de 70 quilômetros do litoral, expulsando os rebanhos para as entranhas do sertão. Assim, como um rio que rompe barragens, as boiadas partiram em direção ao desconhecido, conduzidas por homens cujos costumes culturais inventariam os Sertões.
No Século XVI, com a desterro do gado do litoral, o rio Itapicuru torna-se uma via natural para a interiorização do gado. Os primeiros currais surgem nas margens do rio, marcando o início da ocupação do território que ligaria o litoral ao sertão baiano. Pelas veredas secas do Nordeste, os vaqueiros desbravaram léguas de caatinga, desenhando com suor e couro uma geografia humana até então indomada. A cada lua, a cada riacho atravessado, nascia a “civilização do couro”, sociedade moldada pela aspereza do sol, pela linguagem dos animais e pela arte de sobreviver onde a terra parece negar a vida. Ao longo do extenso horizonte entre a Casa da Torre e o Itapicuru, vilas surgiram como o verde brota no sertão após uma tormenta, espalhando a genética dos cavaleiros da coroa sertaneja, fundidos a golpes das intempéries nas terras da aversão humana. Ali, o vaqueiro era ao mesmo tempo cartógrafo, poeta e guerreiro, transformando chão árido em pátria.
No século XVII, a família D’Ávila, dona da Casa da Torre, consolidou seu poder ao expandir domínios pelas margens do rio Itapicuru, erguendo “casas-de-fazenda” que funcionavam como núcleos administrativos e defensivos. Essas estruturas, misto de baluartes e centros produtivos, deram origem a povoados estratégicos, como Monte Santo, fundado em 1775 como arraial religioso após a descoberta de uma cruz supostamente milagrosa no alto da Serra Picuaraçá, (hoje Monte Santo tem uma das maiores e mais tradicionais festas religiosas da Bahia).
Já no século XVIII, a bacia do Itapicuru solidificou-se como eixo econômico do sertão, integrando feiras de gado, como a movimentada Capim Grosso, a incipientes aglomerados como Uauá. A pecuária, alicerce dessa economia, teceu rotas comerciais que levavam couro, carne seca e queijo para os mercados de Salvador e Recife, enquanto Uauá, inicialmente um pequeno entreposto, ascendeu como ponto vital de descanso para tropeiros e vaqueiros em trânsito para cidades da região.
Nas fazendas que margeavam o Itapicuru, o gado não era apenas riqueza, mas moeda viva, símbolo de poder que sustentava uma sociedade rigidamente estratificada. Os “senhores da terra”, donos de latifúndios que se perdiam no horizonte, comandavam impérios particulares, enquanto os vaqueiros, muitas vezes agregados ou moradores que recebiam permissão para criar alguns bois próprios em troca de serviços, eram a força motriz dessa engrenagem. A relação, embora revestida de um ’paternalismo’ que simulava laços de lealdade, era profundamente desigual, em troca de salários ínfimos ou da “partilha” onde o vaqueiro tinha direito a um quarto das crias de cinco em cinco anos. Os vaqueiros entregavam jornadas extenuantes, riscos diários na caatinga e submissão a um sistema que os mantinha à margem da prosperidade. Essa dinâmica, porém, não apagava seu papel central, pois eles eram quem dominava os segredos do sertão, garantindo a sobrevivência do gado, e, por extensão, do poder dos coronéis.
O VAQUEIRO E A FÉ NA TERRA.
Eram eles os cronistas do sertão, os que marcavam o compasso da vida sob um céu de contradições, anunciavam as cheias fugidias que traziam esperança, enfrentavam as secas esfaimadas que engoliam sonhos, organizavam as festas de santos, onde o sagrado e o profano dançavam ao som do pé de bode, e lideravam as preces coletivas a um Deus que, muitas vezes, parecia surdo. Vestiam armaduras talhadas na aspereza do couro: o gibão, escudo contra espinhos cortantes, o guarda-peito ornado à luz do sol inclemente, as perneiras amarradas como bandagens de guerra, recebendo os golpes dos galhos das pereiras adelgaçadas, o chapéu de couro de abas curtas, coroa do sertanejo. Nos cintos, punhais cintilantes, que viriam a ser as adagas dos cangaceiros e na mão direita a guiada, uma lança com ponta de aço afiado, instrumento de comando tão simbólico quanto o cetro de um rei. Ao avançar pela caatinga, seu traje ganhava as cores da terra, o pó vermelho dos curundunduns grudava-lhes na pele, o perfume das flores do quebra facão misturava-se ao suor, e os espinhos de jurema preta escreviam histórias de cicatrizes nas suas roupas. Não havia distinção entre homem e sertão, o vaqueiro era geografia viva, uma extensão da terra que o moldara em corpo e alma.
