Escolas municipais de Salvador têm 6 mil alunos ‘fantasmas’; prejuízo chega a R$ 20 milhões

Com alunos ‘fantasmas’, município perde R$ 20 milhões. Seis mil cometem fraude e existem só na lista de presença

Thais Borges

À noite, na sala da educação para jovens adultos, a professora faz a chamada. “João Silva”. Ninguém responde. No dia seguinte, a mesma situação: nada de João. E isso se repete pelo resto da semana, ao longo do mês, e no mês seguinte…

Na verdade, João Silva pode ser Clériston Alves, Maria da Conceição, Gerson Souza, Kellen Oliveira… Ou pode ser qualquer um dos seis mil jovens e adultos matriculados na rede municipal de ensino que nunca apareceram na aula, nem nunca tiveram intenção de aparecer.

Parece pouco, mas não é: ao todo, são 20 mil alunos dessa modalidade na rede. Assim, os que só existem na lista de presença são 30% do total. E eles provocam um prejuízo de R$ 20 milhões aos cofres públicos, por ano.

Mas o problema não é só esse: durante o ano letivo, outros seis mil estudantes acabam desistindo das aulas e abandonam os cursos. Ao final, de  acordo com o secretário municipal da Educação, Guilherme Bellintani, apenas oito mil dos jovens adultos concluem o ano escolar.

“O que acontece é que temos um índice de evasão muito grande e, além disso, as fraudes. Temos um problema porque esse é um segmento de grande invisibilidade, que sofre muito com a falta de políticas públicas adequadas”, afirma Bellintani. Ainda de acordo com ele, “se a Educação já sofre com a falta de políticas consistentes, a EJA (Educação de Jovens e Adultos) é o extremo dessa realidade, por ser, tradicionalmente, deixada por último”.

Recursos

Por ano, o município investe cerca de R$ 50 milhões na EJA.  Só que, para o titular da Secretaria Municipal da Educação (Smed), do jeito como está hoje, daria para custar praticamente a metade, fazendo a mesma coisa. Ou daria para fazer muito mais, com o mesmo recurso financeiro – se boa parte não estivesse sendo utilizada para manter na escola um grupo que nem está lá.

“Podemos fazer investimentos como a melhoria da qualidade da merenda, fardamentos e trazer programas pedagógicos mais avançados, com um ensino de qualidade”, exemplifica o secretário.

Ele admite que o município, além de ter prejuízos, falha em sua missão de educar, ao não conseguir manter os alunos em sala de aula, e lamenta por ainda não ser possível impedir todas as irregularidades relacionadas ao EJA.

“Esse desajuste faz com que a gente não tenha condição de ampliar os programas, porque não conseguimos combater a fraude. E se não estamos conseguindo manter os alunos na escola, nós estamos falhando, porque não estamos promovendo um ensino capaz de manter interesse”, comenta.

Pagar meia

“Isso faz com que a gente não consiga ampliar programas,
porque não conseguimos combater a fraude”, diz Guilherme
Bellintani, secretário municipal de Educação
(Foto: Marina Silva/Arquivo Correio)

Mas, afinal, o que querem os faltosos – ou os “fantasmas”? Provavelmente, nada além do status de “estudante”, que vem com uma série de benefícios, incluindo o pagamento de meia-passagem no SalvadorCard e meia-entrada em cinemas, teatros, shows…

“Esse foi o único benefício da fraude que a gente conseguiu identificar, porque o aluno continuaria obtendo”, explica Bellintani, que começou a perceber o problema em março deste ano, durante visitas às escolas municipais.

Pelos números do Sindicato das Empresas de Transporte Público de Salvador (Setps), é bem isso que acontece. Segundo o coordenador de atendimento da entidade,  Antônio Abade, cerca de 35 mil pessoas se matriculam em escolas e faculdades por ano, somente para ter o desconto na passagem de ônibus. Desses, mais de 70% estudam na rede pública (seja municipal, estadual ou federal).

Confere

A cada seis meses, o Setps faz o chamado Censo Escolar – no qual cruza os dados de todos os estudantes de cada instituição de ensino da cidade. Daí, encontram uma média de 50 mil alunos que, por algum motivo, não estão sendo alunos.

