A etnia indígena brasileira à beira da extinção que pode estar reduzida a só 3 pessoas
Fernando Duarte
“Eu estou preocupado com eles. Eles serão mortos e não haverá mais nenhum de nós.”
Quando Rita Piripkura falou à câmera, o que mais chamou atenção foi o tom de resignação em sua voz.
A idosa se referia ao irmão Baita e ao sobrinho Tamanduá em uma entrevista divulgada em setembro.
Os três são os últimos integrantes conhecidos do povo isolado Piripkura, uma tribo indígena do Centro-Oeste brasileiro que está sob ameaça de “extinção iminente” devido à pecuária e ao corte de madeira realizados de forma ilegal em sua reserva, segundo especialistas.
Enquanto Rita vive em contato regular com pessoas de fora, Baita e Tamanduá passam os dias vivendo isolados nessa parte do território amazônico.
Ela teme que a ocupação ilegal na reserva pode ser mortal para os dois.
Batalha perdida
Localizada em Mato Grosso, uma região vital para o agronegócio brasileiro, a reserva Piripkura está perdendo a batalha contra os invasores de seu território, apesar da proteção prevista por lei.
As incursões de fora contra o povo indígena não são um fenômeno recente, mas o ritmo de destruição se acelerou: a partir do relatório divulgado no começo de novembro pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), uma rede de organizações não-governamentais observou que uma área de 24 km² do território piripkura foi devastada apenas entre agosto de 2020 e julho deste ano.
Essa extensão equivale a mais de 3 mil campos de futebol.
Enquanto outras reservas indígenas também lutam contra madeireiros, mineradoras e ocupações ilegais para pecuária e agricultura, o povo Piripkura enfrenta uma situação dramática.
“Eles estão à beira da extinção e podem ser mortos em questão de dias”, afirma Sarah Shenker, da entidade britânica Survival International, focada na proteção de povos indígenas.
“Os invasores estão se aproximando de Baita e Tamanduá a todo momento.”
Há fortes evidências de que pessoas de fora estejam ocupando partes da reserva, diz Leonardo Lenin, que trabalhou na Fundação Nacional do Índio (Funai) diretamente com tribos de Mato Grosso.
Hoje ele é secretário-geral do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas (OPI), uma das organizações que produziram o relatório sobre a tribo Piripkura. De acordo com Lenin, o desmatamento foi constatado em áreas a cerca de 5 km de onde Baita e Tamanduá foram vistos ou deixaram marcas de sua presença.
O que parece ser uma distância segura é na verdade muito próximo — considerado que a área da reserva indígena tem 2.430 km².
“Eles estão sob grande perigo, não há dúvida disso”, afirma Lenin.
“Nós também ouvimos relatos vindos de funcionários da Funai e de agências ambientais sobre ameaças feitas pelos invasores.”
A difícil situação das tribos isoladas
Os Piripkura são um exemplo do que especialistas em questões indígenas chamam de tribos isoladas ou não-contactadas — povos ou grupos menores que não mantêm contato com vizinhos ou qualquer um do mundo exterior.
É estimado que existam mais de 100 desses grupos espalhados pelo mundo, e 50 deles estão localizados na região amazônica.
A atitude de isolamento é muitas vezes derivada de confrontos com invasores. Os Piripkura, por exemplo, já enfrentaram grandes problemas.
Vários membros da tribo foram mortos na década de 1970 por assassinato ou após contraírem doenças como gripe, contra as quais os índios não desenvolveram proteção em seu sistema imunológico.
Rita se recorda de um massacre em que nove de seus parentes foram mortos.
“Eles (os invasores) mataram e nós tivemos que fugir”, disse.
Além das perdas humanas, Lenin explica que os confrontos tiveram um gigantesco impacto sobre o modo de vida da tribo.
“A língua deles tem palavras que descrevem práticas de agricultura, o que sugere que eles tinham alguma forma de sociedade agrária no passado.”
“Mas desde os anos 1970 eles se tornaram caçadores-coletores nômades. É uma estratégia de sobrevivência estar sempre em movimento.”
Quando os Piripkura foram contatados pela primeira vez pela Funai em 1984, técnicos relataram que havia apenas de 15 a 20 integrantes da tribo em toda a reserva.
Mas apenas Baita e Tamanduá foram avistados desde a década de 1990.
Fabrício Amorim, especialista em povos indígenas isolados e que trabalhou com os Piripkura, afirma que Baita e Tamanduá mencionaram anteriormente a existência de “parentes” espalhados pela floresta.
“O problema é que eles não falam desses parentes há anos. Isso não significa automaticamente que eles estejam mortos, mas tampouco é um bom sinal”, diz Amorim.
“O fato de não termos certeza que não há mais piripkuras na região torna ainda mais importante a preservação dessa terra.”
Um presidente hostil
Defensores dos direitos indígenas atribuem a culpa pela escalada na destruição da reserva dos Piripkura especificamente ao presidente Jair Bolsonaro.
Mesmo antes de tomar posse como presidente em 2019, Bolsonaro expressou apoio ao aumento da exploração comercial da Amazônia e oposição a uma política de reservas indígenas, apesar do direito à terra ser garantida pela Constituição brasileira.
Em 1998, quando ainda era deputado federal, o atual presidente disse ao jornal Correio Braziliense que era uma “vergonha” as forças militares brasileiras não serem tão eficientes como as norte-americanas em “exterminar povos indígenas”.
O presidente sustenta que os índios — 1,1 milhão do total de 213 milhões da população brasileira — não deveriam ter direito a 13% da área territorial do país, embora isso esteja determinado pela Constituição de 1988.
Bolsonaro é o primeiro presidente brasileiro desde então a não assinar demarcações de terras indígenas. Grupo de direitos humanos relatam um aumento em episódios de conflito envolvendo povos indígenas a partir do momento em que assumiu o poder.
Disputas legais
A reserva piripkura é atualmente protegida por um dispositivo legal voltado para áreas indígenas que não passaram pelo processo oficial de demarcação de terras.
O instrumento precisa ser renovado periodicamente, mas a ordem expedida em setembro só prevê proteção por mais 6 meses — nos anos anteriores esse período variava entre 18 meses e três anos.
“Essa decisão manda a todos uma mensagem errada e está dando esperança aos invasores de que eles vão se apoderar de terras indígenas cedo ou tarde”, acredita Amorim.
Outro sinal de preocupação apareceu no final do ano passado: o Serviço Geológico do Brasil começou a publicar mapas detalhados da localização de possíveis reservas de minérios (entre eles, ouro) no território brasileiro.
O primeiro conjunto de mapas focou especificamente na região norte de Mato Grosso, onde fica o território piripkura.
Em comunicado, a Funai disse à BBC que vem fornecendo ao povo Piripkura “toda a assistência em termos de proteção territorial, segurança alimentar e acesso a serviços de saúde”.
“Também têm sido realizadas operações coordenadas com objetivo de combater transgressões na área”, afirma o comunicado.
Rita é firme ao dizer que essa promessa não é suficiente para salvaguardar o futuro de seu povo.
Após se casar com um integrante dos Karipuna, ela atualmente vive perto da reserva dessa tribo e ajuda ocasionalmente a Funai em expedições no Estado de Mato Grosso. Mas ela não visitou a área piripkura desde o início da pandemia de covid-19 e teme se tornar a única remanescente de seu povo.
“Toda vez que eu visito a reserva, vejo mais e mais árvores derrubadas. Há muitos forasteiros por lá”, ela alerta. “Eles podem facilmente matar meu irmão e meu sobrinho.”