A curiosa história de Colônia do Sacramento, cidade portuguesa na América que não é parte do Brasil
Palco de conflitos entre portugueses e espanhóis, a história local é impressionante
José Francisco Botelho e Andreas Müller
Nos confins do Uruguai, às margens do estuário da Prata e a apenas 50 km de Buenos Aires, está o último bastião do império lusitano no sul das Américas: Colônia de Sacramento, fundada pelos portugueses, nas barbas de seus inimigos espanhóis, em fins do século 17.
Depois, tornou-se um emaranhado suave e tranquilo de ruas de pedra cheias de turistas e soprada pela brisa fresca do Prata – no passado, uma cidade-fortaleza sempre a postos para a guerra, cercada por terra e por mar, na esquina de dois impérios em atrito.
Durante 97 anos – entre 1680 e 1777 -, foi o pomo da discórdia entre os espanhóis da atual Argentina e os luso-brasileiros. Perdida entre as águas do Prata e a região da Campanha, Sacramento passou por 5 cercos, foi destruída 3 vezes e reconstruída outras tantas – mudando de dono durante quase um século.
O troca-troca entre portugueses e espanhóis é visível hoje na arquitetura da cidade. As casas portuguesas do período colonial, de pedra e com telhados de 2 ou 4 águas, enfileiram-se ao lado de moradas em estilo espanhol – de tijolos, com terraços planos no teto.
Muitas ruas têm nomes lusitanos, como Dom Manuel Lobo, o fundador da cidade, e Hipólito da Costa – nascido em Sacramento em 1774 e que fundaria o primeiro jornal do Brasil, o Correio Braziliense. Apesar da importância, a cidade foi por muito tempo esquecida pelos brasileiros. Ninguém gosta de remoer derrotas, e Colônia de Sacramento é a cidade que o Brasil perdeu.
Duelo
A briga entre Portugal e Espanha pelo estuário do Prata – a confluência dos rios Paraná e Uruguai – vinha desde o tempo dos descobrimentos. As nações já trocavam tiros ao longo da costa da África desde o século 15. Em 1494, diplomatas se reuniram em Tordesilhas para fatiar o globo. O mapa-múndi foi dividido por uma linha imaginária, 370 léguas a oeste de Cabo Verde.
O que ficasse para lá da linha seria espanhol. Os territórios a leste ficariam para Portugal. Só que o arquipélago de Cabo Verde tem dez ilhas e o tratado não especificou a partir de qual delas deveriam ser contadas as léguas.
E espanhóis e portugueses nem concordavam sobre a extensão exata de uma légua… O resultado foram séculos de guerra ao longo de uma fronteira imprecisa. “Para Portugal, ela chegava até a Patagônia. Para os espanhóis, ela passava por Cananeia”, diz Paulo Possamai, da Universidade Federal de Pelotas, autor de A Vida Quotidiana em Colônia do Sacramento.
O triângulo formado pelos rios Paraná e Uruguai foi um dos pontos de disputa. Dependendo de quem riscasse a tal linha imaginária, a região podia ser espanhola ou lusitana. O mesmo acontecia com a chamada Banda Oriental – a margem nordeste do Prata, que virou o Uruguai.
Os portugueses foram os primeiros a navegar pelo estuário, em 1512. Mas os espanhóis ergueram a primeira cidade: Buenos Aires, em 1535, na margem sul do Prata. Na época, os portugueses estavam ocupados colonizando o Brasil – mas sua cobiça foi despertada com as notícias da descoberta das minas de prata de Potosí, hoje na Bolívia.
O caminho mais rápido entre Potosí e o Atlântico era o estuário do Paraná e do Uruguai, que, por isso mesmo, passou a ser chamado de rio da Prata. O duelo nas Américas foi adiado por uma reviravolta na Europa. Em 1580, o rei espanhol Felipe 2º reclamou a coroa vizinha. Portugal e suas colônias ficaram incorporadas à Espanha durante 60 anos.
Em 1640, os portugueses se libertaram do domínio espanhol. Depois de chutar os vizinhos na Europa, os lusitanos resolveram acertar os ponteiros na América. E foi então que a peleja por aqui realmente começou. A tarefa de fincar a bandeira lusitana nas margens do Prata coube a dom Manuel Lobo, fidalgo nascido em Portugal e governador da capitania do Rio de Janeiro.
Em uma carta secreta, a Coroa portuguesa o incumbiu de viajar até os confins meridionais e encontrar um “sítio cômodo” para uma fortaleza e um porto na margem superior do Prata, em 1679. Os espanhóis não haviam explorado a Banda Oriental – e os portugueses queriam aproveitar a oportunidade para marcar ali a fronteira meridional de seu império.
“A coroa portuguesa procurou balizar seus domínios pelos maiores rios descobertos – o Amazonas, ao norte, e o Prata, ao sul. Não porque fossem fronteiras naturais, mas para garantir o controle das vias de acesso ao interior do continente”, escreveu Possamai.
Durante meses, Manuel Lobo fez preparativos secretos. Juntou 400 soldados, recrutados no Rio e em São Paulo. Quatro navios foram carregados de mantimentos e armados com 18 canhões. Enquanto a frota portuguesa se aproximava, espiões espanhóis levaram a notícia até Buenos Aires. As intenções dos portugueses não estavam claras.
Corria o boato de que Portugal pretendia invadir Buenos Aires e conquistar as minas de prata. O governador espanhol, José de Garro, enviou barcos para fazer o reconhecimento do estuário. Procurou os portugueses por todos os lados – sem sucesso.
Os espanhóis não imaginavam que Manuel Lobo, após 20 dias de viagem, havia desembarcado defronte de Buenos Aires, em uma baía atrás da ilha de São Gabriel, na outra margem do Prata – onde batizou o acampamento de Colônia do Santíssimo Sacramento.
Dias após o desembarque, um grupo de espanhóis foi cortar lenha por ali e avistou barracas, canhões e soldados. Voltaram a Buenos Aires com a notícia de que os inimigos estavam estacionados a pouco mais de 50 km. Furioso, Garro enviou um mensageiro a dom Manuel, exigindo que saísse de terras da Coroa espanhola. Lobo respondeu que a margem norte do Prata pertencia a Portugal.
E rematou a resposta com um desafio fidalgo: “Vossa Mercê faça o que bem desejar, que para tudo me há de achar prontíssimo, para o servir com particular gosto”. Garro preparou o revide. Com 480 soldados espanhóis e 3 mil guaranis, atravessou o Prata em um navio de guerra.
Na madrugada de 7 de agosto, um grupo de guaranis escalou a paliçada e degolou os sentinelas. A recém-nascida Colônia foi saqueada e incendiada em horas. Dom Manuel acabou seus dias preso em Buenos Aires. Mas Portugal não largou o osso.
Mesmo após a vitória, a Espanha não se animou a colonizar a Banda Oriental: a Coroa espanhola, na época em conflito com a Holanda, não queria entrar em guerra com Portugal.
E, um ano depois, lá estavam os portugueses novamente, nas ruínas do acampamento de Lobo. Agora, a expedição não trazia só soldados e armas mas também uma divisão de prostitutas – para afagar o moral das tropas e evitar deserções. Mais tarde, viriam famílias de imigrantes dos Açores e da região portuguesa de Trás-os-Montes.
Asfixia
Ao redor da fortaleza, surgiram plantações de trigo, pomares de pêssegos e figos, fazendas de gado. As paliçadas e barracas de couro deram lugar a casas de pedra, igrejas, armazéns e a uma muralha enfeitada com o brasão português. Mas o burgo lusitano voltou a ser atacado e conquistado pelos espanhóis.
Por quase um século, os portugueses sempre davam um jeito de voltar e reconstruir tudo. A história militar da Colônia é uma sinuca: foi tomada outra vez pelos espanhóis em 1705 e fundada pela terceira vez em 1717.
Voltou às mãos espanholas em 1762 e passou outra vez aos lusitanos um ano depois. As idas e vindas se explicam, em parte, pela aliança de Portugal com a Inglaterra – que, além do escudo diplomático, enviou sua esquadra para proteger Colônia de Sacramento.
Nem tudo foi uma troca de chumbo. Na maior parte do tempo, os habitantes de Colônia e Buenos Aires não brigavam – contrabandeavam. O comércio era controlado de forma ferrenha pela Coroa espanhola e o porto de Buenos Aires era proibido de receber produtos vindos diretamente da Europa.
Com isso, os lucros dos comerciantes iam às alturas: sem concorrência, os preços inflacionavam e a maioria dos produtos chegava a Buenos Aires valendo o dobro. E é aí que a proximidade do inimigo luso-brasileiro veio a calhar.
Mesmo antes da fundação de Colônia, navios carregados de produtos já desciam da Bahia e do Rio de Janeiro. “Aos olhos do império espanhol, esse comércio era ilegal. Oficialmente, a Coroa portuguesa dizia não autorizar o contrabando – mas na verdade o estimulava e o auxiliava”, diz Fabrício Prado, professor do College of William and Mary, nos EUA.
Um dos objetivos da Coroa portuguesa ao fundar a nova colônia era aproveitar ao máximo aquele mercado oblíquo. E foi assim que, no final do século 17 e início do 18, o trajeto entre Buenos Aires e Sacramento virou um ninho de contrabandistas.
Navios carregados de açúcar, melado, tabaco e farinha vinham até Sacramento desde Pernambuco, Bahia ou São Paulo e de Portugal chegavam pipas de sardinha, sal, azeite, pimenta, vinhos, tecidos, utensílios domésticos, móveis… Sob a vista grossa das autoridades de Colônia, os contrabandistas portugueses levavam os produtos até as ilhotas que pontuam o delta dos rios Paraná e Uruguai em barcos a remo.
Lá, encontravam os clientes portenhos – que pagavam com a prata vinda da Bolívia. “Todo o dinheiro que daquelas partes se tira é roubando e defraudando os direitos de el-Rei de Espanha. E nem por isso deixam de tirar dali muito, porque todo o dinheiro que corre no Brasil de lá vem”, escreveu o viajante francês François Pyrard.
O gado
Outra riqueza que transformou Sacramento em uma ilha de prosperidade foi o gado. Jesuítas vindos do Paraguai haviam trazido ao Rio Grande do Sul centenas de touros e vacas. Sem currais nem cercas, os animais voltaram ao estado selvagem.
No início do século 18, os habitantes de Colônia passaram a organizar expedições de caça ao gado bravio para consumir a carne e para tirar o couro, exportado para a Europa. “A Revolução Industrial estava começando. Todas as correias das máquinas eram feitas de couro”, explica Prado.
Além do gado, os cavalos também proliferaram no pampa. Em 1535, os fundadores espanhóis de Buenos Aires trouxeram cerca de 70 cavalos andaluzes – que se multiplicaram até dar origem a enormes manadas.
Os índios charruas e minuanos, tribos nômades que habitavam a região, aprenderam a domar os cavalos bravios – e adquiriram o costume de comer carne no espeto, mal e mal chamuscada no fogo de chão. Os luso-brasileiros de Colônia também passaram a domar os cavalos da Banda Oriental e, com eles, formavam grandes expedições – ou tropeadas – para levar gado, por terra, até os domínios portugueses ao norte (o trajeto não podia ser feito por mar, pois o gado não sobrevivia a viagens longas em navios). Os tropeiros levavam cerca de 70 dias até chegar à cidade portuguesa mais próxima – Laguna, no atual litoral de Santa Catarina
Mas a festa não durou muito – a partir de 1737, o paraíso dos contrabandistas virou prisão a céu aberto. Os comerciantes de Buenos Aires cobiçavam o couro uruguaio e resolveram acabar com a competição de Sacramento. Como a Espanha não queria atrair a ira dos ingleses, em vez de atacar Colônia, limitou-se a cercá-la. Fazendas e pomares foram incendiados e guardas posicionados ao redor das muralhas.
Os espanhóis determinaram que os habitantes de Sacramento só poderiam se afastar da cidade no raio de 3 km – “A distância de um tiro de canhão”. O bloqueio durou, com intervalos, 40 anos. Sem acesso ao pampa, a comida escasseou. Em momentos dramáticos, a população chegou a comer ratos. Para piorar, em 1776 estourou a Revolução Americana, nos EUA. Vendo que os britânicos não poderiam acudir os portugueses, o rei espanhol Carlos 3º resolveu expulsar de uma vez os lusos do Prata. Em 1777, nomeou o fidalgo Pedro de Ceballos como vice-rei do Prata e o enviou pelo Atlântico com um exército de 9 mil homens e 400 navios. Em poucos dias de combate, os espanhóis arrasaram o último bastião português no calcanhar das Américas.