Nas noites de lua cheia, quando o céu virava um manto de prata, reuniam-se em torno de fogueiras que cuspiam labaredas dançantes. Ali, entre o chiar dos grilos e o uivo dos ventos, narravam odes das sombras, histórias de currais assombrados por bois mandingueiros, de amores proibidos que atravessavam rios secos, de milagres tão improváveis quanto chuva em agosto. O berrante feito de chifres, pendurado no ombro, não era instrumento musical, era o elo entre sua geração matreira e seus ancestrais ibericos. Seu lamento agudo ecoava como um fado sertanejo, entoando saudades das terras deixadas no litoral, das terras então conquistadas a ferro e fome, das terras prometidas além do horizonte, onde talvez repousasse um sertão menos cruel.
Foi nesse aribé de histórias que se forjou o alicerce das primeiras cidades. Cada curral transformado em povoado, cada casa-de-fazenda erguida como forte, cada feira de gado que germinou praça pública, como a nossa São João Batista, tudo carregava a marca invisível das mãos calejadas dos vaqueiros. Enquanto o Brasil oficial nascia nas cartas jesuíticas e nos decretos reais, o Brasil profundo brotava ali, na capricho cotidiano daqueles homens que, sem saber, escreviam com seus rolós e berrantes a ‘Constituição’ do sertão. Heróis sem estátuas, protagonistas de um poema único, tornaram-se os arquitetos de um Brasil ainda em gestação, áspero, rústico e indomável como eles próprios.
RELAÇÕES DE TRABALHO E SANGUE
A teia de poder no sertão se entrelaçava por fios de afeto calculado. Era prática comum entre os coronéis oferecer um filho ao vaqueiro para batizar, transformando-o em compadre, laço sagrado que, nas entrelinhas, era algema dourada. O gesto, aparentemente generoso, sacramentava uma servidão disfarçada de família, o vaqueiro, agora “parente” simbólico, dificilmente reivindicaria salários atrasados ou romperia com o clã que o “honrara”. Em troca, ganhava o status de pequena nobreza rústica, o direito de exibir no sobrenome a migalha de um ilustre. Muitos repetiam o ritual na direção inversa, batizando um filho do patrão, numa dança de compadrios cruzados que perpetuava a ilusão de igualdade.
Meu pai, vaqueiro desde os 15 anos, desconfiou desse teatro de cordialidade. Enquanto outros aceitavam a honra de ser “tio” do filho do coronel em troca de dívidas perpétuas, ele arquitetou sua própria inventiva. Aos 35 anos, não quis gado, terras ou ouro, preferiu um coração. Maria Dasdores, a filha mais bonita do senhor Milton Rodrigues, herdeira da temida linhagem do Coronel Pombo Rodrigues, fugiu com ele numa noite sem lua, levando apenas um vestido amarrotado e uma Bíblia. Não houve tiros ou perseguições épicas, mas a audácia de um amor que desafiou séculos de hierarquia foi seu grito de independência. Com a mesma astúcia que usava para desviar boiadas de precipícios, ele transformou o alvoroço em alicerce, o casamento, inicialmente visto como ofensa, tornou-se ponte entre dois mundos.
Enquanto velhos compadres morriam pobres e leais aos patrões, meu pai ergueu seu próprio legado, não com as armadilhas do sangue fictício, mas com o sangue quente de quem ousou reescrever as regras. Seu curral nunca foi o maior, mas cada res marcada com seu ferro carregava um verso intangível, o de que mesmo no sertão imóvel, um homem pode ser dono do próprio passo.
SABEDORIA E TRADIÇÕES HEREDITÁRIAS
A transmissão do saber vaqueiro não se dava por escrituras, mas pelo sangue e pelo vento. De pai para filho, fluíam técnicas, além da pratica, uma cosmogonia inteira, os velhos, sábios ambulantes do sertão, ensinavam a ler o mundo em códigos que a ciência jamais decifraria. Nas noites sob o véu estrelado, desvendavam as constelações do catingueiro, mapas celestes onde a Ursa Maior virava “Rastro do Boi Desgarrado” e o Cruzeiro do Sul anunciava a hora de migrar. Durante o dia, revelavam os segredos das ervas que sangram cura, as batatas de umbuzeiro pra matar a sede, o juazeiro que cicatriza feridas abertas, das orações que amansavam fogo, rezas trazidas da herança ibérica, e das trilhas de redemoinho, aquelas que só existem entre o nascer e o pino do sol, quando a sombra é breve como a vida.
O vaqueiro não dominava a caatinga, tornava-se meio dela. Aprendeu a escutar o grito calado que precede a chuva, a ler nas pedras o rastro de uma cascavel de sete ‘ventas’, a descobrir água escondida em veios subterrâneos mais finos que o próprio tempo. Sua fé era um retalho de devoções, nas promessas a São Pedro, entoadas em aboios apelativos, desejando alcançar trovoadas, nas rezas místicas oriundas dos tupinambás, nos santos de barro ou esculpidos em madeira de umburana, no uso do escapulário de senhor do Bonfim, adorava-se tanto o Cristo quanto a Jurema, entidade das raízes profundas. Essa espiritualidade mística não era sincretismo, era sobrevivência poética.
Na “ferra” do gado, onde o ferro em brasa marcava a pele do animal como tatuagem de posse, aprendia-se que hierarquia e respeito são irmãos. Nas tigelas de barro para a ordenha do leite, o ritmo das mãos no úbere demostrava intimidade com o pulsar da própria terra. No aboio, canto sem letra que atravessava léguas, codificavam-se mensagens de lamento, saudade ou chamado. Nas cacimbas cavadas à punho, guardava-se não só água, mas o juramento de que o sertão jamais deixaria de ser promessa.
Essa ciência da resistência concedeu aos vaqueiros uma autoridade que o dinheiro não compra, eram os xamãs do agreste, consultados até por coronéis em tempos de seca. Sua expertise moldou a geografia econômica do sertão, as trilhas abertas por boiadas viraram estradas como a que liga Monte Santo a Uauá ou a Curaçá. Currais de gado transformaram-se em cidades, e técnicas ancestrais, como o rodízio de pastos, quintais de forrageiras e o uso de plantas medicinais, hoje são ações de combate as mudanças climáticas, antevendo em séculos a noção de sustentabilidade.
Assim, enquanto o Brasil construía suas metrópoles de concreto e aço, o sertão erguia do barro seu reino imaginário. Alicerces feitos de rastros, mitos e cicatrizes, onde cada vaqueiro era pedra fundamental. Seu legado não está nos mapas, mas no cheiro do couro cru ao sol, no gemido do berrante ao entardecer, e na teimosia de quem ainda encontra vida onde o mundo impõe escassez. E de alpendre em alpendre sertão a dentro, a escola da vida deu a maior lição ao nosso povo: no sertão se sobrevive com simplicidade.
Os vaqueiros não foram apenas trabalhadores, mas ‘agentes civilizatórios’ Sua coragem permitiu a ocupação de áreas inóspitas, transformando o sertão em espaço produtivo. Ao longo dos séculos, esses homens de couro tornaram-se os arquitetos da memória sertaneja. Sua luta contra a aridez transcendia a mera sobrevivência, era um ato de criação contínua, um diálogo íntimo com a terra que os desafiava. Nas secas cíclicas, quando o gado definhava e o céu virava aflição, o vaqueiro permanecia como guardião de um pacto imemorial. Sua existência ressoava os contra ponto dos sertões, devastador e generoso, cruel e maternal, eterno efêmero. Sua sabedoria o fez aproveitar da caatinga os recursos para salvar seu gado. Encontrar águas nas cacimbas de sua própria inconsciência. Curar as doenças com as cascas do tempo. Estudar os ventos para seguir as rotas das chuvas espaças. Aprender que o sertão nunca é, sempre está. E onde hoje há fartura, amanhã pode haver falta, e onde o amanhã promete trovoada poderá haver desgraça. Eis que estes homens se acostumaram a grugulhar naquelas paragens, e por elas foram forjados e lapidados diamantes da resistência.
O Legado que resistiu à ferrugem dos Séculos
Quando o vento sopra sobre o sertão da Bahia, ainda é possível ouvir o eco dos aboios que atravessaram gerações. Os vaqueiros, não são apenas figuras do passado, são guardiões de uma identidade que resiste às intempéries do tempo. Suas histórias revivem nos currais de tronco, nas festas de vaquejada, nas preces a São Pedro pedindo chuva, nas rugas dos velhos que ainda lembram o nome de cada res perdida.
Hoje a profissão de vaqueiro é reconhecida através da lei federal nº 12.870, de 15 de outubro de 2013 e seu valor cultural através do decreto estadual nº 13.150 de 09 de agosto de 2011, como bem cultural de natureza imaterial e patrimônio artístico e cultural da Bahia. Em Uauá existem várias manifestações culturais provindas do vaqueiro, a mais tradicional e importante, acontece no dia 22 de junho, a passeata dos Vaqueiros. Estima-se que mais de 900 vaqueiros, vestidos a caráter, desfilem das ruas da cidade.
A Civilização do Couro legou ao Brasil além de estradas e povoados, uma mitologia viva. O vaqueiro, com seu chapéu de couro e seu destino entrelaçado ao do gado, é o Ulisses do sertão, herói anônimo cuja odisseia não se escreveu em livros, mas na pele queimada pelo sol. Em cada passo dado sobre a caatinga, repousa o murmúrio de séculos de luta e beleza, um testemunho de que, mesmo na terra mais ingrata, o homem pode fincar raízes e florescer. Assim, o sertão segue sendo, como diria Guimarães Rosa, “o lugar onde a alma não se esconde”. E os vaqueiros, seus eternos poetas.
Uauá Bahia, 18 de fevereiro de 2025.
Robson Rodrigues de Souza
Membro da Academia Brasileira
de Letras, Artes e Ciências da Caatinga.