“Eles não frequentam. Então, nós bloqueamos a venda de crédito. Quando a pessoa vai tentar comprar, é notificada e tem um prazo de 30 dias para apresentar um atestado de frequência. Se o estudante não apresentar nesse período, aí, sim, o cartão é bloqueado. Por isso, chegamos aos 35 mil”, afirma Abade.

Apesar de preferir não estimar o prejuízo, porque não dá para saber quantas vezes por dia cada usuário do SalvadorCard utiliza o cartão, o coordenador de atendimento reconhece que a perda financeira é grande. Só para dar uma ideia, se todos os 35 mil usassem o benefício duas vezes por dia, durante cinco dias da semana, o prejuízo do Setps chegaria a R$ 525 mil por semana.

Em um mês, nessa mesma situação, a perda poderia chegar a R$ 2,1 bilhão. “É o mesmo prejuízo que o dono do cinema tem. A gente tenta controlar cada vez mais, encontrando formas de evitar a fraude, como o Censo, mas sabemos que não vamos conseguir acabar com tudo”, admite Abade.

Tempo

No entanto, o Censo só é realizado 90 dias após o início das aulas, já que, para o Setps, os alunos precisam ter completado dois meses sem frequentar as aulas. É esse espaço de tempo, para o secretário Guilherme Bellintani, que acaba atrapalhando.

“O Censo é muito pouco integrado ao sistema escolar. E, quando chega a informação, estamos com a turma formada, professor contratado. Cancelar a matrícula não vai reduzir o custo da estrutura, porque a gente pode chegar e ter contratado toda a merenda do primeiro semestre para uma determinada quantidade de alunos”, pontua.

Para tentar resolver o problema já em 2016, o secretário diz que o órgão de Educação vai tentar identificar, logo nos primeiros 30 dias de aula, quais são os alunos que não frequentam o curso ou que tiverem frequência bem reduzida.

Com isso, eles esperam reduzir também os índices de abandono. “Vamos contatar o aluno, fazer um trabalho individualizado e saber por que ele não está indo. Precisamos promover protocolos diferenciados e mais exigentes para ter um avanço significativo”.

Alfabetização de jovens e adultos requer atenção individual

Enquanto isso, razões como a rotina de trabalho e a família fazem com que outros seis mil estudantes da Educação de Jovens e Adultos (EJA) municipal (também uma parcela de 30%) acabem abandonando o ano letivo antes de concluir os estudos.

De acordo com a professora do curso de Pedagogia da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) Rosemary Lapa de Oliveira, que é doutora em Educação, estudantes nessas faixas etárias precisam de atenção individual. “São pessoas que já se sentem incapacitadas diante daquilo que está sendo dito. A maioria tem família, precisa trabalhar, tem um acúmulo de atividades em casa, e acaba não conseguindo acompanhar. Isso leva a desistir”.

Nesse contexto, uma medida que pode ser adotada pelos professores para atrair e manter os estudantes na escola é o uso de uma linguagem mais próxima da realidade deles. “Precisamos de uma pedagogia que veja que aquele indivíduo já é adulto, que tem uma história. Ele já não tem aquele status de criança e muitos sentem como se não fizessem parte daquele espaço. Eles precisam sentir que o espaço é deles, que eles têm que estar ali mesmo, e suas vivências devem ser consideradas e trazidas para a sala de aula”, defende Rosemary.

Além disso, até o material escolar e a merenda devem ser pensados especialmente para o público, segundo a coordenadora de acompanhamento pedagógico da Secretaria Municipal de Educação (Smed), Verônica Santana. “Procuramos fazer com que seja atrativo para eles, porque não pode ser o mesmo material de uma criança. A merenda também não é a mesma, porque tem idosos com hipertensão, por exemplo”, diz.

Ainda de acordo com Verônica, outra medida que pode ser adotada para manter os alunos é a oferta de cursos de educação profissional, em parceria com o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), do governo federal, após a conclusão da  EJA (que pode durar até cinco anos).

Fonte: Correio

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *