Salvador 465 X Golpe Militar 50
Janio Ferreira Soares
Não fossem comemorações tão absurdamente distintas, bem que a festa poderia ser uma só, como acontece quando pessoas nascidas em datas próximas resolvem dividir as despesas dos risoles, brigadeiros e até o cachê do cover do cover de Patati Patatá.
Porém, neste caso específico, embora a diferença entre os episódios seja de apenas dois dias, definitivamente não existe chance de união. Acontece, meio como na música de Caymmi (alô! Bené Fonteles, maravilha de artigo), que a primeira aniversariante, que hoje, 29/03, completa 465 anos, é uma baiana cheia de encantos, mistérios e muitas dessemelhanças, docemente batizada em 1549 com o sagrado nome de Cidade do São Salvador da Bahia de Todos os Santos.
Acontece que a segunda aniversariante, que depois de amanhã, 31/03, completa 50 anos, é uma triste e forasteira aberração puxada por um fórceps do fundo de um pântano verde-oliva, que, reza a lenda, já chegou ao mundo com um visual parecido com o do jovem Sarney ao assumir o seu primeiro mandato de governador do Maranhão (o mesmo buço e um Ray-Ban vintage, acrescidos de coturno, fuzil e quepe), sendo logo batizada de ditadura – ou golpe militar – tanto faz, assim mesmo, com as primeiras letras diminutivamente demonstrando meu desprezo ao nome. Falemos um pouco das duas.
Apesar de ter sido um período muito tenebroso, pelo menos num aspecto a ditadura valeu a pena. Enquanto durou (21 anos), ela foi a responsável por uma produção cultural inspiradíssima, sobretudo na música. Quanto mais o sarrafo comia no centro, com prisões, torturas e o diabo a quatro, mais o Sol se repartia em crimes, espaçonaves, guerrilhas e cardinales bonitas, além de outras metáforas inseridas em geniais canções que, à época, nos enchiam de esperança de que um lindo amanhecer logo chegaria e então as crianças cantariam livres sobre os muros e ensinariam sonhos a quem não podia amar sem dor, como dizia Taiguara numa velha balada magistralmente escoltada pelos acordes do seu piano acústico.
Mas aí, depois da volta do irmão do Henfil e de tanta gente que partiu num rabo de foguete, os conceitos sonoros e estéticos foram mudando, mudando e hoje a nossa cena musical praticamente se transformou numa outra ditadura conduzida pelo general Faustão e sua tropa de torturadores, atualmente formada pelo coronel Luan Santana, major Naldo, capitão Thiaguinho, tenente Anitta, sargento Bell, cabo Márcio Victor e aspirante Waleska Popozuda, sem falar nas dezenas de duplas sertanejas – conhecidas nas casernas pelo codinome “pau de arara e choque elétrico” –, sempre dispostas a usar suas vozes esganiçadas para implodir quaisquer movimentos paralelos que ousem sons e letras diferentes do padrão Paula Fernandes de qualidade (as últimas baixas, soube, foram Rodrigo Campos, Péricles Cavalcante e Wado, já ouviu falar? Pois é, acho bom procurá-los num sótão de alguma fazenda nas adjacências de Goiás, Goiânia, por ali.).
Voltando a travada aniversariante – que periga chegar atrasada à sua própria festa -, lembro que ao vê-la pela primeira vez na velha rodoviária das Sete Portas o dia estava prestes a nascer, com a barra que o antecede enquadrando as luzes dos postes, o que deixava o cenário parecido com uma imagem que eu só veria anos depois, no filme Paris, Texas.
Ao descer do táxi na Rua Rui Barbosa, o Sol já iluminava o corpo do poeta, a mureta, o mar e o começo da Ilha. Em frente ao Cine Guarani uma banca de revistas me acenava. “Quem lê tanta notícia?”. Meu tio Lindemar soltou minha mão, alisou minha cabeça e disse: “vai”. E aqui estou eu.
Janio Ferreira Soares, cronista, é secretário de Cultura e Turismo de Paulo Afonso, nascido na cidade de Santo Antonio da Glória, na margem baiana do Rio São Francisco