Pesquisadora da Fundação Getulio Vargas e especialista em Justiça Militar, Angela Moreira conta que se deparou com esta faceta da Justiça Militar ao pesquisar os arquivos do Superior Tribunal Militar (STM). Nos livros de acórdão de habeas corpus, ela viu a história de um padeiro português, que vivia no Rio, e tinha solicitado um habeas corpus ao STM.
— Ele tinha sido preso por vender pão com um grama a menos do que o peso estipulado na tabela da Sunab (Superintendência Nacional de Abastecimento) e estava incurso na Lei de Segurança Nacional de 1953. Não consegui, na hora, entender o que significavam Justiça Militar, Lei de Segurança Nacional e venda de pão. Então, comecei a perceber, por conta da quantidade de habeas corpus que eram solicitados ao STM em 1966, que este foi um fenômeno muito particular daquele momento — diz Angela, que reunia material para o doutorado.
Em 1966, lembra Angela, muitas cidades passavam por uma crise de desabastecimento e movimentos de donas de casa requisitavam sistematicamente uma volta à normalidade do processo de abastecimento de bens de consumo e uma espécie de moralização do oferecimento do serviço.
— Foi neste período que o crime contra a economia popular, que até então era da Justiça comum, passou para a esfera da Justiça Militar. E passou a ser crime contra a ordem social também. Foi a solução encontrada pelo regime — diz Angela, observando que nem só padeiros foram presos. — Açougueiros, farmacêuticos e comerciantes de naturezas diversas foram presos. Inquéritos policiais militares foram abertos e alguns órgãos policiais acabaram envolvidos para auxiliar a Sunab no controle e na repressão. Isso tudo essencialmente na Guanabara e em São Paulo.
No entanto, de acordo com a pesquisadora, os ministros do STM não ficaram muito satisfeitos em ter que julgar os crimes contra economia popular, além dos militares e políticos:
— Por conta disso, em 1967, eles voltaram a ser julgados pela Justiça comum.
Instituição exercia papel ambíguo
No Brasil, o regime militar optou pelo caminho da judicialização da oposição política. E, de acordo com a pesquisadora Angela Moreira, a Justiça Militar exerceu um papel ambíguo durante o regime. Ao mesmo tempo em que demonstrava o recrudescimento da repressão política e judicial — já que houve uma ampliação muito grande dos crimes contra segurança nacional —, era uma instituição que, de certa forma, assegurava ou resguardava as garantias daqueles que tivessem seu nome incluído na mecânica burocrática judicial:
— Um jovem de 18 anos, que integrava o Partido Comunista Revolucionário Brasileiro, foi condenado, em primeira instância, à pena de morte pelo crime de assassinato de um sargento da Aeronáutica, em Salvador. Houve uma comoção muito grande e o Superior Tribunal Militar acabou comutando a pena para prisão perpétua. Mais tarde, o advogado recorreu ao STF, que comutou a pena para 30 anos de prisão. Nesta época, o próprio jovem afirmou que, a partir do momento em que teve seu processo aberto, percebeu que não seria morto nem desapareceria. Então, este caso não é emblemático apenas por ter sido a primeira condenação à pena de morte no Brasil ou por haver pena de morte extraoficial e o STM ter comutado a pena.
Funções ampliadas
Ao contrário do que aconteceu em países como Argentina e Chile, que também viveram uma ditadura, no Brasil, a Justiça Militar foi bastante acionada e teve que se adequar à demanda.
— A Justiça teve suas funções ampliadas. Sabemos que há casos de pessoas que foram assassinadas e desapareceram, mas ainda assim a Justiça foi extremamente acionada. Pelo menos entre 1964 e 1980, considerando crimes militares e crimes políticos, mais de 13 mil pessoas apelaram ao STM — diz Angela, fazendo a ressalva de que “a ideia de que a repressão policial foi definitiva não procede”. — Havia continuidade na instância judicial. Fora que existia um leque muito grande de crimes que deveriam ser julgados pela Justiça Militar, já que as sucessivas leis de segurança nacional trouxeram possibilidades penais muito distintas e grande variação dos crimes.