A abolicionista negra que escapou da escravidão, ajudou a libertar dezenas e deverá estampar a nota de 20 dólares

Alessandra Corrêa

Harriet Tubman
Harriet Tubman foi espiã e enfermeira da União durante a Guerra Civil dos Estados Unidos

Ela foi escravizada, conquistou a própria liberdade, ajudou outras dezenas de pessoas a escaparem e se transformou em heroína nos Estados Unidos. Agora, 108 anos após sua morte, a abolicionista negra Harriet Tubman poderá passar a ilustrar a nota de US$ 20.

Nesta semana, a porta-voz da Casa Branca, Jen Psaki, afirmou que o governo do presidente Joe Biden está analisando maneiras de “acelerar” o processo para colocar a imagem de Tubman na cédula. Seu retrato substituiria o de Andrew Jackson, o sétimo presidente americano (1829-1837), que estampa a nota de US$ 20 desde 1928.

“É importante que nossa moeda reflita a história e a diversidade de nosso país”, disse Psaki.

Ainda não há data prevista para a mudança, que inicialmente havia sido anunciada ainda durante o governo de Barack Obama, em 2016. Na época, a expectativa era de que o novo design seria finalizado até 2020.

O fato de Jackson ter sido senhor de escravos e também ter papel importante na remoção violenta de indígenas de territórios no sul do país levaram críticos a pedirem que ele fosse retirado da nota de US$ 20. O plano inicial era incluir o sétimo presidente em uma cena no verso da cédula.

Mas o presidente Donald Trump, que assumiu o poder em 2017, é um admirador de Jackson, a quem considera um “presidente do povo”. Quando ainda era candidato, Trump atribuiu a ideia de mudar a cédula ao “politicamente correto”. Durante seu governo, colocou um retrato de Jackson no Salão Oval.

Nos EUA, cabe ao secretário do Tesouro aprovar o design final das cédulas. O secretário do Tesouro de Trump, Steven Mnuchin, disse que, na reformulação da nota, o foco principal são os elementos de segurança, e não o retrato, e que questões técnicas impediriam que a nova cédula entrasse em circulação antes de 2028.

A demora nas mudanças recebeu críticas de democratas. Mas uma porta-voz do Bureau of Engraving and Printing, agência ligada ao Departamento do Tesouro responsável pela produção das cédulas, disse à BBC News Brasil que não houve atraso no cronograma durante o governo Trump e que o processo é naturalmente demorado.

“A principal razão pela qual cédulas são reformuladas é segurança contra falsificação”, esclareceu a porta-voz, ressaltando que o processo de design é complexo e exige vários testes até que as notas estejam prontas para produção. Ela afirmou que ainda não foram selecionadas imagens finais para o novo design.

Harriet Tubman
Harriet Tubman em 1868 ou 1869 (em foto de Benjamin Powelson, da Biblioteca do Congresso e Museu Nacional de História e Cultura Afro-americana)

Escravidão

Não se sabe a data exata do nascimento de Tubman. Segundo o National Park Service, agência do governo federal responsável por monumentos e propriedades históricas, pesquisas recentes indicam que ela nasceu no início de 1822, em uma área chamada Peter’s Neck, no condado de Dorchester, no Estado de Maryland.

Seu nome era Araminta Ross, mas ganhou o apelido de Minty. Os pais, Harriet Green e Benjamin Ross, eram escravizados. Ela tinha quatro irmãos e quatro irmãs e começou a servir como escrava doméstica aos cinco anos de idade. Na adolescência, passou a trabalhar como escrava na lavoura.

“Sinais precoces de sua resistência à escravidão e seus abusos foram demonstrados aos 12 anos de idade, quando interveio para impedir que seu mestre espancasse um homem escravizado que havia tentado escapar”, diz a historiadora Debra Michals em artigo publicado pelo Museu Nacional de História das Mulheres.

“Ela foi atingida na cabeça com um peso de quase um quilo, o que a deixou com dores de cabeça severas e narcolepsia pelo resto da vida”, afirma Michals.

Michals observa que, ao contrário do que muitos acreditam, a Underground Railroad, uma rede secreta de rotas e esconderijos para dar apoio àqueles que escapavam da escravidão fugindo para o norte do país ou para o Canada, não foi criada por Tubman, e já existia desde o fim do século 18, organizada por abolicionistas negros e brancos.

Nessa rede de apoio, os fugitivos eram guiados por pessoas chamadas de “condutores”. No trajeto, escondiam-se em igrejas, escolas e casas de apoiadores. A rede tinha várias rotas diferentes em diversos Estados.

Uma montagem com rosto de Harriet Tubman em nota de 20 dólares
Montagem com rosto de Harriet Tubman em nota de 20 dólares

Liberdade

Em 1844, “Minty” se casou com John Tubman, um homem negro livre. Nessa época, também mudou seu nome para Harriet, o mesmo de sua mãe.

Tubman temia ser vendida para outro senhor de escravos quando escapou de Maryland pela primeira vez, em 1849, aos 27 anos de idade, ao lado de dois de seus irmãos, Ben e Harry. Seu marido se recusou a ir com eles e, dois anos depois, casou-se com uma mulher negra livre.

Essa primeira tentativa de fuga foi fracassada. Em 3 de outubro de 1849, a senhora de escravos Eliza Brodess publicou um anúncio no jornal local oferecendo recompensa de US$ 100, o equivalente a cerca de US$ 3,3 mil (R$ 17,7 mil) em valores atuais, por cada um dos três fugitivos que fossem recapturados: Minty (Tubman), Ben e Harry.

Algumas semanas depois eles acabaram retornando à fazenda onde eram escravizados. Mas Tubman logo escapou novamente, desta vez sozinha, e conseguiu chegar à cidade da Filadélfia, onde a escravidão não era permitida. Lá, começou a trabalhar como doméstica e cozinheira.

O dinheiro economizado financiou várias viagens de volta a Maryland nos 11 anos seguintes, para ajudar a guiar outros escravizados em busca de liberdade no norte. Ela se tornou a mais famosa entre os “condutores” da Underground Railroad e ficou conhecida como “Moisés de seu povo”.

“Conforme declarações da própria Tubman e extensa documentação sobre suas missões, sabemos que ela resgatou cerca de 70 pessoas – familiares e amigos – em aproximadamente 13 viagens a Maryland”, diz um artigo sobre ela publicado pelo National Park Service.

Harriet Tubman em uma foto da Biblioteca do Congresso tirada pelo fotógrafo H.B. Lindsley entre 1860 e 1870

“Em encontros públicos e privados durante 1858 e 1859, Tubman repetidamente disse que havia resgatado entre 50 e 60 pessoas em oito ou nove viagens. Isso foi antes de sua última missão, em dezembro de 1860, quando ela trouxe sete pessoas”, diz o texto.

Acredita-se que, além das pessoas que conduziu pessoalmente, ela ajudou cerca de outros 70 escravizados indiretamente, dando instruções sobre como chegar ao norte por conta própria.

Missões

As missões de resgate eram perigosas. A Lei do Escravo Fugitivo de 1850 endureceu leis semelhantes anteriores e estabelecia que autoridades e cidadãos brancos em qualquer lugar do país deveriam ajudar a recapturar pessoas escravizadas fugitivas dos Estados onde a escravidão era permitida.

Caso fosse recapturada, além de ser submetida a castigos físicos, Tubman seria escravizada novamente. Segundo historiadores, ela usava disfarces em suas missões e contava com a ajuda de pessoas de confiança, que indicavam a melhor rota e ofereciam abrigo.

O trajeto era feito a pé, a cavalo, de barco e de trem. Ela seguia rios, estrelas e fenômenos naturais para achar a direção ao norte, e usava canções como forma de comunicar ao grupo situações de perigo ou segurança.

Harriet Tubman
Harriet Tubman em 1911

Tubman carregava uma pistola, não apenas para proteção contra caçadores de escravos, mas também para desencorajar fugitivos que pudessem mudar de ideia e desistir da jornada, o que colocaria em risco a segurança do resto do grupo.

Ela nunca foi capturada e se orgulhava de jamais ter perdido um “passageiro”. A experiência e o conhecimento adquiridos durante mais de dez anos refazendo o trajeto a transformaram em figura valiosa durante a Guerra Civil (1861-1865).

Com a guerra, a Underground Railroad deixou de atuar na clandestinidade e passou a se somar aos esforços da União contra os Estados Confederados escravocratas. Tubman atuou como espiã e enfermeira para as tropas da União e teve papel de destaque em operações de inteligência e de resgate de escravizados.

De volta ao norte, ela ajudava os ex-escravizados a encontrarem emprego e moradia, e arrecadava dinheiro para apoiar os recém-libertos. Ela convivia com abolicionistas, políticos, escritores e intelectuais e, após o fim da guerra, teve participação importante em outras causas, entre elas a luta pelo voto feminino.

Em 1859, Tubman comprou uma propriedade em Auburn, no Estado de Nova York, onde posteriormente estabeleceu um lar de idosos. Ela se casou pela segunda vez, com Nelson Davis, que também havia sido escravizado e lutou na guerra como soldado da União. Em 1874, eles adotaram uma filha.

Tubman morreu em 1913 e foi sepultada com honras militares no cemitério de Fort Hill, em Auburn. Quando a mudança na nota de US$ 20 for realizada, Tubman se tornará a primeira pessoa negra a estampar uma cédula da moeda americana.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *