A Bahia que atrai e que afasta no clássico antirracista ‘Um Defeito de Cor’
Um chamado indireto de Jorge Amado e um assustador assalto na Ilha de Itaparica estão na gênese de um dos maiores clássicos da literatura brasileira, lançado e aclamado neste século 21, mas que reconstrói a Bahia, o Brasil e até parte da África do século 19, quando a chaga da escravidão estava mais aberta que o mar. ‘Um Defeito de Cor’, da mineira Ana Maria Gonçalves, é um romance histórico (portanto, uma ficção) que acompanha a personagem Kehinde desde o Reino do Daomé (atual Benim), onde nasceu, passando por seu sequestro para o outro lado do Atlântico, ainda criança.
Escravizada, se torna Luísa Mahin, iniciando uma caçada de décadas para tentar reencontrar seu filho, o advogado Luiz Gama, patrono da Abolição da Escravidão no país. Ele existiu, ela provavelmente, e a história do Brasil que o livro narra é a mais real e palpável possível.
Primeira edição do livro foi lançada em 2006; pesquisa na Bahia durou dois anos (Foto: Divulgação) |
Em quase mil páginas, a autora apresenta uma heroína inquebrantável, imersa num ambiente hostil em que, diversas situações, foi violentada e quase eliminada. No entorno dessas vivências (difícil de ler em vários momentos), está o Brasil e sua história poucas vezes descrita num livro de forma tão realista, crua, cruel.
“Para mim era muito importante que não fosse a história da escravidão, ou a história de uma escravizada. É a nossa história contada por uma escravizada. Porque não dá pra continuar colocando nesses nichos; é sobre todos os brasileiros. A diferença é que ela é contada a partir do ponto de vista de uma mulher escravizada, e não do homem branco escravizador, como sempre foi”, explica a autora, que não fez questão de criar uma personagem indefectível. Muito pelo contrário.
Cenários
Das coisas que mais impressionam estão as descrições dos cenários onde a personagem vai passando – especialmente Salvador, onde ocorre a maior parte dos incidentes. Questionei a autora sobre como conseguiu criar certa visibilidade de forma tão eficaz, e a resposta foi simples: gastando seu olhar ‘estrangeiro’ e muita sola de sapato.
“Por ser um lugar que eu não conhecia, eu observava muito. Andava dias inteiros procurando prédios que fossem do século 19, casas que eu pudesse colocar os personagens para morar, então, era uma pesquisa quase que etnográfica de Salvador, e por isso quem é da cidade a reconhece por esse olhar fresco”, explica.
Foi na Rua do Carmo, por exemplo, que decidiu colocar para morar os muçurumins – escravizados adeptos do Islamismo que, sob a liderança da heroína, promoveriam a Revolta dos Malês. “Então, era o dia inteiro observando os lugares, as pessoas, como elas andavam, como falavam”, e daí também saíam inspirações para os perfis descritos.
Ana Maria Gonçalves se mudou para a Bahia em 2001, onde fez pesquisas que resultaram em romance histórico aclamado (Foto: Divulgação) |
Gênese
Obra-prima de nascença, ‘Um Defeito de Cor’ teve como gênese outro clássico, este envolvido em uma jogada do destino: numa biblioteca, por acaso, Ana Maria Gonçalves se deparou com ‘Bahia de Todos-os-Santos: Guia de ruas e mistérios’, livro no qual Jorge Amado, em determinado trecho, parecia fazer um convite à autora, então interessada em escrever sobre a Revolta dos Malês.
O chamado foi prontamente atendido, em 2001, quando desembarcou por aqui em dia oportuno. “Eu nunca tinha vindo a Salvador. Cheguei aqui num dia 1º de fevereiro, fui para a Festa de Iemanjá no dia 2, e me apaixonei pela cidade. Aí fui para Itaparica, porque eu tinha acabado de ler ‘Viva o Povo Brasileiro’, de João Ubaldo. Me apaixonei por uma casa e deu tudo certo. Em duas semanas, voltei pra São Paulo, fechei a vida lá e vim embora pra Bahia escrever”, conta a autora, que iniciava ali alguns anos de gestação da obra, lançada em 2006 pela editora Record.
Parte dessa saga é contada na abertura do livro, e para quem já começou a ler, uma revelação: “O prólogo é todo verdade, exceto pelo manuscrito. Todo o resto, a família, fotos, tudo é absolutamente verdade”, nos conta Ana Maria, quando menciono o relato do assalto.
Ilha do medo
A escritora morava sozinha numa casa em Itaparica quando, certa noite, o local foi invadido. O incidente, citado no prefácio, ajudou a mudar os rumos de como a história seria contada, mas não só isso: também fez a autora se mudar para Salvador e trocar até de religião.
“Eu sou mineira, era católica apostólica romana, tinha uma ideia de longe do que era candomblé, e eu acho que essa questão do assalto me ajudou a converter. Tem aquela música do Caetano que diz ‘quem é ateu e viu milagres como eu’, e esse episódio foi muito doido. Eu tava escrevendo sozinha, à noite, em casa, e de repente senti um tapa no rosto, do nada. Eu olhei e não tinha ninguém. Na hora que virei, tomei outro tapa no lado oposto. Levantei, meio que automaticamente, peguei a CPU do computador [com rascunhos do livro] e fui para o quarto, e apaguei”, relembra a autora.
Quando acordou na manhã seguinte, uma amiga batia à porta do quarto, desesperada. Bandidos tinham levado quase tudo da casa, menos o computador, que dormiu com a dona. “Logo que eu acordei, a minha mãe de santo hoje, com quem eu tava conversando sobre o candomblé, pra colocar no livro, me telefona dizendo também que tinha sido acordada de madrugada pra me proteger. Então, me converti à religião, a Salvador”, relata. Ana Maria conta ainda que naquela noite, segundo o delegado que atendeu à sua ocorrência, uma mulher havia sido estuprada na vizinhança.
Os mistérios que atraem quem é de fora, a violência que assusta, afasta e faz vítimas quem está dentro, todas essas ambíguas primazias da Bahia estão em ‘Um Defeito de Cor’. Apesar de ficção, é um livro de pura memória, mas não só de coisas trágicas como o racismo, a escravidão e as violências que deles decorrem, mas também de potências como afroempreendedorismo, feminismos, associativismo para superar o despotismo, e a demonstração da incrível pluralidade dos povos africanos para aqui arrastados, trazendo consigo diferentes línguas, culturas, estilos de vida, religiões… Além de dor, atravessaram o Atlântico grande parte das ideias e saberes que nos formam, que nos tornam baianos, brasileiros.
Fonte: Correio